Princípio da autonomia patrimonial

As pessoas jurídicas são sujeitos
de direitos. Isso significa que possuem personalidade jurídica distinta de seus
instituidores. Assim, por exemplo, não é porque o sócio morreu que,
obrigatoriamente, a pessoa jurídica será extinta.

De igual modo, o patrimônio da
pessoa jurídica é diferente do patrimônio de seus sócios.

Ex.1: se uma sociedade empresária
possui um veículo, esse automóvel não pertence aos sócios, mas sim à própria
pessoa jurídica.

Ex.2: se uma sociedade empresária
possui uma dívida, este débito deverá ser pago com os bens da própria
sociedade, não podendo, para isso, em regra, ser utilizado o patrimônio pessoal
dos sócios.

Vigora, portanto, o princípio da
autonomia patrimonial entre os bens do sócio e da pessoa jurídica.

 

Desconsideração da personalidade jurídica

O ordenamento jurídico prevê
algumas situações em que essa autonomia patrimonial pode ser afastada.

Tais hipóteses são chamadas de
“desconsideração da personalidade jurídica” (disregard of legal entity ou teoria do superamento da personalidade
jurídica).

Quando se aplica a
desconsideração da personalidade jurídica, os bens particulares dos
administradores ou sócios são utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.

 

Desconsideração da personalidade jurídica no CC-2002

A desconsideração da
personalidade jurídica, no âmbito das relações civis gerais, está disciplinada
no art. 50 do CC.

 

Regras processuais sobre a
desconsideração da personalidade jurídica

O CPC/2015, de forma inovadora,
trouxe regras para disciplinar o procedimento para a decretação ou não da desconsideração
da personalidade jurídica no processo.

O Código previu que essa
desconsideração poderá ser postulada de duas formas:

a) em caráter principal, quando o
pedido é formulado já na petição inicial;

b) em caráter incidental, quando
o pedido é feito no curso do processo.

 

Desconsideração
requerida na inicial

Desconsideração pedida na petição
inicial

O autor, ao ingressar com a ação
contra o réu, já requer, na petição inicial, a desconsideração da personalidade
jurídica.

Neste caso, não será necessária a
instauração de um incidente.

 

Se o pedido for para
desconsideração direta

Isso significa que a ação é
proposta contra a “empresa” (pessoa jurídica), mas o autor já pede, desde logo,
que seja afastada a autonomia patrimonial e se atinjam os bens dos sócios.

Logo, a ação é proposta contra a
pessoa jurídica e contra os sócios.

O autor pedirá a citação:


da pessoa jurídica, afirmando que ela é a devedora (a pessoa jurídica é que é a
devedora “originária”); e

• dos sócios, argumentando que
eles, apesar de não serem devedores da obrigação (não participaram da relação
obrigacional), são responsáveis pelo pagamento do débito, ou seja, pede-se para
atingir o patrimônio pessoal dos sócios, mesmo eles não tendo participado da
relação obrigacional (ex: quem assinou o contrato foi a pessoa jurídica – e não
as pessoas físicas).

Veja algumas
importantes observações da doutrina:

“A inicial
deve deixar claro que o débito é da empresa e que a pretensão de cobrança está
direcionada contra ela. O que se pretende em relação ao sócio não é a sua
condenação ao pagamento do débito, mas o reconhecimento de que ele é
responsável patrimonial, uma vez que estão preenchidos os requisitos do direito
material para a desconsideração da personalidade jurídica. Serão dois os pedidos
formulados na inicial: o condenatório, de cobrança, dirigido contra o devedor;
e o de extensão da responsabilidade patrimonial, direcionado contra o sócio e
fundado no preenchimento dos requisitos do art. 50 do Código Civil ou do art.
28 do CDC.

(…)

O sócio será citado, na condição de corréu, para
oferecer resposta no prazo de 15 dias (observado o art. 229, do CPC). Em sua
contestação, deverá defender-se do pedido contra ele direcionado, isto é, o de
extensão da responsabilidade patrimonial pelo débito da empresa.” (GONÇALVES,
Marcus Vinicius Rios. Direito Processual
Civil Esquematizado.
7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 257).

 

Se o pedido na Inicial for para
desconsideração “inversa”

Isso significa que a ação é
proposta contra um(uns) do(s) sócio(s), mas o autor já pede, desde logo, que
seja afastada a autonomia patrimonial e se atinjam os bens da pessoa jurídica.

Logo, a ação é proposta contra o
sócio e contra a pessoa jurídica.

O autor pedirá a citação:

• do sócio (que era o devedor
“originário”); e

• da pessoa jurídica, sob o
argumento de que ela, mesmo não tendo participado da relação de direito
material, deverá responder pelo débito.

