Imagine a seguinte situação
hipotética:

Pedro, médico
oftalmologista, juntamente com outros profissionais da mesma especialidade,
pediram para ingressar na Unimed (cooperativa de médicos).

A Unimed negou
o pedido afirmando que não tem mais condições financeiras para o custeio de
novos associados.

Diante disso,
Pedro e os demais oftalmologistas ingressaram com ação de obrigação de fazer,
pedindo que a Unimed fosse condenada a aceitá-los.

Os autores
argumentaram que essa recusa seria abusiva porque o art. 4º, I e o art. 29, da
Lei nº 5.764/71 (Lei das Cooperativas) preveem o princípio das portas abertas,
de forma que o ingresso nas cooperativas é livre a todos os que desejaram
utilizar os serviços prestados pela sociedade.

 

Impossibilidade
técnica

Foi designada
uma perícia que constatou que a Unimed estava funcionando no limite e que o
ingresso de novos médicos nessa especialidade poderia comprometer o equilíbrio
econômico-financeiro da cooperativa.

O perito
consignou que a admissão de novos cooperados deve ser precedida de uma
avaliação de mercado, objetivando-se conhecer as demandas que a clientela está
sinalizando. O aumento do número de cooperados ocasiona um aumento das despesas
administrativas da cooperativa. Por isso, se a admissão de novos cooperados na
Unimed for unilateral, ou seja, apenas pelo desejo dos que pretendem se
associar, a cooperativa corre o risco de admitir profissionais médicos de
especialidades que não tragam, em consequência, aumento de receitas, correndo
risco de não mais conseguir cobrir seus custos.

Diante disso, o
magistrado julgou o pedido improcedente, tendo a sentença sido mantida pelo
TJ/PE.

Houve, então,
recurso especial.

 

O STJ
concordou com o entendimento do TJ/PE? A recusa da Unimed foi legítima?

SIM.

A Cooperativa
de Trabalho Médico pode limitar, justificada e objetivamente, nos termos de seu
estatuto, o ingresso de médicos em seus quadros sob o argumento de necessidade
de preservação de equilíbrio econômico-financeiro, nos termos do art. 4º, I, e
art. 29 da Lei nº 5.764/71.

Vamos entender.

 

O que é
uma cooperativa?

Cooperativas
são sociedades de pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens
ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem
objetivo de lucro.

 

A
admissão de associados pode ser restringida?

SIM. A admissão
dos associados poderá ser restrita, a critério do órgão normativo respectivo,
às pessoas que exerçam determinada atividade ou profissão ou estejam vinculadas
a determinada entidade. Ex: na cooperativa de médicos somente podem ingressar
os profissionais regularmente habilitados como médicos.

 

Como
funcionam as cooperativas de trabalho?

Nas
cooperativas de trabalho, como a de médicos, a produção (ou o oferecimento de
serviço) é realizada em conjunto pelos associados, sob a proteção da própria
cooperativa.

Assim, a
cooperativa coloca à disposição do mercado a força de trabalho, cujo produto da
venda – após a dedução de despesas – é distribuído, por equidade, aos
associados, ou seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado
(número de consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).

Essas
cooperativas têm como finalidade melhorar os salários e as condições de
trabalho pessoal de seus associados, dispensando, mediante ajuda mútua, a
intervenção de um patrão ou empresário, procurando sempre o justo preço, já que
a entidade não busca o lucro: a sobra apurada em suas operações é distribuída
em função do montante operacional de cada associado.

 

O que faz
uma cooperativa de trabalho médico?

A cooperativa de trabalho, como a
de médicos, coloca à disposição do mercado a força de trabalho.

O produto arrecadado com a
prestação desses serviços é utilizado para pagamento das despesas da própria
cooperativa e, em seguida, é distribuído, por equidade, entre os associados, ou
seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado (número de
consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).

Conforme explica a doutrina especializada:

“8.1. A
realidade brasileira ostenta um expressivo conjunto de cooperativas de
serviços, constituídas por médicos, que celebram contratos para que
beneficiários contratuais recebam assistência médica por parte de cooperados.

