Art. 16 da Lei nº 7.347/85
e a eficácia subjetiva da ACP

Falar em “eficácia subjetiva”
significa estudarmos “para quem” a sentença proferida na ACP produz efeitos,
isto é, as pessoas que são atingidas juridicamente pelo que foi decidido.

O art. 16 da Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85),
com redação dada pela Lei nº 9.494/97, estabelece o seguinte:

LEI
Nº 7.347/85 (LEI DA ACP)

Redação
original

Redação
dada pela Lei nº 9.494/97

Art. 16. A sentença civil fará
coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência
de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com
idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Art. 16. A sentença civil fará
coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator,
exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas,
hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico
fundamento, valendo-se de nova prova.

 

Esse artigo foi alterado pela Lei
nº 9.494/97 com o objetivo de restringir a eficácia subjetiva da coisa julgada,
ou seja, ele determinou que a coisa julgada na ACP deveria produzir efeitos
apenas dentro dos limites territoriais do juízo que
prolatou a sentença.

Em outras palavras, o que o art.
16 quis dizer foi o seguinte: a decisão do juiz na ação civil pública não
produz efeitos no Brasil todo. Ela irá produzir efeitos apenas na comarca (se
for Justiça Estadual) ou na seção ou subseção judiciária (se for Justiça
Federal) do juiz prolator.

 

Críticas da doutrina

A doutrina criticou bastante essa
alteração promovida no art. 16 e afirmou que a regra ali prevista não deveria
ser aplicada por ser inconstitucional, impertinente e ineficaz.

Resumo das principais críticas ao
dispositivo (DIDIER, Fredie; ZANETI, Hermes):

• Gera prejuízo à economia
processual e pode ocasionar decisões contraditórias entre julgados proferidos
em Municípios ou Estados diferentes;

• Viola o princípio da igualdade
por tratar de forma diversa os brasileiros (para uns irá “valer” a
decisão, para outros não);

• Os direitos coletivos “lato
sensu” são indivisíveis, de forma que não há sentido que a decisão que os
define seja separada por território;

• A redação do dispositivo mistura “competência” com
“eficácia da decisão”, que são conceitos diferentes. O legislador confundiu,
ainda, “coisa julgada” e “eficácia da sentença”. Sobre esse ponto, vale a pena
citar Hugo Nigro Mazzilli:

“Com efeito, a
Lei 9.494/97 confundiu competência com coisa julgada. A imutabilidade erga
omnes de uma sentença não tem nada a ver com a competência do juiz que a
profere. A competência importa para saber qual órgão da jurisdição vai decidir
a ação; mas a imutabilidade do que ele decidiu estende-se a todo o grupo,
classe ou categoria de lesados, de acordo com a natureza do interesse
defendido, o que muitas vezes significa, necessariamente, ultrapassar os
limites territoriais do juízo que proferiu a sentença”. (A defesa dos
interesses difusos em Juízo.
30ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017, p. 698).

 

• O art. 93 do CDC, que se aplica
também à Lei da ACP, traz regra diversa, já que prevê que, em caso de danos
nacional ou regional, a competência para a ação será do foro da Capital do
Estado ou do Distrito Federal, o que indica que essa decisão valeria, no
mínimo, para todo o Estado/DF.

 

Para o STJ, o art.
16 da LACP, com redação dada pela Lei nº 9.494/97, é válido? A decisão do juiz
na ação civil pública fica restrita apenas à comarca ou à seção (ou subseção)
judiciária do juiz prolator?

NÃO. O STJ decidiu que:

A eficácia das decisões proferidas em ações civis públicas
coletivas NÃO deve ficar limitada ao território da competência do órgão
jurisdicional que prolatou a decisão.

STJ. Corte Especial. EREsp 1134957/SP, Rel. Min. Laurita Vaz,
julgado em 24/10/2016.

 

Interessante também transcrever trecho do voto do brilhante
Min. Luis Felipe Salomão, no REsp 1.243.887/PR (STJ. Corte Especial, julgado em
19/10/2011):

“A bem da
verdade, o art. 16 da LACP baralha conceitos heterogêneos – como coisa julgada
e competência territorial – e induz a interpretação, para os mais apressados,
no sentido de que os “efeitos” ou a “eficácia” da sentença
podem ser limitados territorialmente, quando se sabe, a mais não poder, que
coisa julgada – a despeito da atecnia do art. 467 do CPC – não é “efeito” ou “eficácia”
da sentença, mas qualidade que a ela se agrega de modo a torná-la “imutável e
indiscutível”.

É certo também
que a competência territorial limita o exercício da jurisdição e não os efeitos
ou a eficácia da sentença, os quais, como é de conhecimento comum,
correlacionam-se com os “limites da lide e das questões decididas” (art. 468,
CPC) e com as que o poderiam ter sido (art. 474, CPC) – tantum
judicatum, quantum disputatum vel disputari debebat
.

