O afastamento incidental da aplicação de leis e atos normativos, em julgamento no âmbito de um Tribunal de Contas, condiciona-se à existência de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. O entendimento foi fixado no julgamento de agravo da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) no Mandado de Segurança (MS) 25.888/DF, na sessão virtual finalizada em 21/8.
O julgamento era aguardado pela comunidade jurídica, em razão de nele ser discutida a recepção, pela Constituição de 1988, da Súmula 347 do STF. Aprovada em 1963, o verbete diz que “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”.
Entenda o caso
Em 2006, o ministro Gilmar Mendes levantou dúvidas acerca da subsistência da Súmula 347 após a ordem constitucional de 1988, dada a modificação do perfil do sistema de controle de constitucionalidade das leis experimentada a partir de então. Assim, concedeu liminar no mandado de segurança para suspender decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que havia declarado inconstitucional o artigo 67 da Lei 9.478/1997.
O dispositivo autorizava a Petrobras a celebrar contratos para aquisição de bens e serviços mediante a adoção de procedimento licitatório simplificado, e foi regulamentado pelo Decreto 2.745/1998, que instituiu tal regime especial para a Petrobras. Com base nessa compreensão, o TCU decidiu, no âmbito de uma auditoria, que também o Decreto regulamentador do art. 67 da Lei 9.478/1997 era inconstitucional e, consequentemente, a Petrobras deveria conduzir seus procedimentos licitatórios pelas regras do regime geral de licitação, postas na Lei 8.666/1993.
Em 2020, o relator extinguiu o mandado de segurança, ao fundamento de que a nova Lei das Estatais, Lei 13.303/2016, revogou o artigo 67 da Lei 9.478/1997 e estabeleceu um regime licitatório voltado para as estatais, consoante requerido pela Constituição de 1988 (art. 173, §1º, inciso III). A Petrobras apresentou agravo contra a decisão do ministro, sustentando a necessidade de exame do mérito do mandado de segurança porque as normas revogadas ainda teriam repercussão em situações jurídicas anteriores à revogação.
Súmula 347
Em seu voto pelo desprovimento do agravo, o ministro Gilmar Mendes identificou que o cerne do problema residia na compreensão que a Corte de Contas possuía sobre a extensão da prerrogativa conferida pela Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal, que diz que “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e atos do poder público”.
O relator afirmou a importância de recuperar o significado originário da Súmula 347. O precedente representativo do verbete é de 1961, e versou sobre julgamento do Tribunal de Contas do Estado do Ceará que negou registro a ato de aposentadoria fundamentado em lei estadual que já havia sido reputada inconstitucional pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Sob essa luz, Mendes apontou que a Súmula 347 jamais poderia ser lida como uma licença para que as Cortes de Contas realizem controle abstrato de constitucionalidade. Na realidade, “o verbete confere aos Tribunais de Contas – caso imprescindível para o exercício do controle externo – a possibilidade de afastar (incidenter tantum) normas cuja aplicação no caso expressaria um resultado inconstitucional (seja por violação patente a dispositivo da Constituição ou por contrariedade à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria)”.
Sob essa compreensão, o relator concluiu que a Súmula 347 mostra-se compatível com a ordem constitucional de 1988, desde que se perceba que o tratamento de questões constitucionais por Tribunais de Contas observe “a finalidade de reforçar a normatividade constitucional”: “da Corte de Contas espera-se a postura de cobrar da administração pública a observância da Constituição, mormente mediante a aplicação dos entendimentos exarados pelo Supremo Tribunal Federal em matérias relacionadas ao controle externo”.
Caso concreto
Com base em tais parâmetros, o relator verificou, em seu voto, que a invocação da Súmula 347 do STF, pelo TCU, conferiu à Corte de Contas a possibilidade de “vulnerar o princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, considerando que o quadro revelava cenário em que: (i) não havia inconstitucionalidade manifesta; (ii) não existia jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade do tema; (iii) a doutrina apontava na direção oposta àquela que fora adotada pelo Tribunal de Contas da União”.
Assinalou, contudo, a perda do objeto do Mandado de Segurança, em razão da superveniência da Lei das Estatais, no que foi seguido pelos ministros Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Edson Fachin (com ressalvas de fundamentação).
Divergência
O ministro André Mendonça abriu divergência para prover o agravo e cassar a decisão do TCU, por entender que, a partir da Emenda Constitucional 9/1995, a Petrobras passou a explorar petróleo em regime de livre competição e, até a edição da Nova Lei das Estatais, se submetia ao procedimento licitatório simplificado. Seu voto, vencido, foi seguido pelos ministros Nunes Marques e Luiz Fux.