O ordenamento jurídico brasileiro é claro ao determinar que os honorários de sucumbência (devidos pela parte perdedora de uma ação aos advogados da parte vencedora) devem ser qualificados como prestação alimentícia. Dessa maneira, o Superior Tribunal de Justiça está confrontando a lei ao colocar novamente em discussão esse assunto, de acordo com os estudiosos do tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Na última quarta-feira (16/8), a Corte Especial do STJ reiniciou o debate sobre a possibilidade de penhorar verbas remuneratórias das pessoas que devem honorários de sucumbência. Relator da matéria, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva entendeu que a penhora dessas verbas é inviável, enquanto o ministro Humberto Martins abriu a divergência. O julgamento foi interrompido por causa do pedido de vista do ministro Luis Felipe Salomão.
O tema é extremamente controvertido, já foi julgado pelo próprio STJ (decidido por 7 votos a 6 pela Corte Especial em 2020), tem admitido ressalvas e ainda não foi pacificado. Devido ao impacto do julgamento, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil atua como amicus curiae (amigo da corte) no processo.
Dúvida cruel
Verbas remuneratórias como vencimentos, salários, remunerações e aposentadoria, destinadas ao sustento da família, e quantias de até 40 salários mínimos depositadas em caderneta de poupança são, em regra, impenhoráveis. É o que diz o artigo 833, incisos IV e X, do Código de Processo Civil. Contudo, o parágrafo 2º abre uma exceção: essas verbas deixam de ser impenhoráveis se a hipótese for de pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem.
A dúvida é se os honorários de sucumbência podem ser qualificados como prestação alimentícia. Em caso positivo, abre-se a possibilidade da penhora do salário do devedor. Caso contrário, a medida fica vetada, conforme decidiu a Corte Especial do STJ em 2020.
Sócio do escritório Tucci Advogados Associados, professor titular sênior da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, José Rogério Cruz e Tucci diz não entender por que o STJ voltou a discutir o tema, uma vez que a legislação já dispõe que os honorários advocatícios são equiparados a verba alimentar. Ele lembra que o parágrafo 14 do artigo 85 do Código de Processo Civil apresenta essa norma de maneira muito clara.
“É uma discussão (do STJ) contra a lei. A legislação não diz que os honorários advocatícios não têm privilégios. É lógico que eu não posso deixar a parte que tem de me pagar à míngua. Não é que eu vou pegar o salário da parte e deixá-la na mão.”
Para Tucci, cabe ao juiz, seguindo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, estabelecer uma margem para a penhora. “Não adianta nada eu me alimentar e deixar o outro sem recursos. É o juiz quem tem de dosar essa penhora. Essa exceção tem de ser dosada e norteada pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.”
O professor destaca ainda que, caso o STJ decida que os honorários não devem ser qualificados como prestação alimentícia, a discussão pode ser levada ao Supremo Tribunal Federal. “Os honorários de um advogado constituem um meio de sustento. Por essa razão, estamos em um plano de igualdade. Caso se negue esse raciocínio, cabe a discussão perante ao STF, que já reconheceu que os honorários têm natureza alimentar.”
Leno Ferreira, sócio do MMA Legal, defende que a legislação não estabelece hierarquias entre verbas de natureza alimentar. “Os honorários sucumbenciais devem ter o mesmo tratamento que todas as demais verbas alimentares, inclusive no que concerne à possibilidade de se penhorar o salário do devedor para a satisfação. O meu entendimento é com base na lei. Os honorários sucumbenciais são tratados pelo ordenamento jurídico como verba de natureza alimentar, inclusive com os privilégios desta em diversos momentos.”
No entendimento de Roger Maier Böing, sócio do Böing Gleich Advogados, é possível, inclusive, a penhora de valores depositados em cadernetas de poupança para quitar honorários de advogados.
“A discussão gira em torno da suposta distinção entre prestação alimentícia e natureza alimentar. No entanto, ao analisarmos sob o prisma da advocacia, nos parecem conceitos indissociáveis. O advogado, principalmente o autônomo, sobrevive e depende dos honorários. Algumas partes alegam que um julgamento favorável à penhorabilidade poderia privilegiar grandes bancas, ou até escritórios internacionais, em detrimento dos devedores. Entretanto, há de ser sopesado que muitos se utilizam da proteção legal conferida pelo CPC para justamente não honrar seus compromissos, blindando-se contra a penhora”, disse ele. “Um novo julgamento sobre a matéria, passados três anos, é um indicativo de que ela, jamais pacificada, precisa ser revista em prol da advocacia.”
Por sua vez, Luis Felipe Gomes, do escritório Schmidt Valois Advogados, lembra que o ordenamento jurídico brasileiro estabelece a impenhorabilidade das verbas remuneratórias, pelo fato de elas serem necessárias para a manutenção do mínimo existencial, mas admite casos excepcionais.
“Existem algumas exceções à impenhorabilidade das verbas remuneratórias, como, por exemplo, a prevista no §2º do artigo 833 do Código de Processo Civil, que afasta a impenhorabilidade na hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários mínimos mensais. Dessa forma, mostra-se correta, desde que preenchidos estes requisitos, a penhora de verbas remuneratórias para quitação de honorários advocatícios de sucumbência. Os honorários sucumbenciais devem ser considerados como prestação alimentícia, exatamente por possuírem natureza alimentar, conforme prevê, expressamente, o §14º do art. 85 do CPC.”
Por Renan Xavier
Fonte: @consultor_juridico