NOÇÕES GERAIS SOBRE ADOÇÃO À
BRASILEIRA

O que é a chamada “adoção à
brasileira”?

“Adoção à brasileira” ou “adoção à moda
brasileira” ocorre quando o homem ou a mulher declara, para fins de registro
civil, um menor como sendo seu filho biológico, sem que isso seja verdade.

Exemplo

Carla tinha um namorado (Bruno), tendo
ficado grávida desse rapaz. Ao contar a Bruno sobre a gravidez, este achou que
era muito novo para ser pai e “sumiu”, não deixando paradeiro conhecido.

Três meses depois,
Carla decide se reconciliar com André, seu antigo noivo, que promete à amada
que irá se casar com ela e “assumir” o nascituro. No dia em que nasce a
criança, André vai até o registro civil de pessoas naturais e, de posse da DNV
(declaração de nascido vivo) fornecida pela maternidade, declara que o menor
recém-nascido (Vitor) é seu filho e de Carla, sendo o registro de nascimento
lavrado nesses termos.

Por que recebe esse nome?

Essa prática é chamada pejorativamente
de “adoção à brasileira” porque é uma espécie de “adoção” realizada sem
observar as exigências legais, ou seja, uma adoção feita segundo o “jeitinho
brasileiro”. Tecnicamente, contudo, não se trata de adoção, porque não segue o
procedimento legal. Consiste, em verdade, em uma perfilhação simulada.

A “adoção à brasileira” é permitida?

NÃO. Formalmente, esta conduta é até
mesmo prevista como crime pelo Código Penal:

Parto suposto. Supressão ou alteração
de direito inerente ao estado civil de recém-nascido

Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o
filho de outrem
; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou
alterando direito inerente ao estado civil:

Pena — reclusão, de dois a seis anos.

Parágrafo único — Se o crime é
praticado por motivo de reconhecida nobreza:

Pena — detenção, de um a dois anos,
podendo o juiz deixar de aplicar a pena.

Vale ressaltar, entretanto, que, na
prática, dificilmente alguém é condenado ou recebe pena por conta desse delito.
Isso porque, no caso concreto, poderá o juiz reconhecer a existência de erro de
proibição ou, então, aplicar o perdão judicial previsto no parágrafo único do
art. 242 do CP.

É preciso, no entanto, que seja
investigada a conduta porque, embora a “adoção à brasileira”, na maioria das
vezes, não represente torpeza de quem a pratica, pode ela ter sido utilizada
para a consecução de outros ilícitos, como o tráfico internacional de crianças.

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE
PATERNIDADE CONTRA O PAI BIOLÓGICO SEM ANULAÇÃO DO REGISTRO NO QUAL CONSTA
OUTRO PAI

Voltando ao exemplo dado:

Vitor foi criado e educado por André
com todo amor e carinho e, perante a família e amigos, Vitor é conhecido como
filho de André, sendo poucos os que sabem que não existe vínculo biológico
entre eles.

Quando o rapaz completou 18 anos, Carla
decide contar a ele que André não é seu pai biológico, mas sim Bruno, narrando
toda a história vivenciada.

Vitor descobre no Facebook que Bruno,
seu pai biológico, é um rico empresário, sendo possível observar pelas fotos
postadas que ele passa férias em lugares incríveis ao redor do mundo. Enquanto
isso, Vitor teve que trancar a faculdade que cursava por não conseguir pagar as
mensalidades e, atualmente, trabalha como chapeiro em uma lanchonete do bairro.

Vitor procura a Defensoria Pública,
explica a situação, afirma que deseja ser reconhecido como filho de Bruno, ter
todos os direitos inerentes a essa condição, mas, ao mesmo tempo, ama muito
André e não quer deixar de ser seu filho.

O Defensor Público ajuíza ação de
investigação de paternidade cumulada com alimentos contra Bruno pedindo que ele
seja reconhecido como pai biológico de Vitor e que, ao mesmo tempo, André
continue também figurando como pai do autor. Em suma, na certidão de nascimento
de Vitor constariam dois pais: Bruno e André. Além disso, pede-se a fixação de
alimentos a serem pagos por Bruno a fim de que Vitor consiga custear sua
faculdade.

O réu contestou a ação afirmando que o
Direito brasileiro não admite a dupla filiação e que a paternidade socioafetiva
deve prevalecer em detrimento da biológica. Assim, como o autor não deseja
anular a filiação socioafetiva, não se deve reconhecer a filiação biológica.