 

Não é necessária intervenção de
terceiros

Vale esclarecer que o sócio (no
caso de desconsideração direta) ou a pessoa jurídica (desconsideração inversa)
não serão considerados “terceiros”, mas sim réus, tendo sido citados desde o
início.

Logo, a desconsideração da
personalidade jurídica pedida na petição inicial não acarreta a intervenção de
terceiros.

 

O que se alega na contestação?

Enunciado 248-FPPC: Quando a
desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial,
incumbe ao sócio ou à pessoa jurídica, na contestação, impugnar não somente a
própria desconsideração, mas também os demais pontos da causa.

 

Pedido decidido na sentença

As pessoas citadas deverão
apresentar contestação refutando os argumentos do autor e, ao final, na própria
sentença, o juiz decidirá se é procedente ou não o pedido de desconsideração.

Trata-se, portanto, de um dos
pedidos da ação.

Se o juiz acolher, significa que,
além de condenar a pessoa jurídica reconhecendo que ela é devedora da relação
jurídica de direito material, também condenará o(s) sócio(s) como responsável(eis)
pelo débito da pessoa jurídica.

Vale ressaltar que o pedido de
desconsideração formulado na petição inicial não acarreta a suspensão do
processo.

 

Recurso

O sócio ou pessoa jurídica
atingidos pela desconsideração, caso não se conformem com a decisão, deverá
interpor apelação.

Enunciado 390 FPPC: Resolvida a
desconsideração da personalidade jurídica na sentença, caberá apelação.

 

Previsão no CPC/2015

O Código
dedicou um único dispositivo para tratar sobre o tema:

Art. 134 (…)

§ 2º Dispensa-se a instauração do
incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na
petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

 

þ
(Analista Judiciário TRF2 2019 FCC) Renato ajuizou ação de cobrança contra ZWXY
Construções Ltda., requerendo, na própria petição inicial, a desconsideração da
sua personalidade jurídica, com a demonstração preliminar do preenchimento dos
pressupostos legais específicos. Nesse caso, de acordo com o Código de Processo
Civil, dispensa-se a instauração do incidente de desconsideração da
personalidade jurídica e o processo não será suspenso. (certo)

 

Incidente
de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica

Processo em curso

Algumas vezes, o processo já está
em curso quando, então, o credor percebe que não irá conseguir receber o valor
pretendido do devedor e que estão presentes os requisitos para a
desconsideração da personalidade jurídica.

Neste caso, o pedido de
desconsideração será formulado como um incidente do processo.

Haverá uma intervenção de terceiros
provocada, considerando que o credor pedirá para trazer à lide uma pessoa que
originalmente não figurava no polo passivo.

 

Quem pode iniciar o incidente

O incidente de desconsideração da
personalidade jurídica será sempre instaurado a pedido.

Este pedido poderá ser feito:

• pela parte; ou

• pelo Ministério Público (quando
lhe couber intervir no processo).

Obs: o juiz não pode instaurar de
ofício.

 

Pressupostos

O requerimento deve demonstrar o
preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da
personalidade jurídica.

Esses pressupostos estão
previstos no “direito material” (art. 50 do Código Civil, art. 28 do CDC, art.
34 da Lei nº 12.529/2011 etc.).

þ
(Analista Judiciário TRF4 2019 FCC) Tereza ajuizou ação de indenização contra a
empresa “XPTO Comércio de Produtos de Informática Ltda”. Ainda na fase
instrutória do processo, requereu a instauração de incidente de desconsideração
da personalidade jurídica. Nesse caso, o juiz deverá deferir o pedido,
suspendendo o processo, desde que o requerimento tenha demonstrado o
preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da
personalidade jurídica. (certo)

 

Admitido em todas as espécies de
processo

O incidente de desconsideração é
cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de
sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

ý
(Analista Ministerial MPC/PA 2019 CEBRASPE) Com vistas a suspender
episodicamente a eficácia do ato constitutivo de determinada empresa, João,
credor de um dos sócios do empreendimento, ajuizou incidente de desconsideração
da personalidade jurídica para tentar atingir a cota-parte do sócio devedor. Caso a ação de cobrança de João
esteja em fase de cumprimento de sentença, o juiz deverá inadmitir o incidente.
(errado)

Importante destacar que o
incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se também a
processos de competência dos juizados especiais (art. 1.062 do CPC/2015)

Enunciado 247 FPPC: Aplica-se o incidente
de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar.

