Quem via os vendedores de panelas pelas ruas e praças no interior de Mato Grosso não fazia ideia de que estava diante de trabalhadores submetidos a trabalho análogo a de escravo: recrutados em pequenas cidades dos estados da Paraíba e do Ceará, com promessa de emprego e bons salários, eles passavam a viver uma realidade degradante de falta de condições básicas de higiene e alimentação insuficiente. Para completar, sofriam com a servidão por dívida, já que o que era oferecido ficava anotado para ser descontado do pagamento, inferior ao salário mínimo.
Transportados por mais de 3 mil quilômetros na carroceria de um caminhão baú até o município de Sinop, o grupo de cinco pessoas, incluindo dois menores de idade, foram cooptados por três intermediários para a revenda das panelas fornecidas pela Indústria de Alumínio Itapety, da cidade paulista de Suzano. O percurso, no qual os trabalhadores dividiam o espaço da carroceria com os produtos a serem vendidos, era feito somente à noite para fugir da fiscalização da Polícia Rodoviária.
O caso chegou à Justiça do Trabalho por meio de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) com base em investigação da Polícia Federal (PF). Os agentes encontraram o grupo dormindo em redes armadas em árvores ao relento, nas proximidades de um posto de combustível às margens da BR 163, em Sinop, sem local para higiene pessoal nem alimentação. À época, a situação vinha se repetindo há 30 dias, com previsão de se estender por mais cinco meses.
Iniciado na 1ª Vara do Trabalho de Sinop, o processo foi remetido para a capital do estado, sendo julgado na 9ª Vara do Trabalho de Cuiabá. A mudança ocorreu em razão de denúncias semelhantes contra a empresa fabricante de panelas em outras localidades, como no estado de Santa Catarina. Assim, diante da possibilidade de um dano de abrangência suprarregional, a competência para julgá-lo passa a ser das varas do trabalho localizadas nas sedes dos tribunais regionais do trabalho.
Servidão por dívida
Os policiais federais encontraram, com um dos responsáveis por recrutar o grupo, diversos cadernos. Neles, haviam anotações de controle dos débitos, iniciados antes mesmo dos trabalhadores saírem de suas cidades no interior do Nordeste e com a indicação de serem pagos com trabalho.
Mesmo que trabalhassem muito, as dívidas só aumentavam, já que o lucro de 5 reais obtidos pela venda de cada jogo de panela era irrisório e pelo fato de terem que pagar os custos das viagens, alimentação e banhos. Situação como de um dos vendedores deixou sua cidade devendo 600 reais e, ao chegar em Mato Grosso, já devia 1,4 mil; outro devia inicialmente 5 mil reais e, no momento da operação policial, o débito já era de 6 mil. Desse modo, mesmo que não vendessem nenhuma panela, contraiam novas dívidas ao longo da viagem.
As investigações revelaram ainda que os trabalhadores só poderiam deixar a prestação do serviço quando conseguissem pagar a dívida ou quando um terceiro as quitasse por eles. Assim, caso quisesse trabalhar para outro dono de caminhão, esse teria de comprar a dívida em nome do trabalhador, que passava a dever ao novo dono de caminhão, estando sujeito a todas as ordens do novo dono.
Trabalho escravo
Ao julgar o caso, a juíza Eliane Xavier reconheceu o vínculo de emprego entre os trabalhadores e os três intermediários responsáveis pela contratação, condenando-os ao pagamento das verbas rescisórias, como aviso prévio, 13º salário e férias proporcionais.
A sentença reconheceu também que o grupo foi submetido a condições de trabalho escravo contemporâneo e, por consequência, condenou os réus a arcar com indenização por danos morais individuais no valor de 10 mil reais a cada trabalhador. Além disso, determinou o pagamento por dano moral coletivo em 100 mil reais.