O pedido formulado pelo autor pode ser
acolhido? É possível que o indivíduo busque ser reconhecido como filho
biológico de determinado pai e, ao mesmo tempo, continue como filho
socioafetivo de outro? É possível que uma pessoa tenha dois pais: um biológico
e outro socioafetivo e receba de ambos os direitos relacionados a essa filiação?

SIM.

A
paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o
reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica,
com os efeitos jurídicos próprios.

STF. Plenário. RE 898060/SC, Rel. Min.
Luiz Fux, julgado em 21 e 22/09/2016 (Info 840).

Dignidade da pessoa humana e proteção
dos modelos de família diversos do tradicional

A dignidade da pessoa humana, prevista
no art. 1º, III, da CF/88, é classificada por alguns doutrinadores como sendo
um “sobreprincípio”, porque atua “sobre” outros princípios.

A dignidade humana compreende o ser
humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se
em liberdade. No campo do direito de família, a dignidade da pessoa humana confere
ao indivíduo a possibilidade de que ele escolha o formato de família que ele quiser,
de acordo com as suas relações afetivas interpessoais, mesmo que elas não
estejam previstas em lei.

Direito à busca da felicidade

O chamado “direito à busca da
felicidade” está estritamente ligado à dignidade da pessoa humana. Alguns
dizem que ele deriva deste sobreprincípio e outros afirmam que ele é o próprio
cerne (núcleo) da dignidade da pessoa humana.

A origem histórica do direito à busca
da felicidade está em 4 de julho de 1776, na Filadélfia, Pensilvânia, quando foi
publicada a declaração de independência dos Estados Unidos da América. Em seu
preâmbulo, o documento exibe a seguinte frase atribuída a Thomas Jefferson:

“Consideramos estas verdades como
evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo
Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a
liberdade e a busca da felicidade.”

O direito à busca da felicidade faz com
que o indivíduo seja o centro do ordenamento jurídico-político que deverá
reconhecer que ele tem a capacidade de autodeterminação, de autossuficiência e a
liberdade de escolher seus próprios objetivos. O Estado deve atuar para
garantir que essas capacidades próprias sejam respeitadas.

O Min. Luiz Fux narra que a primeira
vez em que a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a força normativa do
direito à busca da felicidade foi no caso Meyer v. Nebraska, de 1923 (262 U.S.
390). Havia uma lei do Estado de Nebraska de 1919 que proibia as pessoas de
estudaram idiomas estrangeiros. O objetivo da lei, denominada “Siman Act”,
era perseguir os imigrantes alemães por conta da 1ª guerra mundial. Um
professor de alemão chamado Robert T. Meyer questionou a constitucionalidade da
lei. A Suprema Corte acolheu o pedido e declarou a lei inconstitucional,
afirmando que o direito à busca da felicidade seria uma norma constitucional
implícita e que a lei seria inválida porque interferiu na vocação de
professores, nas oportunidades dos alunos de adquirirem conhecimento e na
prerrogativa dos pais de controlar a educação de seus descendentes. Segundo o
Min. Fux, “a lição mais importante a ser extraída do caso é a de que sequer
em tempos de guerra, excepcionais por natureza, poderá o indivíduo ser reduzido
a mero instrumento de consecução da vontade dos governantes”.

Transportando-se para o Direito de
Família, o direito à busca da felicidade funciona como um escudo do ser humano
em face das tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em
modelos pré-concebidos pela lei. “É o direito que deve se curvar às
vontades e necessidades das pessoas, não o contrário, assim como um alfaiate,
ao deparar-se com uma vestimenta em tamanho inadequado, faz ajustes na roupa, e
não no cliente.”

Dois exemplos de aplicação do direito à
busca da felicidade pela Suprema Corte dos EUA em casos envolvendo direito de
família:

Loving v. Virginia, de 1967 (388
U.S. 1)
: uma mulher negra e um homem branco foram condenados a um ano de
prisão por terem se casado em descumprimento ao Racial Integrity Act, de 1924, lei que proibia casamentos entre
pessoas de “raças diferentes”. A Suprema Corte reverteu a condenação
do casal adotando, dentre outros fundamentos, o de que o direito à liberdade de
casamento é um dos direitos individuais vitais e essenciais para a busca
ordenada da felicidade por homens livres.

