Imagine a seguinte situação
hipotética:

João cumpre pena em regime
fechado em um presídio localizado em Corumbá (MS).
A vigilância sanitária do
Município realizou uma inspeção na unidade prisional e constatou que havia
superlotação nas celas, além de outros inúmeros problemas de higiene,
existindo, inclusive, risco de transmissão de doenças. Em razão disso, o órgão
determinou que fossem adotadas medidas para sanar tais deficiências.
Mesmo após este laudo,
passaram-se vários meses e nenhuma providência foi tomada pelo Estado para
corrigir as irregularidades.
Diante disso, João, por meio da
Defensoria Pública, ajuizou ação de indenização por danos morais contra o
Estado do Mato Grosso do Sul sob a alegação de que ele estava sendo submetido a
tratamento desumano e degradante.
Defesa do Estado

A Procuradoria Geral do Estado
contestou a demanda afirmando, dentre outros argumentos, que não há recursos
suficientes para indenizar os presos, devendo ser aplicado o princípio da
reserva do possível.
O STF concordou com a tese do
autor? Uma pessoa que está presa em uma unidade prisional que apresenta
péssimas condições, como superlotação e falta de condições mínimas de saúde e
de higiene possui o direito de ser indenizada pelo Estado diante desta violação
de seus direitos?

SIM. O STF,
ao apreciar o tema, em recurso extraordinário com repercussão geral, fixou a
seguinte tese:
Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo,
manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no
ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º,
da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais,
comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência
das condições legais de encarceramento.

STF. Plenário. RE
580252/MS, rel. orig. Min. Teori Zavascki, red. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes,
julgado em 16/2/2017 (repercussão geral) (Info 854).
Estado é responsável guarda e
segurança dos presos

O Estado é responsável pela
guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto ali
permanecerem detidas. Assim, é
dever do Poder Público mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões
de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir os danos
que daí decorrerem.
A jurisprudência do STF entende
que o Estado possui responsabilidade objetiva pela integridade física e
psíquica daqueles que estão sob sua custódia.
“A negligência estatal no
cumprimento do dever de guarda e vigilância dos detentos configura ato omissivo
a dar ensejo à responsabilidade objetiva do Estado, uma vez que, na condição de
garante, tem o dever de zelar pela integridade física dos custodiados” (trecho
do voto do Min. Gilmar Mendes no ARE 662563 AgR, julgado em 20/03/2012).
Dever imposto pelo ordenamento
nacional e internacional

O dever do Estado de garantir a
segurança pessoal, física e psíquica dos detentos é imposto não apenas no
ordenamento nacional, mas também por compromissos internacionais assumidos pelo
Brasil.
Vejamos o fundamento
constitucional, legal e convencional:
• Constituição Federal, art. 5º,
XLVII, “e”; XLVIII; XLIX;

• Lei 7.210/84 (LEP), arts. 10;
11; 12; 40; 85; 87; 88;

• Lei 9.455/97 (Lei de tortura);

• Lei 12.874/2013 (Sistema
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura);

• Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966, arts. 2; 7; 10; e 14;

• Convenção Americana de Direitos
Humanos, de 1969, arts. 5º; 11; 25;

• Princípios e Boas Práticas para
a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas – Resolução 01/08,
aprovada em 13 de março de 2008, pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos;

• Convenção da ONU contra Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984; e

• Regras Mínimas para o
Tratamento de Prisioneiros – adotadas no 1º Congresso das Nações Unidas para a
Prevenção ao Crime e Tratamento de Delinquentes, de 1955.

Péssimas condições do sistema
prisional

Como é do conhecimento de todos,
o sistema prisional brasileiro vive uma grande crise. São observados inúmeros
problemas, como a superlotação e a falta de condições mínimas de saúde e de
higiene.
O STF, inclusive, já reconheceu
que o sistema penitenciário brasileiro vive um “Estado de Coisas
Inconstitucional”, com uma violação generalizada de direitos fundamentais
dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios acabam
sendo penas cruéis e desumanas.
A
ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes
representa uma verdadeira “falha estrutural” que gera ofensa aos
direitos dos presos, além da perpetuação e do agravamento da situação. Nesse
sentido: STF. Plenário. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em
9/9/2015 (Info 798).