8.2. Têm elas
dupla qualificação. São cooperativas, constituídas conforme o Código Civil e a
Lei nº 5.764 de 1971 e, igualmente, operadoras de planos de saúde, como tais
definidas pela Lei nº 9.656, a lei dos planos de saúde.

8.3. As
cooperativas de serviços médicos foram criadas na década de 1970, como
movimento classista contra a massificação e o aviltamento financeiro
decorrentes da estatização forçada da atividade médica e surgimento de empresas
que compravam trabalho médico e revendiam com lucro.

8.4. Os sócios
dessas cooperativas oferecem, coletivamente, na forma de convênios, a preços
acessíveis, suas clínicas privadas, aos interessados, num atendimento que
sobrepuja, em qualidade, o dispensado nas filas previdenciárias e nos
ambulatórios das medicinas de grupo. Daí o sucesso crescente do empreendimento
que, salvo alguns percalços, espraia-se hoje por toda a geografia brasileira,
assumindo a feição de autêntica instituição nacional.” (ROSE, Marco Túlio de.
Cooperativas Médicas, Saúde Suplementar e Colisão (Cap. X). In: Comentários à
Legislação das Sociedades Cooperativas: Tomo II. KRUEGER, G.; MIRANDA, A. B.
(Coord.), Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, págs. 284/285)

 

Princípio cooperativista da
adesão livre (princípio da livre adesão voluntária)

O princípio cooperativista da
adesão livre desdobra-se em dois outros:

a) o princípio da voluntariedade,
em que ninguém deve ser coagido a ingressar em uma sociedade cooperativa, de
modo que o pedido de ingresso deve partir da vontade livre e desembaraçada do
proponente; e

b) o princípio da porta aberta,
o qual prega que a adesão deve ser aberta a todas as pessoas que aceitem as
responsabilidades próprias da filiação e tenham a possibilidade de usufruir as
utilidades da cooperativa.

 

Desse modo, o ingresso nas
cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela
sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas
no estatuto.

Em regra, não há limitação quanto
ao número de associados.

Exceção: podem ser impostas
restrições se houver impossibilidade técnica de prestação de serviços.

Veja os dispositivos da Lei nº 5.764/71 que tratam sobre o
tema:

Art. 4º As cooperativas são sociedades
de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não
sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados,
distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

I – adesão voluntária, com número
ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de
serviços;

(…)

 

Art. 29. O ingresso nas cooperativas é
livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela sociedade,
desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas
no estatuto, ressalvado o disposto no artigo 4º, item I, desta Lei.

 

Princípio da porta aberta

Por força do princípio da porta
aberta, consectário do princípio da livre adesão, não podem existir restrições
arbitrárias e discriminatórias à livre entrada de novo membro na cooperativa,
devendo a regra limitativa da impossibilidade técnica de prestação de serviços
ser interpretada segundo a natureza da sociedade cooperativa, sobretudo porque
a cooperativa não visa o lucro, além de ser um empreendimento que possibilita o
acesso ao mercado de trabalhadores com pequena economia, promovendo, portanto,
a inclusão social.

A proibição imotivada de novos cooperados é proibido pela
lei porque o incentivo ao cooperativismo é de interesse público, tal como
preconizado pelo art. 174, § 2º da Constituição Federal:

Art. 174 (…)

§ 2º A lei apoiará e estimulará o
cooperativismo e outras formas de associativismo.

 

Logo, não atingida a capacidade
máxima de prestação de serviços pela cooperativa, que deverá ser aferida por
critérios técnicos e verossímeis, pois isso a impediria de cumprir sua
finalidade de colocar suas atividades à disposição de seus componentes, é
vedada a recusa de admissão de novos associados qualificados (STJ. 4ª Turma.
REsp nº 661.292/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 8/6/2010).