Obergefell v. Hodges, de 2015:
este foi o julgado por meio do qual a Suprema Corte dos EUA permitiu o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. Fico decidido que a Constituição reconhece a
possibilidade de casamento de casais homoafetivos porque o direito a casar é
uma decorrência essencial do direito à busca da felicidade. “A Constituição
promete liberdade a todos aqueles sob seu alcance, uma liberdade que inclui
certos direitos específicos que permitem a pessoas, dentro de um âmbito legal,
definir e expressar sua identidade” (trecho do voto do Justice Anthony
Kennedy).

Alguns Ministros do STF, em seus votos,
já invocaram o direito à busca da felicidade em temas de direito de família.
Confira:

“O princípio constitucional da busca da
felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o
postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no
processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais,
qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de
neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa
comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.

– Assiste, por isso mesmo, a todos, sem
qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado
constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia-força
que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.”

(RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de
Mello, DJe de 26/08/2011)

“Reconhecimento do direito à
preferência sexual como direta emanação do princípio da ‘dignidade da pessoa
humana’: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do
indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do
preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual.”

(ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe
de 14/10/2011)

Em suma, tanto a
dignidade humana como o direito à busca da felicidade asseguram que os
indivíduos sejam senhores dos seus próprios destinos, condutas e modos de vida,
sendo proibido que o Estado, seja por meio de seus governantes, seja por
intermédio dos legisladores, imponha modelos obrigatórios de família.

Deve-se garantir também que a pessoa
seja feliz com suas escolhas existenciais. Isso inclui a proteção e o reconhecimento,
pelo ordenamento jurídico, de modelos familiares diversos da concepção
tradicional.

Não há hierarquia entre a filiação
biológica e a afetiva

O Direito deve acolher tanto os
vínculos de filiação originados da ascendência biológica (filiação biológica)
como também aqueles construídos pela relação afetiva (filiação socioafetiva).

Atualmente, não cabe estabelecer uma
hierarquia entre a filiação afetiva e a biológica, devendo ser reconhecidos ambos
os vínculos quando isso for o melhor para os interesses do descendente.

Como afirma o Min. Fux:

“Não cabe à lei agir como o Rei
Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela
impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo
tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a
filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o
reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia
transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros
determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o
contrário.”

Obs: vale ressaltar que a filiação
socioafetiva independe da realização de registro, bastando a consolidação do
vínculo afetivo entre as partes ao longo do tempo, como ocorre nos casos de
posse do estado de filho. Assim, a “adoção à brasileira” é uma das
formas de ocorrer a filiação socioafetiva, mas esta poderá se dar mesmo sem que
o pai socioafetivo tenha registrado o filho.

Pluriparentalidade

O conceito de pluriparentalidade não é
novidade no Direito Comparado. Nos Estados Unidos, onde os Estados têm
competência legislativa em matéria de Direito de Família, a Suprema Corte de
Louisiana possui jurisprudência consolidada quanto ao reconhecimento da “dupla
paternidade” (dual paternity).

Essas decisões da Suprema Corte fizeram
com que, em 2005, houvesse uma alteração no Código Civil estadual de Louisiana e
passou-se a reconhecer expressamente a possibilidade de dupla paternidade. Com isso,
Louisiana se tornou o primeiro Estado norte-americano a permitir legalmente que
um filho tenha dois pais, atribuindo-se a ambos as obrigações inerentes à
parentalidade.

O fato de o legislador no Brasil não
prever expressamente a possibilidade de uma pessoa possuir dois pais (um socioafetivo
e outro biológico) não pode servir de escusa para se negar proteção a situações
de pluriparentalidade. Esta posição, agora adotada pelo STF, já era reconhecida
pela doutrina:

“Não mais se pode dizer que alguém só
pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais.
Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de
múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos
decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com
relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede
sucessória. (…)” (DIAS, Maria Berenice. Manual
de Direito das Famílias
. 6ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 370).

Em suma, é juridicamente possível a
cumulação de vínculos de filiação derivados da afetividade e da consanguinidade.

Paternidade responsável

Haveria uma afronta ao princípio da
paternidade responsável (art. 226, § 7º, da CF/88) se fosse permitido que o pai
biológico ficasse desobrigado de ser reconhecido como tal pelo simples fato de
o filho já ter um pai socioafetivo.

Todos os pais devem assumir os encargos
decorrentes do poder familiar, e o filho deve poder desfrutar de direitos com
relação a todos, não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede
sucessória.

Artigo Original em Dizer o Direito

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