Voto em papel e fraudes: série de depoimentos relata insegurança antes da urna eletrônica

Até 1996, quando o voto eletrônico passou a ser gradualmente implementado no Brasil, as suspeitas de fraude eram um componente de tensão a mais num dia de eleição, que naturalmente já guardava emoção suficiente para todos os envolvidos. Naquela época, não havia a apuração em algumas horas após o término da votação nem os resultados eram divulgados na mesma noite do dia da votação, como acontece atualmente. O que existia era uma contagem de votos que levava dias, fator que aumentava muito a temperatura dos ânimos entre escrutinadores e fiscais dos partidos. Neste ambiente, as alegações de fraude eram constantes.

Vale lembrar que, a partir das Eleições Municipais de 2000, todo o eleitorado brasileiro passou a votar por meio das urnas eletrônicas, o que eliminou a intervenção humana no processo de apuração e totalização dos votos de uma eleição.

Confusão e lentidão

Ivaldo Oliveira Júnior  Voto Impresso  24.09.2021

Para o servidor público Ivaldo Oliveira Júnior, que foi escrutinador nas Eleições Gerais de 1994, o clima nas mesas de apuração era de muita preocupação e o trabalho muito lento. “Não diria que era um trabalho fisicamente cansativo; era mais o cansaço intelectual de fazer um trabalho sob uma pressão muito grande”, ele se recorda.

Confira a entrevista em vídeo no canal do TSE.

A cada cédula mal preenchida, qualquer dúvida que houvesse sobre a real intenção da eleitora ou do eleitor – ao marcar com um “x” o quadrado da candidata ou candidato ou ao escrever o nome ou o número do escolhido – armava-se uma discussão entre os fiscais dos partidos e os escrutinadores que podia tomar muito tempo. E, não raro, essa discussão resultava na anulação de votos e, por vezes, da urna inteira.

Ivaldo se recorda de um episódio no qual os fiscais exigiram uma recontagem de votos depois de uma urna já ter sido apurada. Os membros da mesa apuradora concordaram e fizeram a recontagem, mas os fiscais não ficaram satisfeitos e demandaram uma terceira conferência. O responsável pela mesa apuradora se recusou e foi necessário chamar a polícia e o juiz eleitoral para resolver a situação. “Era uma confusão enorme, uma gritaria ensurdecedora”, conta ele. “Quem defendia um dos candidatos dizia que o voto estava certo e quem era contra falava que estava errado”. No fim da história, o juiz mandou fazer uma última recontagem, que foi idêntica às anteriores.

A precariedade do ambiente onde era feita a apuração dos votos também marcou a memória de Ivaldo, que tinha 18 anos na época. A contagem era feita numa sala do Fórum de Taguatinga, onde foram colocadas mesas de plástico, semelhantes às mesas de bar, sobre as quais eram derramadas as cédulas de papel. E, em volta de cada uma delas, dezenas de fiscais de partidos. No meio de tanta balbúrdia, era preciso tomar muito cuidado para que nenhum voto caísse no chão ou acontecesse alguma coisa que servisse para se alegar tentativa de fraude.

Havia muitos motivos para suspeitar. Afinal, o repertório de fraudes que compõem esse capítulo da história da evolução da democracia brasileira é vasto. São tantas as técnicas que se tornaram anedotas da vida política do país. O Museu do Voto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) listou algumas delas na exposição “Eleições no Brasil – A conquista da transparência e da legitimidade”, realizada em 2018.

Repertório de fraudes

Talvez uma das mais comuns na época em que as pessoas não preenchiam as cédulas de votação, mas depositavam na urna cédulas prontas com os nomes dos candidatos escolhidos, eram as chamadas “urnas grávidas”. Ou seja, quando a votação começava, as urnas já traziam votos. Como não dava para separar os fraudulentos dos autênticos, acabava que todos os votos da seção eleitoral tinham que ser impugnados – isso quando a fraude era descoberta. Essa possiblidade de fraude foi extinta graças à zerésima.

Assista ao vídeo explicativo sobre a zerésima.

Aliás, urnas com mais votos do que eleitores inscritos na respectiva seção era algo corriqueiro. As razões para isso eram muitas, começando pelas falhas no cadastro eleitoral, em que a mesma pessoa podia ter vários títulos de eleitor. E, no tempo em que o cadastro eleitoral não era unificado, havia ainda os “eleitores-fósforo”, que ganhavam esse nome porque “riscavam” (votavam) em várias seções na mesma eleição. De novo, era impossível separar os votos fraudados dos autênticos e, nesse dilema, quem saía perdendo era a vontade soberana das eleitoras e dos eleitores.

Havia também o mapismo, no qual o placar dos votos apurados ia sendo registrado conforme a conveniência do escrutinador. Com as urnas abertas e os votos já contados, era difícil descobrir que voto era de onde e para quem e, por conseguinte, quantos votos apurados realmente haviam sido atribuídos às candidaturas que, no mapa, apareciam como as mais votadas. A solução era recomeçar todo o processo numa recontagem – atrasando ainda mais o resultado final.

Eleições sob suspeita

“Era grande a dificuldade de garantir a expressão do voto do eleitor para que fosse consignada no resultado das eleições”, afirma o cientista político João Beato. Ele fala por experiência própria, por ter servido como escrutinador de votos nas Eleições Municipais de 1996, em São Vicente (SP).

Essa dificuldade, segundo ele, se devia a inúmeros fatores, sendo um deles as ameaças de fraudes. João conta que eleitoras e eleitores só podiam utilizar canetas de cor preta ou azul para preencher as cédulas. Por sua vez, somente os escrutinadores podiam utilizar canetas vermelhas. “Mesmo assim, vez por outra, aparecia um voto preenchido em vermelho na mesa de apuração. Era óbvio que alguém da mesa tinha preenchido um voto em branco”, lembra.

Além disso, havia a questão da escolaridade da eleitora ou eleitor, já que era necessário que escrevesse o nome ou o número das candidaturas escolhidas. Então surgiam problemas que iam desde a caligrafia da pessoa até o seu baixo grau de instrução, que comprometia o que queria expressar ao votar. “Nem sempre a vontade do eleitor era respeitada na própria cédula, ou então não era compreendida”, avalia Beato.

Para o cientista político, o cansaço físico e mental do processo de contar milhares de votos também era um fator que comprometia a rapidez e a confiabilidade da contagem manual de votos. “Às vezes se passava uma cédula, não se registrava um número, uma contagem. E isso também influenciava no resultado, recorda.

A quantidade de gente necessária para contar e fiscalizar a apuração de votos também acaba sendo um problema. João Beato conta que, quando trabalhou como escrutinador, os bares e restaurantes em torno do local de apuração ficaram sem comida, porque a quantidade de gente circulando pelo bairro era extraordinária. “E os partidos não dispunham de fiscais suficientes para acompanhar a apuração em todas as mesas, ao mesmo tempo. Então a transparência ficava comprometida”, conclui.

Esse texto faz parte da série “Voto em papel e fraudes”, que relata depoimentos de cidadãos e cidadãs que participaram de perto das eleições antes do sistema eletrônico de votação.  A urna eletrônica foi um avanço tecnológico que eliminou a intervenção humana e tornou o processo eleitoral brasileiro um dos mais confiáveis do mundo.

RG/CM,EM

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