Noções gerais sobre escusa de consciência
Escusa de consciência
Escusa de consciência é o direito que a
pessoa possui de se recusar a cumprir determinada obrigação ou a praticar certo
ato por ser ele contrário às suas crenças religiosas ou à sua convicção
filosófica ou política.
Trata-se de um direito fundamental
assegurado pelo art. 5º, VIII, da CF/88.
Vale ressaltar, no entanto, que a CF
determina que, se o indivíduo se recusar a cumprir a obrigação legal imposta,
ele deverá, em contrapartida, realizar uma prestação alternativa fixada em lei.
Caso se recuse a cumprir a obrigação
originária e também a alternativa, o indivíduo poderá ter seus direitos
políticos suspensos, nos termos do art. 15, IV, da CF/88:
Veja a redação do texto constitucional:
Art. 5º (…)
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa
ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa,
fixada em lei;
Art. 15. É vedada a cassação de direitos
políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
(…)
IV – recusa de cumprir obrigação a todos imposta
ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;
A escusa de consciência é também
chamada de “objeção de consciência” ou “alegação de imperativo de consciência”.
Exemplo típico: participar de guerra
O exemplo mais comum de alegação de
imperativo de consciência é o alistamento militar.
Imagine que determinado indivíduo, por convicções
filosóficas, mostre-se contrário ao serviço militar. Neste caso, a CF/88 prevê
que ele ficar dispensado de praticar atividades essencialmente militares (ex:
treino de tiro, simulação de batalhas etc.), mas terá que cumprir o serviço
alternativo. Trata-se da redação do art. 143, § 1º da CF/88:
Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
§ 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço
alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de
consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de
convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter
essencialmente militar.
(…)
No caso do serviço militar obrigatório, o serviço
alternativo é disciplinado pela Lei nº 8.239/91:
Art. 3º (…)
§ 1º Ao Estado-Maior das Forças Armadas compete, na forma da lei e em
coordenação com os Ministérios Militares, atribuir Serviço Alternativo aos que,
em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência decorrente
de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, para se eximirem de
atividades de caráter essencialmente militar.
§ 2º Entende-se por Serviço Alternativo o exercício de atividades de
caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, em
substituição às atividades de caráter essencialmente militar.
(…)
Outro exemplo: participação como jurado
Em regra, a participação como jurado,
no Tribunal do Júri, é obrigatória (art. 436 do CPP).
É possível, no entanto, que a pessoa sorteada alegue que a
função de jurado contraria sua convicção religiosa, filosófica ou política. Em
outras palavras, ela invoca a escusa de consciência. Neste caso, ela poderá ser
dispensada do serviço do júri, mas terá o dever de prestar um serviço
alternativo. É o que determina o art. 438 do CPP:
Art. 438. A recusa ao serviço do júri fundada em convicção religiosa,
filosófica ou política importará no dever de prestar serviço alternativo, sob
pena de suspensão dos direitos políticos, enquanto não prestar o serviço
imposto.
§ 1º Entende-se por serviço alternativo o exercício de atividades de
caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, no Poder
Judiciário, na Defensoria Pública, no Ministério Público ou em entidade
conveniada para esses fins.
§ 2º O juiz fixará o serviço alternativo atendendo aos princípios da
proporcionalidade e da razoabilidade.
Terceiro exemplo: atividades
escolares em dia de guarda religiosa
A Lei nº 13.796/2019 acrescentou
na Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) o art. 7º-A
prevendo a possibilidade de alteração das datas de provas e de aulas caso estejam
marcadas em “dias de guarda religiosa”.
Em linhas gerais, o que estabelece esse art. 7º-A da LDB:
– O aluno de instituição de ensino
pública ou privada,
– de qualquer nível (ou seja, mesmo
ensino superior),
– possui o direito de
– se ausentar de aula ou mesmo de prova
– caso essa aula ou prova esteja
marcada em um dia no qual,
– segundo os preceitos da religião
desse aluno,
– ele não puder exercer tais atividades,
– ou seja, se a atividade estiver
designada para um “dia de guarda religiosa”.
Escusa de consciência por motivo de crença religiosa e
fixação de horário alternativo para realização de concurso público
Feita a breve revisão acima, imagine
a seguinte situação hipotética:
João se inscreveu no concurso de
agente de segurança de um órgão público.
Após ser aprovado na prova
objetiva, ele foi convocado para o teste físico.
Como eram muitos candidatos, os
testes físicos foram marcados para dois dias: sábado e domingo.
João foi sorteado para fazer a
prova no sábado. Ocorre que ele é membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Segundo a crença religiosa propugnada por esta congregação, o sábado é “dia de
guarda religiosa”, de forma que não é recomendável que os membros da Igreja
estudem ou trabalhem aos sábados. O sábado é dedicado a orações e outras
atividades não seculares (não mundanas).
Diante disso, João pediu para
realizar a prova no domingo, o que foi indeferido pela Administração Pública.
