Sobre o que trata a Lei nº
14.125/2021

A Lei nº 14.125/2021 trata sobre
dois assuntos:

·
dispõe sobre qual é a responsabilidade civil em caso de eventos adversos (efeitos
colaterais) decorrentes da vacinação contra a Covid-19; e

·
autoriza a aquisição e a distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de
direito privado.

 

Responsabilidade civil pelos
efeitos colaterais decorrentes da aplicação de vacinas contra a Covid

Uma das grandes discussões envolvendo
as vacinas para prevenir a Covid-19 diz respeito ao seu grau de segurança, ou
seja, os efeitos colaterais que poderão advir da aplicação das vacinas. Isso
porque como as vacinas foram produzidas em tempo recorde, não foi possível se acompanhar,
a longo prazo, eventuais reações à saúde humana.

A Pfizer, um dos maiores
laboratórios farmacêuticos do mundo, produziu uma vacina contra a Covid-19. No
entanto, esse laboratório somente aceita comercializar a vacina se o ente
público assumir o pagamento de quaisquer indenizações que sejam pleiteadas por
pessoas prejudicadas pelos efeitos colaterais decorrentes da vacina.

Veja um
exemplo dessa cláusula de assunção da responsabilidade:

“Os
contratantes (ex: União, Estados, DF e Municípios) indenizarão e
isentarão a contratada (ex: a Pfizer) de todos e quaisquer danos e
responsabilidades decorrentes de ou associados a reclamações por morte, dano
físico, mental ou emocional, doença, incapacidade ou condição relacionadas ou
decorrentes do uso ou administração da vacina”.

 

Vale ressaltar que essa cláusula não
foi uma exigência apenas da Pfizer, tendo também constado no contrato que a
Fiocruz (vinculada ao Ministério da Saúde) e o Instituto Bio-Manguinhos celebraram
com a AstraZeneca (https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/02/24/clausula-de-responsabilidade-por-eventuais-efeitos-colaterais-da-vacina-e-obstaculo-para-acordo-entre-governo-federal-e-pfizer.ghtml).

 

Como esse
tema é juridicamente controverso e havia dúvidas se o Poder Executivo poderia firmar
um compromisso nesses moldes sem autorização legislativa, foi editada a Lei nº 14.125/2021
que, em seu art. 1º, autorizou expressamente que a União, os Estados, o DF e os
Municípios assumam essa responsabilidade. Veja:

Art. 1º  Enquanto perdurar a
Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), declarada em
decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), ficam a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios autorizados a adquirir vacinas
e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do
instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a
eventos adversos pós-vacinação
, desde que a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) tenha concedido o respectivo registro ou autorização
temporária de uso emergencial.

(…)

§ 2º A assunção dos riscos relativos à responsabilidade civil de
que trata o caput deste artigo restringe-se às aquisições feitas pelo
respectivo ente público.

 

A União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios poderão constituir garantias ou contratar seguro
privado, nacional ou internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura
dos riscos de que trata o art. 1º acima transcrito.

 

A previsão acima lembra, guardadas
as devidas diferenças
, o compromisso que a União assumiu com a Fifa,
durante a Copa do Mundo de 2014. Na época, mesmo a Copa do Mundo sendo um evento
da Fifa, a União assumiu o compromisso de indenizar as vítimas de danos que
fossem resultado de incidentes ou acidentes de segurança relacionados aos
Eventos. Veja a redação do art. 23 da Lei nº 12.663/2012:

Art. 23. A União assumirá os efeitos
da responsabilidade civil perante a FIFA, seus representantes legais,
empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha
surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado
aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a vítima houver concorrido
para a ocorrência do dano.

Parágrafo único. A União ficará
sub-rogada em todos os direitos decorrentes dos pagamentos efetuados contra
aqueles que, por ato ou omissão, tenham causado os danos ou tenham para eles
concorrido, devendo o beneficiário fornecer os meios necessários ao exercício
desses direitos.

 

Vale ressaltar que o STF considerou
esse dispositivo constitucional:

(…) A disposição contida no art. 37,
§ 6º, da Constituição Federal não esgota a matéria relacionada à
responsabilidade civil imputável à Administração, pois, em situações especiais
de grave risco para a população ou de relevante interesse público, pode o
Estado ampliar a respectiva responsabilidade, por danos decorrentes de sua ação
ou omissão, para além das balizas do supramencionado dispositivo
constitucional, inclusive por lei ordinária, dividindo os ônus decorrentes
dessa extensão com toda a sociedade. II – Validade do oferecimento pela União,
mediante autorização legal, de garantia adicional, de natureza tipicamente
securitária, em favor de vítimas de danos incertos decorrentes dos eventos
patrocinados pela FIFA, excluídos os prejuízos para os quais a própria entidade
organizadora ou mesmo as vítimas tiverem concorrido. Compromisso livre e
soberanamente contraído pelo Brasil à época de sua candidatura para sediar a
Copa do Mundo FIFA 2014.  (…)

STF. Plenário. ADI 4976, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, julgado em 07/05/2014.