A apontada
limitação territorial dos efeitos da sentença não ocorre nem no processo
singular, e também, como mais razão, não pode ocorrer no processo coletivo, sob
pena de desnaturação desse salutar mecanismo de solução plural das lides.

A prosperar
tese contrária, um contrato declarado nulo pela justiça estadual de São Paulo,
por exemplo, poderia ser considerado válido no Paraná; a sentença que determina
a reintegração de posse de um imóvel que se estende a território de mais de uma
unidade federativa (art. 107, CPC) não teria eficácia em relação a parte dele;
ou uma sentença de divórcio proferida em Brasília poderia não valer para o
judiciário mineiro, de modo que ali as partes pudessem ser consideradas ainda
casadas, soluções, todas elas, teratológicas.

A questão
principal, portanto, é de alcance objetivo (“o que” se decidiu) e subjetivo (em
relação “a quem” se decidiu), mas não de competência territorial.”

 

E para o STF? Para o STF, o
art. 16 da LACP, com redação dada pela Lei nº 9.494/97, é válido?

Também NÃO.

É
inconstitucional o art. 16 da Lei nº 7.347/85, na redação dada pela Lei nº
9.494/97.

É inconstitucional
a delimitação dos efeitos da sentença proferida em sede de ação civil pública
aos limites da competência territorial de seu órgão prolator.

STF. Plenário. RE 1101937/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em
7/4/2021 (Repercussão Geral – Tema 1075) (Info 1012).

 

Proteção constitucional dos
interesses difusos e coletivos

A Constituição Federal de 1988
ampliou a proteção aos interesses difusos e coletivos, não somente
constitucionalizando-os, mas também prevendo importantes instrumentos para
garantir sua efetividade.

Como exemplos disso, podemos
citar a previsão do mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX), da ação
popular (art. 5º, LXXII) e a constitucionalização da ação civil pública (art.
129, III).

No âmbito infraconstitucional, o sistema
protetivo dos interesses difusos e coletivos nasceu com a edição da Lei da Ação
Popular (Lei nº 4.717/65) e foi ampliado com a Lei da Ação Civil Pública (Lei
nº 7.347/85).

O Código de Defesa do Consumidor
(Lei nº 8.078/90) foi mais uma evolução legislativa trazendo maior efetividade
à proteção dos interesses difusos e coletivos.

O art. 90 do CDC, somado ao art. 21 da LACP, estabeleceu um
verdadeiro microssistema processual coletivo, com destaque para a eficácia erga
omnes
da sentença proferida na ação civil pública:

Art. 90. Aplicam-se às ações previstas
neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei nº 7.347, de 24 de
julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não
contrariar suas disposições.

 

Art. 21. Aplicam-se à defesa dos
direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os
dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do
Consumidor.       (Incluído Lei nº 8.078/90)

 

Esse microssistema significa que as
normas desses diplomas deverão ser aplicadas mutuamente a fim de se garantir
uma proteção mais efetiva dos interesses difusos e coletivos.

 

Lei nº 9.494/94 representa
retrocesso na proteção dos interesses difusos e coletivos

A alteração do art. 16 da Lei nº
7.347/85 promovida pela Lei nº 9.494/97, fruto da conversão da MP 1.570/97,
veio na contramão do avanço institucional de proteção aos direitos
metaindividuais. Vale ressaltar, inclusive, que essa modificação viola os
preceitos norteadores da tutela coletiva e atenta contra os comandos
pertinentes ao amplo acesso à Justiça e à isonomia entre os jurisdicionados.

A versão original do art. 16 da
LACP previa a coisa julgada erga omnes da sentença civil proferida em
processo na qual decididos direitos difusos e coletivos. O CDC, editado em
1990, ampliou a efetividade ao estender esses efeitos para os direitos
individuais com dimensão coletiva (art. 103).

Nesse contexto, as Leis nº 7.347/85
e 8.078/90 seguiram o mesmo padrão de proteção dos direitos metaindividuais.
Elas estão de acordo com os princípios da unidade da Constituição e da máxima
efetividade das normas constitucionais. A indevida restrição criada pelo art.
16 da LACP, por sua vez, foi contra os princípios da igualdade e da eficiência
na prestação jurisdicional, razão pela qual se mostra inconstitucional.

 

Grave prejuízo à isonomia e
a efetividade da prestação jurisdicional

A alteração legislativa promovida
pela Lei nº 9.494/97 passou a exigir dos legitimados, nos casos em que a lesão
ou ameaça a direito fosse de âmbito regional ou nacional, a propositura de
tantas demandas quanto fossem os territórios em que residem as pessoas lesadas.
Ex: em um dano nacional, teria que ser proposta uma ação em cada comarca.
Percebe-se, sem muito esforço, que isso acarreta grave prejuízo ao necessário
tratamento isonômico de todos perante a Justiça, além de afrontar claramente
eficiência na prestação da atividade jurisdicional.