O candidato impetrou, então,
mandado de segurança pedindo para que o seu teste físico fosse realizado no
domingo em razão da sua crença religiosa.
O pedido de João pode ser
acolhido? O que o STF entende a respeito do tema?
SIM. O pedido pode ser acolhido.
O STF, apreciando o tema, fixou a seguinte tese:
Nos termos do art. 5º, VIII, da Constituição Federal
é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários
distintos dos previstos em edital, por candidato que invoca escusa de
consciência por motivo de crença religiosa, desde que presentes a razoabilidade
da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não
acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira
fundamentada.
STF.
Plenário. RE 611874/DF, rel. orig. Min. Dias Toffoli, red. p/ o ac. Min. Edson
Fachin, julgado em 19/11, 25/11 e 26/11/2020 (Repercussão Geral – Tema 386)
(Info 1000).
É possível a fixação de
obrigações alternativas a candidatos em concursos públicos, que se escusem de
cumprir as obrigações legais originalmente fixadas por motivos de crença
religiosa, desde que presentes a razoabilidade da alteração, a preservação da
igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à
Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada.
A fixação de obrigações
alternativas para a realização de certame público ou para aprovação em estágio
probatório, em razão de convicções religiosas, não significa privilégio, mas
sim permissão ao exercício da liberdade de crença sem indevida interferência
estatal nos cultos e nos ritos, nos termos do art. 5º, VI, da CF/88.
Mas o Estado é laico. A
administração pública não poderia indeferir o pedido alegando esse argumento?
NÃO.
O Estado brasileiro é laico (secular ou não-confessional),
ou seja, aquele no qual não se tem uma religião oficial. Isso está consagrado
no art. 19, I, da CF/88:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou
igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou
seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na
forma da lei, a colaboração de interesse público;
Assim, por força deste princípio,
o Estado não pode estar associado a nenhuma religião, nem sob a forma de
proteção, nem de perseguição. Há, portanto, uma separação formal entre Igreja e
Estado.
No entanto, ao mesmo tempo, a CF/88 também assegura a
liberdade religiosa, nos seguintes termos:
Art. 5º (…)
VI – é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias;
O fato de o Estado ser laico (art.
19, I, da CF/88), não lhe impõe uma conduta negativa diante da proteção
religiosa.
A separação entre o Estado
brasileiro e a religião não é absoluta.
O Estado deve proteger a
diversidade em sua mais ampla dimensão, dentre as quais se inclua a liberdade
religiosa e o direito de culto.
Nesse sentido, o papel da
autoridade estatal não é o de remover a tensão por meio da exclusão ou
limitação do pluralismo, mas sim assegurar que os grupos se tolerem mutuamente,
principalmente quando em jogo interesses individuais ou coletivos de um grupo
minoritário.
A separação entre religião e
Estado, portanto, não pode implicar o isolamento daqueles que guardam uma
religião à sua esfera privada. O princípio da laicidade não se confunde com
laicismo. O princípio da laicidade, em verdade, veda que o Estado assuma como
válida apenas uma crença religiosa.
Nessa medida, ninguém deve ser
privado de seus direitos em razão de sua crença ou descrença religiosa, salvo
se a invocar para se eximir de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a
cumprir prestação alternativa (art. 5º, VIII, da CF/88).
Escusa de consciência por motivo de crença religiosa e
fixação de horário alternativo para o exercício de deveres funcionais inerentes
ao cargo público
Imagine outra situação
hipotética:
Regina é professora concursada da
rede pública de ensino.
No planejamento para o ano letivo,
a coordenadora pedagógica realizar o cronograma das aulas e Regina percebeu que
teria que dar aulas segundas, quartas e sextas no período de 18h às 20h.
Ocorre que Regina é membro ativo
da Igreja Adventista do Sétimo Dia e, conforme sua crença religiosa, ela se
sente impossibilitada de realizar atividades profissionais ou acadêmicas no
período entre o por do Sol de sexta-feira ao por do Sol de sábado.
Diante disso, apresentou pedido à
administração pública para que a sua carga horária semanal não abrangesse aulas
noturnas às sextas-feiras.
O pedido de Regina pode ser
atendido?
SIM. Aplicam-se os mesmos
argumentos já expostos acima para o caso do concurso público.
A tese fixada pelo STF é, inclusive, semelhante:
Nos termos do art. 5º, VIII, da Constituição Federal
é possível à Administração Pública, inclusive durante o estágio probatório,
estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres
funcionais inerentes aos cargos públicos, em face de servidores que invocam
escusa de consciência por motivos de crença religiosa, desde que presentes a
razoabilidade da alteração, não se caracterize o desvirtuamento do exercício de
suas funções e não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que
deverá decidir de maneira fundamentada.
STF.
Plenário. RE 611874/DF, rel. orig. Min. Dias Toffoli, red. p/ o ac. Min. Edson
Fachin, julgado em 19/11, 25/11 e 26/11/2020 (Repercussão Geral – Tema 386)
(Info 1021).