Independência do Judiciário é chave para garantia da democracia, afirma o presidente da corte

A independência do Poder Judiciário em um cenário de tensões sociais é fundamental para a garantia do bom funcionamento dos três poderes no Brasil. A avaliação foi feita pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, durante a sessão solene realizada nesta quarta-feira (3) em comemoração aos 30 anos do tribunal.

De acordo com o ministro, no cenário atual de “corrupção endêmica, de cleptocracia, de busca de soluções biográficas para contradições sistêmicas, de assimetria de hostilidades, de proliferação de organismos ‘quase’ judiciários” – entre outras situações indesejáveis, como a ‘tribunalização da política’ e a ‘judicialização da vida pública’ –, o Judiciário tem sido cada vez mais chamado a tornar reais as promessas da República e da democracia.

“O grau de governabilidade desta nação vai depender da eficiência com que os três poderes instituídos, independentes e harmônicos entre si, exerçam suas funções originárias com plenitude e nos limites das respectivas competências.”

A estabilidade das instituições, segundo o ministro, está assentada no seu funcionamento livre e independente, principalmente no caso do Judiciário.

“A voz da Justiça, sob nenhuma condição, deve submeter-se às expectativas de uma opinião pública assentada no sentimento de um país midiático, ou seja, jamais deve o julgador decidir pautado pelo clamor popular, mas pelas regras jurídicas, sem desconsiderar os reflexos de suas decisões sobre a sociedade”, declarou o ministro.

Crises e impotência

Ao comentar o contexto de criação e o futuro do STJ, o presidente do tribunal refletiu sobre os desafios atuais do planeta, sobretudo as situações de grandes crises migratórias, terrorismo e a luta contra os regimes autoritários.

Todos esses fatores, de acordo com Noronha, são desafios crescentes para o Poder Judiciário.

“A realidade é chocante. Fronteiras e mares transformam-se em cemitérios. Ainda estamos longe de reconhecer que solidariedade não tem barreiras alfandegárias nem existe pela metade – ou é ou não é.”

Para ele, a situação apresenta novos problemas frente à impotência dos países em gerenciar tais crises.

Noronha lembrou que a virada do milênio acenou para a construção de uma sociedade solidária, mas, paradoxalmente, trouxe o alastramento do terrorismo, do poder paralelo e de inúmeros crimes cibernéticos que desafiam o Estado.

“Em contrapartida, guerras e ocupações militares têm sido alternativas adotadas para conter esses atos de violência, em infindável círculo vicioso de acerto de contas. Tal conduta, por não dimensionar o preço dos resultados, tem sido responsável por uma série de desastres humanitários, produzindo cada vez menos ganhadores e cada vez mais vítimas – uma versão moderna da vitória de Pirro”, comentou Noronha em alusão às batalhas do rei do Epiro e da Macedônia, conquistadas com alto preço e com o comprometimento da própria sobrevivência.

Justiça hoje

“Alguém porventura espera justiça amanhã?”

A pergunta foi feita pelo presidente do STJ ao refletir sobre o futuro da instituição. Segundo o ministro, frequentemente as instituições judiciais parecem minúsculas diante do volume de demandas que recebem todos os dias.

Ao longo de seus 30 anos de funcionamento, ressaltou, o STJ recebeu mais de 1,7 milhão de recursos especiais e mais de 500 mil habeas corpus. Nesse período, foram proferidas quase 7 milhões de decisões. Tais números, segundo ele, demonstram os esforços sobre-humanos empreendidos para o cumprimento da missão do tribunal, ao mesmo tempo em que evidenciam a necessidade de mudanças.

Depois de apresentar medidas que estão sendo adotadas nas áreas administrativa e tecnológica para acelerar o trâmite processual no STJ, o ministro defendeu a aprovação da emenda à Constituição que cria a arguição de relevância para o recurso especial, já aprovada na Câmara e atualmente em tramitação no Senado.

A emenda, segundo Noronha, permitirá que o STJ se concentre nas questões que têm impacto na ordem jurídica, e não apenas no interesse particular dos litigantes.

Ele pediu o empenho de todos os operadores do direito para atender ao espírito das alterações do novo Código de Processo Civil, com enfoque em um sistema de precedentes. “É forçoso reconhecer que as demandas judiciais devem ter um fim. Não há mais tempo para litigância perpétua”, afirmou.

Tribunal modelo

O ministro ressaltou o trabalho incessante do tribunal para o fortalecimento da democracia e para a construção de um Brasil livre, justo e solidário. Segundo Noronha, não é por acaso que o STJ adquiriu a identidade de Tribunal da Cidadania.

“Do ponto de vista administrativo e operacional, tornou-se modelo nacional e internacional em processos eletrônicos, gestão socioambiental e transparência, requisitos que lhe dão o status de tribunal da eficiência. Em todos os sentidos, portanto, uma corte de vanguarda e, por isso, de referência”, resumiu.

O presidente agradeceu o esforço de 119 magistrados, entre ministros e desembargadores convocados, que ao longo de 30 anos contribuíram para transformar o comando constitucional do artigo 103 em uma corte de precedentes.

“Hoje o STJ é o tribunal que mais impacta a vida dos cidadãos em virtude da própria competência, pois, sendo sua a última palavra – e, portanto, irrecorrível – acerca do direito federal infraconstitucional, confere segurança jurídica às mais diversas relações: familiares, empresariais, mercadológicas, negociais, econômicas etc.”

Contra omissões e arbítrios

Noronha lembrou o contexto mundial no momento da instalação do STJ, em 7 de abril de 1989, quando o bloco comunista estava se desfazendo, e a ideia de livre mercado ganhava força em um cenário de globalização. No Brasil, os reflexos surgiam com a recém-promulgada Constituição de 1988, inaugurando uma nova fase na Justiça.

“Sem ignorar mitos e verdades em torno dessa conjuntura, a verdade é que houve a desconstrução da ordem vigente e a gestação de outra – com seus riscos e esperanças. O mundo entrara em outra rotação.”

João Otávio de Noronha disse que políticas equivocadas ao longo de décadas geraram impactos no ecossistema, com uma série de crimes contra o meio ambiente em velocidade superior às ações em prol do desenvolvimento sustentável. Ele mencionou recentes desastres ambientais brasileiros – como Mariana e Brumadinho – e também tragédias urbanas – como o atentado na escola de Suzano (SP) –, episódios que destroem certezas sociais e “geram sequelas sem data de validade”.

“É nessas horas que cabe ao Judiciário posicionar-se contra práticas negligentes, contra a omissão e o arbítrio estatais. A distância pode ser curta entre o discurso da preservação do meio ambiente e do respeito aos direitos humanos e as tentativas sutis de minimização, que se instalam progressivamente como a ‘cegueira’ de Saramago.”

Leia a íntegra do discurso.

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