Em outras palavras, a recusa de
ingresso de profissional na cooperativa de trabalho médico não pode se dar sem
haver estudos técnicos de viabilidade, somente em razão de presunções acerca da
suficiência numérica de associados na região exercendo a mesma especialidade.

A simples inconveniência para
cooperados que já compõem o quadro associativo (eventual diminuição de lucros
para eles) não caracteriza motivo técnico suficiente para impedir o ingresso de
novos cooperados (STJ. 3ª Turma. REsp nº 1.479.561/SP, Rel. Min. Ricardo Villas
Bôas Cueva, DJe 28/11/2014).

 

Princípio da porta aberta
não é absoluto

O princípio da porta aberta
(livre adesão) não é absoluto, devendo a cooperativa de trabalho médico, que
também é uma operadora de plano de saúde, velar por sua qualidade de
atendimento e situação financeira estrutural, até porque pode ser condenada
solidariamente por atos danosos de cooperados a usuários do sistema (a exemplo
de erros médicos), o que impossibilitaria a sua viabilidade de prestação de
serviços.

Dessa forma, se for atingida a
capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa, aferível por
critérios objetivos e verossímeis, é possível a recusa de novos associados já
que o número acima do tolerado impediria a cooperativa de cumprir as suas
finalidades.

 

Duas restrições

As restrições ao ingresso na
cooperativa são de duas ordens:

a) a primeira, contida no art.
4º, I, referente à própria logística de prestação de serviços previstos pela
sociedade, que pode encontrar limites operacionais de ordem técnica; e

b) a segunda, relacionada aos
propósitos sociais da cooperativa e ao preenchimento, pelo aspirante, das
condições estabelecidos no estatuto, as quais podem versar, inclusive, sobre
restrições a categorias de atividade ou profissão.

 

Atingida a capacidade
máxima, é possível a recusa de novos associados

Diante do híbrido regime jurídico
ao qual as Cooperativas de Trabalho Médico estão sujeitas (Lei nº 5.764/71 e
Lei nº 9.656/98), é juridicamente legítima a limitação, de forma impessoal e
objetiva, do número de médicos cooperados, tendo em vista o mercado para a
especialidade e o necessário equilíbrio financeiro da cooperativa.

A interpretação harmônica das
duas leis de regência consolida o interesse público que permeia a atuação das
cooperativas médicas e viabiliza a continuidade das suas atividades, mormente
ao se considerar a responsabilidade solidária existente entre médicos
cooperados e cooperativa e o possível desamparo dos beneficiários que
necessitam do plano de saúde.

Assim, é admissível a recusa de
novos associados se for atingida a capacidade máxima de prestação de serviços
pela cooperativa, o que deve ser aferido por critérios objetivos e verossímeis.
Neste caso, a recusa é legítima porque a entrada de novos sócios pode comprometer
o equilíbrio econômico-financeiro da cooperativa, impedindo-a de cumprir sua
finalidade.

O princípio da porta aberta
(livre adesão) não é absoluto, devendo a cooperativa de trabalho médico, que
também é uma operadora de plano de saúde, velar por sua qualidade de
atendimento e situação financeira estrutural, até porque pode ser condenada
solidariamente por atos danosos de cooperados a usuários do sistema (a exemplo
de erros médicos), o que impossibilitaria a sua viabilidade de prestação de
serviços. Nesse sentido: STJ. 3ª Turma. REsp 1.901.911/SP, Rel. Min. Ricardo
Villas Bôas Cueva, julgado em 24/8/2021.

 

Em suma:

A Cooperativa de Trabalho Médico
pode limitar, justificada e objetivamente, o ingresso de médicos em seus
quadros.

STJ. 4ª
Turma. REsp 1.396.255-SE, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em
07/12/2021 (Info 723).

 

Vale ressaltar que o eventual
insucesso no processo de seleção realizado pela cooperativa, atendidos
critérios objetivos, não impede o exercício da profissão médica em variados
estabelecimentos de saúde, e nem a prestação de serviço como credenciado de
outras operadoras de planos de assistência à saúde.

Artigo Original em Dizer o Direito

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