Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada ontem (18/09/2019),
a Lei nº 13.873/2019, que altera a Lei nº 13.364/2016, para incluir o laço, bem
como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestação
cultural nacional, elevar essas atividades à condição de bem de natureza
imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro e dispor sobre as
modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar
animal.

Vamos entender com calma.

Rodeio

O rodeio, a vaquejada e o laço
são práticas culturais comuns em alguns Estados do Brasil.

“O rodeio é uma prática
competitiva que consiste em permanecer por até oito segundos sobre um animal,
normalmente um cavalo ou touro. A avaliação é feita por dois árbitros cuja nota
é de 0 a 50 cada; um árbitro avalia o competidor e o outro avalia o animal,
totalizando a pontuação de 0 a 100.” (https://www.wikiwand.com/pt/Rodeio)

Vaquejada

Na vaquejada, dois vaqueiros, cada
um montado em seu cavalo, perseguem o boi na arena e, após emparelhá-lo com os
cavalos, tentam conduzi-lo até uma região delimitada, onde deverão derrubar o
boi puxando-o pelo rabo.

Se o boi, quando foi derrubado,
ficou, ainda que por alguns instantes, com as quatro patas para cima antes de
se levantar, o juiz declara ao público “Valeu boi!” e a dupla recebe os pontos.

Se o boi caiu, mas não ficou com
as patas para cima, o juiz anuncia “Zero!”, e a dupla não pontua.

Algumas regras mudam de acordo
com a organização do evento, mas, em regra, cada dupla enfrenta cinco bois. O
primeiro vale 8 pontos, o segundo 9 pontos, o terceiro 10 pontos, o quarto 11 e
o quinto 12, totalizando 50 pontos.

Laço

Provas de laço são uma forma de
competição na qual o objetivo é imobilizar o animal por meio do laço.

Críticas e defensores

As associações protetoras dos
animais criticam bastante os rodeios, as vaquejadas e as provas de laço,
alegando que os animais envolvidos sofrem maus tratos e que, com frequência,
ficam com sequelas decorrentes das agressões e do estresse que passam.

Os defensores da atividade, por
sua vez, alegam que os animais não sofrem maus tratos e que esta prática é
centenária, fazendo parte do patrimônio cultural do povo brasileiro. Além
disso, argumentam que se trata de um esporte e que os eventos geram inúmeros
empregos e renda no país.

Lei 15.299/2013, do Estado do
Ceará

O Ceará editou a Lei estadual nº
15.299/2013, regulamentando a atividade de “vaquejada” no Estado. A norma fixou
os critérios para a competição e obrigou os organizadores a adotarem medidas de
segurança para os vaqueiros, público e animais.

O Procurador-Geral da República,
no entanto, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a lei.

Segundo a ação, com a
profissionalização da vaquejada, algumas práticas passaram a ser adotadas, como
o enclausuramento dos  animais antes de
serem lançados à pista, momento em que são açoitados e instigados para que
entrem agitados na arena quando da abertura do portão. Tais práticas acarretam
danos e constituem crueldade contra os animais, o que é vedado pelo art. 225, §
1º, VII, da CF/88:

Art. 225. Todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras
gerações.

§ 1º Para assegurar a
efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VII – proteger a fauna e a
flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

O pedido do PGR foi acolhido pelo
STF? A vaquejada foi considerada uma prática contrária à CF?

SIM.

Conflito de normas
constitucionais sobre direitos fundamentais

O caso em tela revela um conflito
de normas constitucionais sobre direitos fundamentais:

• De um lado, a CF/88 proíbe as
práticas que submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII);

• De outro, o texto
constitucional garante o pleno exercício dos direitos culturais, das
manifestações culturais e determina que o Estado proteja as manifestações das
culturas populares (art. 215, caput e § 1º).

Direito fundamental de terceira
geração

O art. 225 da CF/88 consagra a
proteção da fauna e da flora como modo de assegurar o direito ao meio ambiente
sadio e equilibrado. É, portanto, direito fundamental de terceira geração,
fundado na solidariedade, de caráter coletivo ou difuso, dotado de “altíssimo
teor de humanismo e universalidade” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2001, p. 523).

A manutenção do ecossistema é um
dever de todos em benefício das gerações do presente e do futuro.

Nas questões ambientais, o
indivíduo é considerado titular do direito e, ao mesmo tempo, destinatário dos deveres
de proteção. Daí porque a doutrina fala que existe um verdadeiro
“direito-dever” fundamental.