 

Incidente instaurado
originariamente perante o Tribunal

Vale ressaltar que o incidente de
desconsideração pode ser pedido tanto em processos que tramitam na 1ª instância
como também pode ser requerido originalmente no Tribunal.

Se a
desconsideração for pedida em processo que está tramitando no Tribunal, ela
será decidida monocraticamente pelo Relator:

Art. 932.  Incumbe ao relator:

(…)

VI – decidir o incidente de
desconsideração da personalidade jurídica, quando este for instaurado
originariamente perante o tribunal;

 

Suspensão do processo

A instauração do incidente
suspenderá o processo.

Assim, com o pedido de
instauração, suspende-se o processo, suspensão que perdurará até a decisão que
resolver o incidente.

 

Procedimento

1) A instauração do incidente é
pedida pela parte ou pelo Ministério Público.

2) O juiz admite a instauração e
determina a suspensão do processo.

3) No caso de desconsideração
direta, será realizada a citação do sócio. Em se tratando de desconsideração
inversa, será determinada a citação da pessoa jurídica.

4) Depois da citação, o sócio ou
a pessoa jurídica terão 15 dias para se manifestar e requerer as provas que
entender necessárias.

5) Havendo necessidade, será
realizada instrução probatória (oitiva de testemunhas, perícia etc.).

6) Concluída a instrução, se
necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

 

A instauração do incidente de
desconsideração gera, por si só, a necessidade de oitiva do MP?

NÃO. É desnecessária a
intervenção do Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, no incidente
de desconsideração da personalidade jurídica, salvo nos casos em que deva
intervir obrigatoriamente, previstos no art. 178 do CPC/2015 (Enunciado 123 do
FPPC).

 

Recurso

• Se o incidente tramitou em 1ª
instância (pedido foi decidido pelo juiz de 1º grau): a parte prejudicada
poderá interpor agravo de instrumento (art. 1.015, IV).

• Se o incidente tramitou
originalmente no Tribunal (pedido foi decidido monocraticamente pelo Relator):
cabe agravo interno (art. 136, parágrafo único).

 

Acolhimento da desconsideração e
alienação ou oneração de bens

Acolhido o pedido de desconsideração,
a alienação ou a oneração de bens ocorrida em fraude de execução será ineficaz
em relação ao requerente (art. 137).

 

Incidente
de desconsideração e honorários advocatícios

Imagine a seguinte situação
hipotética:

João ajuizou ação de cobrança contra
a empresa FS Ltda.

A sentença julgou o pedido
procedente, condenando a ré a pagar R$ 100 mil.

Em cumprimento de sentença, não foram localizados bens penhoráveis da empresa.

Diante disso, João requereu a instauração
do incidente de desconsideração da personalidade jurídica a fim de que fossem
alcançados os bens pessoais dos sócios da empresa Fernando e Sandra.

Os sócios foram citados e se
manifestaram.

Foram ouvidas testemunhas.

Concluída a instrução, o juiz entendeu
que as alegações de João não foram provadas e rejeitou o pedido de
desconsideração.

 

Fernando e Sandra tiveram
que contratar advogado para se defenderem no incidente. Indaga-se: João, que foi
sucumbente no incidente, será condenado a pagar honorários advocatícios?

NÃO. Isso porque não há
condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da
personalidade jurídica. Vamos entender.

O art. 85 do
CPC/2015, ao tratar sobre os honorários advocatícios, afirma:

Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar
honorários ao advogado do vencedor.

 

O caput do
art. 136 do CPC, por sua vez, prevê expressamente que o incidente de
desconsideração da personalidade jurídica é resolvido por decisão interlocutória, e não
sentença:

Art. 136. Concluída a instrução, se
necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

 

No § 1º do art.
85, o legislador excepcionou alguns casos em que são devidos honorários, embora
não se trate de sentença. Assim, quando o legislador quis, previu honorários
para algumas decisões interlocutórias:

Art. 85 (…)

§ 1º São devidos honorários
advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou
definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos,
cumulativamente.

 

Nesse rol não está incluído o
incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Logo, não cabe a
condenação em honorários advocatícios.

 

Em suma:

Não há condenação em honorários
advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Em regra, não é cabível a condenação em honorários
advocatícios em qualquer incidente processual, ressalvados os casos
excepcionais.

Tratando-se de incidente de desconsideração da
personalidade jurídica, não cabe a condenação nos ônus sucumbenciais em razão
da ausência de previsão legal. Logo, é irrelevante apurar quem deu causa ou foi
sucumbente no julgamento final do incidente.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.845.536-SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel.
Acd. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/05/2020 (Info 673). 

Artigo Original em Dizer o Direito

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