 

O art. 1º da
Lei nº 14.125/2021 parece ser mais um exemplo de responsabilidade civil com
base na teoria do risco social. Conforme explica Alexandre Aragão:

“O ponto
extremo da responsabilidade civil estatal é a teoria do risco social ou risco
integral, em que o Estado é responsável até por danos não imputáveis ao seu
comportamento independentemente até mesmo de nexo de causalidade, sem
possibilidade de causas de exclusão (caso fortuito, força maior, culpa de
terceiros, da própria vítima, etc.). Além da responsabilidade por danos
nucleares (art. 21, XXIII, d, CF, regulamentado pela Lei n. 6.453/77), outro
exemplo dessa espécie de obrigação pecuniária do estado, mais de seguridade social
que de responsabilidade civil propriamente dita, é a instituída pela Lei n.
10.744, de 09 de outubro de 2003, que, adotando a Teoria do Risco Integral,
propicia à União arcar com os prejuízos que venham a ser causados por atos
terroristas” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo.
Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 561).

 

Marçal Justen
Filho, ao tratar sobre a Lei nº 10.744/2003, afirma que essa assunção de
responsabilidade, em tese, é possível:

“A lei pode
impor a responsabilidade do Estado por atos absolutamente estranhos a ele. O
caso não configurará propriamente responsabilidade civil, mas uma forma de
outorga de benefício a terceiros lesados. (…) Rigorosamente, a hipótese não é
de responsabilidade civil extracontratual. Aliás, se fosse, não haveria necessidade
das aludidas leis” (JUSTEN FILHO. Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9ª
ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p.
1.327).

 

Aquisição de vacinas por
pessoas jurídicas de direito privado (ex: empresas)

O art. 2º da Lei nº 14.125/2021
autoriza que, além dos governos federal, estadual, distrital e municipal,  as pessoas jurídicas de direito privado (ex:
empresas) também adquiram vacinas. Para isso, no entanto, são fixadas algumas
regras:

 

1ª) Enquanto o Governo não
terminar a vacinação dos grupos prioritários (idosos, indígenas, portadores de
comorbidades etc.):

As pessoas jurídicas de direito
privado poderão adquirir diretamente as vacinas devendo, contudo, doar integralmente
para o SUS.

Neste caso, as empresas comprariam
as vacinas apenas para colaborar com o Poder Público no programa de imunização,
não podendo ficar com nenhuma vacina.

 

2ª) Depois que o Governo terminar
a vacinação dos grupos prioritários:

As pessoas jurídicas de direito
privado poderão comprar as vacinas, devendo, contudo, doar metade das doses
compradas para o SUS.

A outra metade poderá ser
livremente distribuída e aplicada, mas desde que isso seja feito de forma
gratuita (a pessoa jurídica não poderá vender as vacinas).

 

Confira a
redação do art. 2º da Lei:

Art. 2º Pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir
diretamente vacinas contra a Covid-19 que tenham autorização temporária para
uso emergencial, autorização excepcional e temporária para importação e
distribuição ou registro sanitário concedidos pela Anvisa, desde que sejam
integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS)
, a fim de serem
utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

§ 1º Após o término da imunização dos grupos prioritários
previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19
,
as pessoas jurídicas de direito privado poderão, atendidos os requisitos legais
e sanitários, adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo
menos 50% (cinquenta por cento) das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao
SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita
.

§ 2º As vacinas de que trata o caput deste artigo poderão ser
aplicadas em qualquer estabelecimento ou serviço de saúde que possua sala para
aplicação de injetáveis autorizada pelo serviço de vigilância sanitária local,
observadas as exigências regulatórias vigentes, a fim de garantir as condições
adequadas para a segurança do paciente e do profissional de saúde.

§ 3º As pessoas jurídicas de direito privado deverão fornecer ao
Ministério da Saúde, na forma de regulamento, de modo tempestivo e detalhado,
todas as informações relativas à aquisição, incluindo os contratos de compra e
doação, e à aplicação das vacinas contra a Covid-19.

 

E as clínicas privadas que vendem
vacinas? Elas poderão adquirir vacinas contra a Covid-19?

O requisito legal para que essas
clínicas importem e comercializem a vacina é que já tenha havido o registro definitivo
na Anvisa. A vacina da Pfizer, por exemplo, já obteve esse registro definitivo.

Por outro lado, as clínicas privadas
não podem adquirir e comercializar vacinas que tenham ainda apenas registro
para uso emergencial, como é o caso da Coronavac e da Oxford/Astrazeneca.

Assim, independentemente de lei, as
clínicas privadas já podem, em tese, comprar a vacina da Pfizer e revender para
a população em geral. Existem, contudo, dois obstáculos fáticos:

1) a Pfizer já anunciou que, no
presente momento, só irá comercializar as vacinas para o Poder Público;

2) ainda que conseguisse adquirir,
haveria o risco de a Administração Pública fazer a requisição administrativa
das vacinas.

 

Assim, entendo que a previsão do
art. 2º da Lei nº 14.125/2021 não se aplica para as clínicas particulares.
Estas continuarão dependendo do registro definitivo e, caso adquiram vacinas
com registro definitivo, não estarão sujeitas às limitações do art. 2º. A
previsão da Lei nº 14.125/2021 é voltada para grandes empresas privadas que anunciaram
que desejam colaborar com o Poder Público na imunização da população.

 

Vigência

A Lei nº 14.125/2021 entrou em
vigor na data de sua publicação (10/03/2021).

  

Artigo Original em Dizer o Direito

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