Todas as condenações foram mantidas no Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (MT). Por unanimidade, a 1ª Turma acompanhou o relator do recurso, desembargador Bruno Weiler, que, entre outros pontos, refutou o argumento de que os trabalhadores não foram coagidos fisicamente a entrarem no caminhão-baú, mas agiram de espontânea vontade. Conforme ressaltou o magistrado, isso não muda a questão, já que eles foram “ludibriados pelos réus com a falsa promessa de emprego e boa condição econômica, mas se viram, posteriormente, presos a um sistema de dívidas que, a todas as luzes, jamais seriam quitadas, gerando um ciclo de empréstimos e trabalhos com a falsa ilusão de quitação.”
Assim, após concluir se tratar de uma situação de trabalho análogo ao de escravo, o desembargador também confirmou a responsabilidade de todos responderem de forma solidária pelas indenizações e demais condenações.
Cegueira deliberada
Quando recorreu ao TRT pedindo que fosse excluída das condenações, a Indústria de Alumínios Itapety alegou que se limitava a vender seus produtos aos clientes proprietários dos caminhões e, por isso, não poderia ser responsabilizada pelo modo como esses geriam seus empregados.
Mas o argumento não convenceu os magistrados. Da mesma forma que a juíza na sentença, os desembargadores concordaram que se aplica ao caso a teoria da cegueira deliberada, quando a empresa que se beneficia diretamente da força de trabalho de toda a cadeia produtiva coloca-se conscientemente em situação de ignorância, sem se preocupar em saber por que meios seus produtos são revendidos e sem realizar visitas aos fornecedores.
“Não é razoável acreditar que a empresa não soubesse como se dava a venda dos produtos”, ressaltou o relator, concluindo ter ficado evidente que ela “simulava não saber da explícita ‘existência de grave violação a direitos humanos na base da teia produtiva’ para obter maior lucro em sua atividade econômica”.
De acordo com as provas no processo, a indústria fornecia as panelas aos três réus sem que esses fizessem qualquer pagamento imediato, de modo a viabilizar o escoamento de sua produção com o uso de mão de obra trabalhando em caminhões. Depoimentos e notas fiscais comprovaram também que a fabricante foi a real beneficiária da cadeia produtiva e, por consequência, da exploração dos trabalhadores.
Um dos réus que recrutava os vendedores afirmou, em seu depoimento, que todo dinheiro que recebiam era repassado para a fábrica das panelas, “que trabalha nesse sistema de adiantar valores” e depois tem que pagar de volta.
Lista de obrigações
Por fim, a 1ª Turma do TRT manteve a obrigação de todos os réus cumprirem uma série de determinações, entre as quais não contratar pessoas com idade abaixo dos 18 anos para trabalhar no comércio ambulante de mercadorias e não recrutar trabalhadores de uma localidade para outra sem comunicar as superintendências regionais do trabalho e emprego (SRTEs), conforme previsto nas normas. Também ficam proibidos de transportar empregados em veículos de carga ou qualquer outro que não atenda integralmente às exigências legais.
Da mesma forma, eles devem assegurar condições do retorno ao local de origem para o trabalhador que for recrutado fora da localidade de execução do serviço, inclusive custeando as despesas de alimentação e hospedagem durante todo o deslocamento e, durante a prestação do serviço, devem disponibilizar alojamento e instalações sanitárias.
A decisão proíbe, ainda, que os réus façam a compensação ou o desconto salarial de eventuais dívidas contraídas pelos trabalhadores, em especial daquelas para pagamento de itens que devem ser fornecidos de forma gratuita pelo empregador, como transporte, alimentação e alojamento.
Além de todas essas obrigações, a empresa fabricante das panelas deverá também empreender todos os meios possíveis, como consultas e vistorias, para evitar a contratação de pessoas que explorem trabalhadores. Isso porque a decisão judicial determina que ela se abstenha de fornecer mercadoria para quem for flagrada pelo MPT, PF, Ministério Público Federal, Justiça Federal, entre outros, submetendo pessoas a trabalho degradante ou análogo ao de escravo.
Fonte: TRT da 23ª Região (MT)