Caso concreto

Determinada associação de amparo
aos deficientes visuais ajuizou ação civil pública contra o Banco do Brasil pedindo
que a instituição financeira fosse condenada a:

a) confeccionar em Braille os
contratos de adesão que são assinados para contratação de seus serviços a fim
de que os clientes com deficiência visual pudessem ter conhecimento, por meio
próprio, das cláusulas;

b) enviar os extratos mensais
impressos em linguagem Braille para os clientes com deficiência visual;

c)
desenvolver cartilha para seus empregados com normas de conduta para
atendimentos ao deficiente visual;

d) pagar indenização pelos danos
morais coletivos causados, valor a ser recolhido em favor do Fundo de Defesa de
Direitos Difusos.

O Banco contestou a ação
sustentando, dentre outros argumentos, que o pedido não tem amparo legal e que o
BACEN disciplina os requisitos e trâmites exigíveis durante a contratação
bancária e não impõe que os contratos sejam fornecidos em Braille. A Resolução
do BACEN exige apenas que as contratações feitas com deficientes visuais sejam
precedidas de leitura, em voz alta, por terceiro, das cláusulas contratuais, na
presença de testemunhas.

O STJ
concordou com os pedidos feitos pela associação?

SIM. As
instituições financeiras devem utilizar o sistema Braille na confecção dos
contratos bancários de adesão e todos os demais documentos fundamentais para a
relação de consumo estabelecida com indivíduo portador de deficiência visual.

STJ. 3ª Turma.
REsp 1.315.822-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 24/3/2015 (Info
559).

Fundamentos legais:

Apesar de não haver uma lei que
diga de forma expressa que as instituições financeiras devem oferecer seus
documentos em Braille para os clientes cegos, é possível extrair esse dever de
três diplomas normativos presentes em nosso ordenamento jurídico:

1) Lei 4.169/62

O art. 1º da Lei n.° 4.169/1962 oficializa as
convenções Braille para uso na escrita e leitura dos cegos.

2) Lei 10.048/2000

A Lei n.° 10.048/2000 determina que as
pessoas portadoras de deficiência devem ter prioridade de atendimento,
inclusive em instituições financeiras. A referida Lei, ao estabelecer normas
gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas
portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, explicitou a necessidade
de que sejam suprimidas todas as barreiras e obstáculos existentes para pessoas
com deficiência, em especial, nos meios de comunicação.

3) Decreto 6.949/2009

O Decreto 6.949/2009 promulgou a
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo, cujo texto possui valor equivalente ao de uma emenda
constitucional, e, por veicular direitos e garantias fundamentais do indivíduo,
tem aplicação concreta e imediata (art. 5º, §§ 1º e 3º, da CF/88).

A convenção impôs aos Estados
signatários a obrigação de assegurar às pessoas portadoras de deficiência o
exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais, conferindo-lhes tratamento materialmente igualitário
(diferenciado na proporção de sua desigualdade), acessibilidade física, de
comunicação e informação, além de inclusão social, autonomia e
independência. 

Especificamente sobre a barreira
da comunicação, a Convenção faz menção em diversos dispositivos ao método
Braille, determinando que ele seja incentivado como forma de propiciar aos
deficientes visuais o efetivo acesso às informações.

Nesses termos, valendo-se das
definições trazidas pelo Tratado, pode-se afirmar que a não utilização do
método Braille durante as negociações e assinatura do contrato configuram, a um
só tempo, intolerável discriminação por deficiência e inobservância da almejada
“adaptação razoável”.

4) CDC

A utilização do método Braille
nos contratos bancários com pessoas portadoras de deficiência visual encontra
fundamento, ainda, na legislação consumerista, que preconiza ser direito básico
do consumidor o fornecimento de informação suficientemente adequada e clara do
produto ou serviço oferecido, encargo a ser observado não apenas por ocasião da
celebração do contrato, mas também durante todas as fases, inclusive
pré-contratual. No caso do consumidor deficiente visual, a consecução deste
direito somente é alcançada por meio da utilização do método Braille, que
viabiliza a integral compreensão das cláusulas contratuais submetidas à sua
apreciação, especialmente aquelas que impliquem limitações de direito, assim
como dos extratos mensais, dando conta dos serviços prestados, taxas cobradas
etc.

Alegação de o BACEN não fazer
essa exigência

Ressalte-se que, diante da
magnitude do direito em exame, que tem fundamento na convenção internacional,
na CF/88 e na lei, mostra-se sem qualquer relevância o fato de a Resolução
2.878/2001 do BACEN não exigir o método Braille, contentando-se com a mera
leitura em voz alta das cláusulas contratuais. 
Este singelo procedimento é insuficiente à proteção dos interesses dos
deficientes visuais, além de violar sua intimidade, já que outras pessoas
(terceiros) terão acesso às suas informações bancárias, que serão lidas perante
testemunhas.