Laudos técnicos comprovaram
consequências nocivas aos animais

O PGR juntou aos autos laudos
técnicos que comprovam que as vaquejadas provocam consequências nocivas à saúde
dos bovinos, tais como fraturas nas patas, ruptura dos ligamentos e dos vasos
sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo e até seu arrancamento,
das quais resultam comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais,
dores físicas e sofrimento mental.

Diante desses dados, o STF
concluiu que é indiscutível que os animais envolvidos sofrem tratamento cruel,
o que contraria o art. 225, § 1º, VII, da CF/88.

Proibição da crueldade prevalece
sobre a proteção cultural

O STF entendeu que a crueldade
provocada pela “vaquejada” faz com que, mesmo sendo esta uma atividade
cultural, não possa ser permitida.

A expressão “crueldade”,
constante da parte final do inciso VII do § 1º do art. 225 da CF/88, engloba a
tortura e os maus-tratos sofridos pelos bovinos durante a prática da vaquejada,
de modo a tornar intolerável esta conduta que havia sido autorizada pela norma
estadual impugnada.

Assim, mesmo reconhecendo a importância
da vaquejada como manifestação cultural regional, esse fator não torna a
atividade imune aos outros valores constitucionais, em especial à proteção ao
meio ambiente.

Resultado

O placar foi bastante apertado
(6×5):

• Inconstitucionalidade da lei:
Ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski,
Celso de Mello e Cármen Lúcia.

• Constitucionalidade da lei
(vencidos): Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki (agora falecido), Luiz Fux,
Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

Resumindo:

É
inconstitucional lei estadual que regulamenta a atividade da “vaquejada”.

Segundo
decidiu o STF, os animais envolvidos nesta prática sofrem tratamento cruel,
razão pela qual esta atividade contraria o art. 225, § 1º, VII, da CF/88.

A
crueldade provocada pela “vaquejada” faz com que, mesmo sendo esta uma
atividade cultural, não possa ser permitida.

A
obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais,
incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da
observância do disposto no inciso VII do § 1º do art. 225 da CF/88, que veda
práticas que submetam os animais à crueldade.

STF.
Plenário. ADI 4983/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 06/10/2016 (Info
842).

Lei federal nº 13.364/2016

Pouco mais de um mês após esta
decisão do STF acima explicada (ADI 4983/CE) o Congresso Nacional editou a Lei
nº 13.364/2016, prevendo que o Rodeio e a Vaquejada devem ser considerados como
expressões artístico-culturais e manifestações da cultura nacional e de
patrimônio cultural imaterial.

Foi uma “reação” do Poder
Legislativo à decisão do STF.

O Congresso Nacional poderia
editar esta Lei, em tese, contrariando o que decidiu o STF na ADI 4983?

Sim, porque a decisão do STF
restringiu-se a uma lei do Ceará, que permitia a realização da vaquejada
naquele Estado. O efeito vinculante do acórdão se limita a isso. Assim, esta
lei do Ceará é inconstitucional e ninguém pode contrariar isso. A decisão do
STF não impede, contudo, que o Congresso Nacional ou mesmo outros Estados
editem leis permitindo a vaquejada. Formalmente, tais leis não violam a decisão
do STF.

EC 96/2017

A Lei nº 13.364/2016, acima
mencionada, sozinha, não teria força jurídica suficiente para superar a decisão
do STF. Isso porque, na visão do Supremo, a prática da vaquejada não era
proibida por ausência de lei. Ao contrário, a Corte entendeu que, mesmo havendo
lei regulamentando a atividade, a vaquejada era inconstitucional por violar o
art. 225, § 1º, VII, da CF/88.

Assim, essa Lei nº 13.364/2016
não ajudava muito os partidários da vaquejada e era certo que o STF iria manter
a proibição.

Ciente disso, o Congresso
Nacional decidiu alterar a própria Constituição, nela inserindo a previsão
expressa de que são permitidas práticas desportivas que utilizem animais, desde
que sejam manifestações culturais.

Veja a íntegra do § 7º que foi
inserido pela EC 96/2017 no art. 225 da CF/88:

Art. 225. (…)

§ 7º Para fins do disposto na parte
final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas
desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais,
conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de
natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser
regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais
envolvidos.

Foi uma tentativa de superação
legislativa da jurisprudência (reversão jurisprudencial), uma manifestação de
ativismo congressual.

Efeito Backlash

A EC 96/2017 é um exemplo do que
a doutrina constitucionalista denomina de “efeito backlash”.