Na ação civil pública, os
beneficiados podem ser indetermináveis – direitos difusos – , ou
indeterminados, em um primeiro momento – direitos coletivos e individuais
homogêneos –, sendo possível que os titulares do direito estejam dispersos em
diferentes Municípios ou Estados; ou ainda em todos os Estados e Municípios
brasileiros; mas sempre devendo ser observados, na efetividade da prestação
jurisdicional, os princípios da igualdade e da eficiência.

Mais uma vez se mostra salutar recorrer às palavras do Min.
Luis Felipe Salomão:

“A apontada
limitação territorial dos efeitos da sentença não ocorre nem no processo
singular, e também, como mais razão, não pode ocorrer no processo coletivo, sob
pena de desnaturação desse salutar mecanismo de solução plural das lides.

A prosperar
tese contrária, um contrato declarado nulo pela justiça estadual de São Paulo,
por exemplo, poderia ser considerado válido no Paraná; a sentença que determina
a reintegração de posse de um imóvel que se estende a território de mais de uma
unidade federativa (art. 107, CPC) não teria eficácia em relação a parte dele;
ou uma sentença de divórcio proferida em Brasília poderia não valer para o
judiciário mineiro, de modo que ali as partes pudessem ser consideradas ainda
casadas, soluções, todas elas, teratológicas.” (REsp 1.243.887/PR)

 

Patente, portanto, o desrespeito
aos princípios da igualdade, da eficiência, da segurança jurídica e da efetiva
tutela jurisdicional.

 

Com a declaração de
inconstitucionalidade da redação modificada do art. 16 da LACP, surge uma
relevante indagação a ser feita: de quem é a competência para julgar uma ação
civil pública?

Quanto às ações civis públicas cujo objeto seja de âmbito
apenas local, deve-se aplicar o art. 2º da Lei nº 7.347/85:

Art. 2º As ações previstas nesta Lei
serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá
competência funcional para processar e julgar a causa.

 

E se a ACP tiver projeção
regional ou nacional?

Neste caso, como não há norma expressa
na LACP tratando sobre o tema, deve-se recorrer ao art. 93, II, do CDC, com
base na noção de microssistema processual (art. 21 da LACP).

Assim, a definição do juízo competente para o processamento
de ações civis públicas cuja sentença tenha projeção regional ou nacional deve
observar o disposto no art. 93, II, do CDC:

Art. 93. Ressalvada a competência da
Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:

(…)

II – no foro da Capital do Estado ou no
do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se
as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.

 

Portanto, em se tratando de ação
civil pública com abrangência nacional ou regional, sua propositura deve
ocorrer no foro, ou na circunscrição judiciária, de capital de Estado ou no
Distrito Federal.

Em se tratando de alcance
geograficamente superior a um Estado, a opção por capital de Estado
evidentemente deve contemplar uma que esteja situada na região atingida.

Com isso, impede-se a escolha de
juízos aleatórios para o processo e julgamento de ações que versem sobre esses
direitos difusos e coletivos.

 

Como evitar decisões
conflitantes proferidas por juízos diversos em ações civis públicas que estejam
tramitando em comarcas diferentes?

O ordenamento jurídico oferece um critério que impede esse
problema, com base nos art. 55, § 3º e art. 286 do CPC, além do art. 2º,
parágrafo único, da Lei nº 7.347/85:

Art. 55 (…)

§ 3º Serão reunidos para julgamento
conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões
conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão
entre eles.

 

Art. 286.  Serão distribuídas por dependência as causas
de qualquer natureza:

I – quando se relacionarem, por conexão
ou continência, com outra já ajuizada;

II – quando, tendo sido extinto o
processo sem resolução de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em
litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus
da demanda;

III – quando houver ajuizamento de
ações nos termos do art. 55, § 3º, ao juízo prevento.

Parágrafo único.  Havendo intervenção de terceiro, reconvenção
ou outra hipótese de ampliação objetiva do processo, o juiz, de ofício, mandará
proceder à respectiva anotação pelo distribuidor.

 

Art. 2º (…)

Parágrafo único  A propositura da ação prevenirá a jurisdição
do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma
causa de pedir ou o mesmo objeto.

 

Dessa maneira, o juiz competente
– nos termos do artigo 2º da LACP e 93 do CDC – , que primeiro conhecer da
matéria ficará prevento para processar e julgar todas as demandas que proponham
o mesmo objeto.

A aplicação dessas normas torna
possível definir qual o juiz competente, inclusive para ações cuja decisão
tenha efeitos regionais ou nacionais. E, uma vez fixada essa competência, o
primeiro que conhecer da matéria, entre os competentes, ficará prevento.

 

Em suma:

I – É
inconstitucional o art. 16 da Lei nº 7.347/85, alterada pela Lei nº 9.494/97.

II – Em se
tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência
deve observar o art. 93, II, da Lei nº 8.078/90 (CDC).

III –
Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional,
firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o
julgamento de todas as demandas conexas.

STF. Plenário. RE 1101937/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em
7/4/2021 (Repercussão Geral – Tema 1075) (Info 1012). 

Artigo Original em Dizer o Direito

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