É de se concluir, assim, que a
obrigatoriedade de confeccionar em Braille os contratos bancários de adesão
para os clientes portadores de deficiência visual, além de encontrar esteio no
ordenamento jurídico nacional, afigura-se absolutamente razoável e consentâneo
com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Danos morais coletivos

A jurisprudência mais recente do
STJ tem admitido a existência de dano extrapatrimonial coletivo e o correspondente
dever de repará-lo.

O artigo 6º, VI, do CDC é
explícito ao possibilitar o cabimento de indenização por danos morais aos
consumidores, tanto de ordem individual quanto coletivamente. De igual modo, o
artigo 1º da LACP, admite a pretensão reparatória por danos extrapatrimoniais
causados a qualquer interesse difuso ou coletivo.

Assim, o STJ entende que é
possível, em tese, a configuração de dano moral coletivo sempre que a lesão ou
a ameaça de lesão levada a efeito pela parte demandada atingir valores e
interesses fundamentais do grupo, afigurando-se, pois, descabido negar a essa
coletividade o ressarcimento de seu patrimônio imaterial aviltado.

A propósito, cita-se os seguintes
precedentes:

(…) O dano moral
coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe
específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de
prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das
individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação
jurídica-base.

2. O dano extrapatrimonial
coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico,
suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos
interesses difusos e coletivos. (…)

STJ. 2ª Turma. REsp 1057274/RS,
Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 01/12/2009.

(…) 8. O dano moral
coletivo é a lesão na esfera moral de uma comunidade, isto é, a violação de
direito transindividual de ordem coletiva, valores de uma sociedade atingidos
do ponto de vista jurídico, de forma a envolver não apenas a dor psíquica, mas
qualquer abalo negativo à moral da coletividade, pois o dano é, na verdade,
apenas a consequência da lesão à esfera extrapatrimonial de uma pessoa.

9. Há vários julgados
desta Corte Superior de Justiça no sentido do cabimento da condenação por danos
morais coletivos em sede de ação civil pública. (…)

10. Esta Corte já se
manifestou no sentido de que “não é qualquer atentado aos interesses dos
consumidores que pode acarretar dano moral difuso, que dê ensanchas à
responsabilidade civil. Ou seja, nem todo ato ilícito se revela como afronta
aos valores de uma comunidade. Nessa medida, é preciso que o fato transgressor
seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele
deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos,
intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial
coletiva. (REsp 1.221.756⁄RJ, Rel. Min. MASSAMI UYEDA, DJe 10.02.2012).

(…)

12. Afastar, da espécie, o
dano moral difuso, é fazer tabula rasa da proibição elencada no art. 39, I, do
CDC e, por via reflexa, legitimar práticas comerciais que afrontem os mais
basilares direitos do consumidor. (…)

STJ. 2ª Turma. REsp
1397870/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 02/12/2014

No caso concreto, o STJ entendeu
que a relutância da instituição financeira em utilizar o método Braille nos
contratos bancários de adesão firmados com pessoas portadoras de deficiência
visual confere-lhe tratamento manifestamente discriminatório e tem o condão de
afrontar a dignidade deste grupo de pessoas gerando danos morais coletivos.

Resumindo:

As instituições financeiras devem
confeccionar em Braille os contratos de adesão que são assinados para
contratação de seus serviços a fim de que os clientes com deficiência visual
possam ter conhecimento, por meio próprio, das cláusulas contratuais ali
contidas.

Os bancos devem também enviar os extratos
mensais impressos em linguagem Braille para os clientes com deficiência visual.

Além disso, tais instituições devem
desenvolver cartilha para seus empregados com normas de conduta para
atendimentos ao deficiente visual.

A relutância da instituição financeira em
utilizar o método Braille nos contratos bancários de adesão firmados com
pessoas portadoras de deficiência visual representa tratamento manifestamente
discriminatório e tem o condão de afrontar a dignidade deste grupo de pessoas
gerando danos morais coletivos.

STJ. 3ª Turma.
REsp 1.315.822-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 24/3/2015 (Info
559).

Obs: apesar de a decisão, no caso
concreto, ter envolvido apenas o Banco do Brasil, o raciocínio e os argumentos
empregados podem ser aplicados para todas as demais instituições financeiras.

Artigo Original em Dizer o Direito

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