Em palavras muito simples, efeito
backlash consiste em uma reação
conservadora de parcela da sociedade ou das forças políticas (em geral, do
parlamento) diante de uma decisão liberal do Poder Judiciário em um tema
polêmico.

George Marmelstein resume a
lógica do efeito backlash ao ativismo
judicial:

“(1) Em uma
matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal,
assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2)
Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é
bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com
forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à
decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar
as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os
candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço
político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e
assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis
e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder
político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos
órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de
entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver
um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que
a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que,
supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão.” (Disponível em: https://direitosfundamentais.net/2015/09/05/efeito-backlash-da-jurisdicao-constitucional-reacoes-politicas-a-atuacao-judicial/).

Lei nº 13.873/2019

Agora, vem a Lei nº 13.873/2019 que
teve dois objetivos;

• incluir as atividades de laço na
Lei nº 13.364/2016;

• reforçar que o Rodeio, a
Vaquejada e o Laço são manifestações culturais nacionais e suas atividades são bens
de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro.

Vamos verificar agora as mudanças
feitas pela Lei nº 13.873/2019

Alteração
na ementa da Lei

Ementa da Lei nº 13.364/2016

Redação originária

Redação dada pela
Lei nº 13.873/2019

Eleva o Rodeio, a Vaquejada,
bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de
manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial.

Reconhece o rodeio, a vaquejada
e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como
manifestações culturais nacionais; eleva essas atividades à condição de bens
de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro; e dispõe
sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao
bem-estar animal. (Redação dada pela Lei nº 13.873/2019)

Alteração
no art. 1º para incluir o laço

Ementa da Lei nº 13.364/2016

Redação originária

Redação dada pela
Lei nº 13.873/2019

Art. 1º Esta Lei eleva o
Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais,
à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural
imaterial.

Art. 1º  Esta Lei reconhece o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestações culturais nacionais, eleva essas
atividades à condição de bens de natureza imaterial
integrantes do patrimônio cultural brasileiro e dispõe sobre as modalidades
esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal.

Alteração
no art. 2º

Ementa da Lei nº 13.364/2016

Redação originária

Redação dada pela
Lei nº 13.873/2019

Art. 2º O Rodeio, a Vaquejada,
bem como as respectivas expressões artístico-culturais, passam a ser
considerados manifestações da cultura nacional.

Art. 2º O rodeio, a vaquejada e
o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, são
reconhecidos como manifestações culturais nacionais e elevados à condição de
bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro,
enquanto atividades intrinsecamente ligadas à vida, à identidade, à ação e à
memória de grupos formadores da sociedade brasileira.

Inserção do art. 3º-A

Art. 3º-A. Sem prejuízo do
disposto no art. 3º desta Lei, são consideradas modalidades esportivas
equestres tradicionais as seguintes atividades:

I – adestramento, atrelagem,
concurso completo de equitação, enduro, hipismo rural, salto e volteio;

II – apartação, time de curral,
trabalho de gado, trabalho de mangueira;

III – provas de laço;

IV – provas de velocidade: cinco
tambores, maneabilidade e velocidade, seis balizas e três tambores;

V – argolinha, cavalgada,
cavalhada e concurso de marcha;

VI – julgamento de morfologia;

VII – corrida;

VIII – campereada, doma de ouro e
freio de ouro;

IX – paleteada e vaquejada;

X – provas de rodeio;

XI – rédeas;

XII – polo equestre;

XIII – paraequestre.

Inserção do art. 3º-B para prever
cuidados com o bem-estar dos animais

Art. 3º-B.  Serão aprovados regulamentos específicos para
o rodeio, a vaquejada, o laço e as modalidades esportivas equestres por suas
respectivas associações ou entidades legais reconhecidas pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

§ 1º  Os regulamentos referidos no caput deste
artigo devem estabelecer regras que assegurem a proteção ao bem-estar animal e
prever sanções para os casos de descumprimento.

§ 2º  Sem prejuízo das demais disposições que
garantam o bem-estar animal, deve-se, em relação à vaquejada: 

I – assegurar aos animais água,
alimentação e local apropriado para descanso;

II – prevenir ferimentos e
doenças por meio de instalações, ferramentas e utensílios adequados e da
prestação de assistência médico-veterinária;

III – utilizar protetor de cauda
nos bovinos;

IV – garantir quantidade
suficiente de areia lavada na faixa onde ocorre a pontuação, respeitada a
profundidade mínima de 40 cm (quarenta centímetros).

Vigência

A Lei nº 13.873/2019 entrou em
vigor na data de sua publicação (18/09/2019).

Artigo Original em Dizer o Direito

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