Responsabilidade civil do Estado

A Constituição Federal determina
que cabe ao Estado responder pelos danos causados por ação ou omissão de seus
agentes, em face da autoaplicabilidade do art. 37, § 6º:
Art. 37 (…)
§ 6º As pessoas jurídicas
de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,
assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou
culpa.
O Estado possui o dever de manter
em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento
jurídico. Se esse dever é descumprido, surge para o Poder Público a
responsabilidade de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente
causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições
legais de encarceramento.
Assim, ocorrido o dano e
estabelecido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus
agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado.
Não aplicação do princípio da
reserva do possível

Não há como acolher o argumento
que invoca o “princípio da reserva do possível”.
Segundo este princípio, os
recursos públicos são limitados e as necessidades ilimitadas, de forma que não
há condições financeiras de o Estado atender a todas as demandas sociais.
Ocorre que só faz sentido
considerar este princípio em ações judiciais nas quais está sendo pedida a
implementação de direitos fundamentais a prestações, especialmente direitos de
natureza social (ex: saúde, educação etc.). Em tais casos, discute-se se é
possível conceder o direito pleiteado mesmo que não haja, em tese, capacidade
financeira do Estado.
Aqui, contudo, a situação é
diferente. Neste caso, a matéria jurídica se situa no âmbito da
responsabilidade civil do Estado de responder pelos danos causados por ação ou
omissão de seus agentes, nos termos previstos no art. 37, § 6º, da CF/88.
Trata-se de dispositivo autoaplicável (de eficácia plena), que não depende de
lei ou de qualquer outra providência administrativa. Ocorrendo o dano e
estabelecido o seu nexo causal com a atuação da Administração ou dos seus
agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado.
A criação de subterfúgios
teóricos, tais como a separação dos Poderes, a reserva do possível e a natureza
coletiva dos danos sofridos, para afastar a responsabilidade estatal pelas
calamitosas condições da carceragem afronta não apenas o sentido do art. 37, §
6º, da CF, como também gera o esvaziamento dos dispositivos constitucionais,
convencionais e legais que impõem ao Estado o dever do Estado de garantir a
integridade física e psíquica dos detentos.
Negar a indenização aos detentos
significaria violar o princípio da jurisdição

Negar aos detentos o direito à
indenização pela violação de sua integridade física e moral não é compatível
com o sentido e o alcance do princípio da jurisdição.
Não pode a decisão judicial
desfavorecer sistematicamente a um determinado grupo de sujeitos, sob pena de
comprometer a sua própria legitimidade.
Recusar aos detentos os
mecanismos de reparação judicial dos danos sofridos faz com que eles fiquem
desamparados de qualquer proteção estatal, em condição de vulnerabilidade
juridicamente desastrosa. Seria dupla negativa: do direito e da jurisdição.
Quem deverá pagar esta
indenização?

O Estado-membro responsável pela
unidade prisional.
Se as péssimas condições forem
verificadas em presídio federal (o que não se tem verificado na prática), neste
caso a indenização seria paga pela União.
Como é o pagamento desta
indenização? Pode ser de outra forma que não seja dinheiro?

NÃO. Durante os debates do
julgamento, o Min. Roberto Barroso propôs que a indenização não fosse em
dinheiro, mas sim por meio de remição da pena. Dessa forma, em vez de receber
uma reparação pecuniária, os presos que sofrem danos morais por cumprirem pena
em presídios com condições degradantes teriam direito ao “abatimento”
de dias da pena.
Vale ressaltar que esta solução
do Ministro Barroso não tem previsão na lei e seria feita por meio da
aplicação, por analogia, do art. 126 da LEP:
Art. 126.  O condenado que cumpre a pena em regime
fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo
de execução da pena.
Pela proposta do Ministro, os
danos morais causados a presos por superlotação ou condições degradantes
deveriam ser reparados, preferencialmente, pela remição de parte do tempo da
pena – à razão de um dia de remição para cada 3 a 7 dias cumpridos sob essas
condições adversas, a critério do juiz da Vara de Execuções Penais competente.
Barroso argumentou que, com a solução, ganha o preso, que reduz o tempo de
prisão, e ganha o Estado, que se desobriga de despender recursos com
indenizações, dinheiro que pode ser, inclusive, usado na melhoria do sistema.
O
voto do Min. Barroso foi acompanhado por Luiz Fux e Celso de Mello, sendo,
portanto, minoritário (vencido).

Assim, a maioria do STF decidiu
que a indenização deve ser mesmo em pecúnia.
Valor da condenação

A título de curiosidade, no caso
concreto, o Estado do Mato Grosso do Sul foi condenado a indenizar o preso em
R$ 2 mil.

Artigo Original em Dizer o Direito

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