Ensino religioso confessional

A Lei nº
9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) traz a seguinte previsão sobre
o ensino religioso:

Art. 33. O ensino religioso, de
matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e
constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo.

§ 1º Os sistemas de ensino
regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino
religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos
professores.

§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão
entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a
definição dos conteúdos do ensino religioso.

Em 2008, o Brasil assinou um
acordo com a Santa Sé (suprema autoridade da Igreja Católica) a fim de dispor
sobre a situação jurídica desta Igreja em nosso país.

Este acordo Brasil-Santa Sé (Estatuto
Jurídico da Igreja Católica no Brasil) foi aprovado pelo Decreto Legislativo
698/2009 e promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto nº
7.107/2010.

O artigo 11, §
1º do acordo prevê o seguinte:

Artigo 11

A República Federativa do Brasil, em
observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da
pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em
vista da formação integral da pessoa.

§1º O ensino religioso, católico e de
outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição
e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.

Com base nesses dispositivos acima
transcritos, em diversas escolas públicas são oferecidas aulas de religião com
base nos fundamentos da Igreja Católica.

ADI

O Procurador-Geral da República
ajuizou ação direta de inconstitucionalidade pedindo que fosse conferida
interpretação conforme a Constituição ao art. 33, §§ 1º e 2º da Lei de
Diretrizes e Bases e ao art. 11, § 1º do acordo Brasil-Santa Sé.

Na ação, a PGR afirmou não ser
permitido que se ofereça ensino religioso confessional (vinculado a uma
religião específica). Para o autor, o ensino religioso deve ser voltado para a
história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva
laica.

A única forma de compatibilizar o caráter laico do Estado
brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas consiste na adoção de
“modelo não confessional”, em que a disciplina deve ter como conteúdo
programático a exposição das doutrinas, práticas, história e dimensões sociais
das diferentes religiões, incluindo posições não religiosas, “sem qualquer
tomada de partido por parte dos educadores”, e deve ser ministrada por
professores regulares da rede pública de ensino, e não por “pessoas vinculadas
às igrejas ou confissões religiosas”.

O pedido do PGR foi acolhido? A ação foi julgada procedente?

NÃO. O STF julgou improcedente a ADI. Por maioria dos votos
(6 x 5), os Ministros entenderam que o ensino religioso nas escolas públicas
brasileiras pode ter natureza confessional, ou seja, pode sim ser vinculado a
religiões específicas.

Laicidade do Estado x Liberdade religiosa

O Estado brasileiro é laico
(secular ou não-confessional), ou seja, aquele no qual não se tem uma religião
oficial. Isso está consagrado no art. 19, I, da CF/88:

Art. 19. É vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou
igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou
seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada,
na forma da lei, a colaboração de interesse público
;

Ao mesmo tempo, a CF/88 também
assegura a liberdade religiosa, nos seguintes termos:

Art. 5º (…)

VI – é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias; 

Além disso, a CF/88 previu a
possibilidade de ser oferecido ensino religioso na rede pública de ensino:

Art. 210. (…)

§ 1º O ensino religioso, de matrícula
facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental.

Desse modo, a partir da conjugação do binômio Laicidade do
Estado (art. 19, I) e Liberdade religiosa (art. 5º, VI), o STF entendeu que o
Estado deverá assegurar o cumprimento do art. 210, § 1º da CF/88, autorizando
na rede pública, em igualdade de condições, o oferecimento de ensino
confessional das diversas crenças, mediante requisitos formais previamente
fixados pelo Ministério da Educação.

Assim, deve ser permitido aos alunos, que expressa e
voluntariamente se matricularem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao
ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão
religiosa, por integrantes da mesma, devidamente credenciados a partir de
chamamento público e, preferencialmente, sem qualquer ônus para o Poder
Público.

Em outras palavras, se a igreja católica ou uma igreja evangélica
quiser oferecer ensino religioso confessional cristão, ministrado por um padre
ou pastor vinculado à Igreja, ela pode. Se uma mesquita islâmica também assim
desejar, igualmente pode. Se o representante de uma religião de matriz africana
quiser oferecer as aulas, isso deverá ser permitido e assim por diante.

O STF entendeu, portanto, que a CF/88 não proíbe que sejam
oferecidas aulas de uma religião específica, que ensine os dogmas ou valores
daquela religião. Não há qualquer problema nisso, desde que se garanta
oportunidade a todas as doutrinas religiosas.

O ensino religioso é, então, encarado da seguinte forma: o
Estado disponibiliza a estrutura física das escolas públicas, assim como já
acontece com alguns hospitais e presídios, para que seja usada para que a
religião que assim desejar possa fazer a livre disseminação de suas crenças e
ideais para aqueles alunos que professam da mesma fé e que voluntariamente
queriam cursar a disciplina.

E não se trata de permitir proselitismo religioso, que tem
por objetivo a conversão de determinada pessoa para que adira a uma religião,
pois o requisito constitucional primordial é a matrícula facultativa do aluno
que já professa a crença objeto da disciplina.

Imposição de conteúdo viola a liberdade religiosa

O respeito ao binômio Laicidade do Estado/Consagração da
Liberdade religiosa somente pode ser atingido se não houver dirigismo estatal
na imposição prévia do conteúdo das aulas religiosas, o que significaria
verdadeira censura à liberdade religiosa.

O direito fundamental à liberdade religiosa não exige do
Estado concordância ou parceria com uma ou várias religiões; exige, no entanto,
respeito. O Estado deve respeitar todas as confissões religiosas, bem como a
ausência delas, e seus seguidores, mas jamais sua legislação, suas condutas e
políticas públicas devem ser pautadas por quaisquer dogmas ou crenças
religiosas ou por concessões benéficas e privilegiadas a determinada religião.

Conteúdo das aulas é definido pela religião que está promovendo o curso

O STF rejeitou a tese do PGR de que as aulas de ensino
religioso deveriam ser voltadas para a história e a doutrina das várias
religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica e “isenta”.

Para o Supremo, não faria sentido garantir a frequência facultativa
às aulas de ensino religioso se esse se limitasse a enunciar, de maneira
absolutamente descritiva e neutra, princípios e regras gerais das várias
crenças.

Se fosse para fazer apenas a descrição das religiões sob os
enfoques histórico, sociológico ou filosófico, a CF não teria dito que a
frequência é facultativa. Aliás, existem matérias, como a filosofia, a
sociologia e a história que já abordam, de forma descritiva, os movimentos
religiosos, sendo tais disciplinas, em regra, obrigatórias.

A frequência é facultativa justamente porque as aulas podem
sim ter proselitismo religioso, ou seja, divulgação positiva de uma determinada
religião. Como o Estado é laico e vigora a liberdade religiosa, os alunos não
podem ser obrigados a frequentar essas aulas, mas elas podem existir, conforme
previsto no art. 210, § 1º da CF/88.

Pontos de contato entre o Estado e as religiões

Apesar de o Estado brasileiro ser laico, ele não é avesso à
religiosidade. Ao contrário, existe um relacionamento entre o Estado e as
Igrejas, conforme explica José Afonso da Silva:

“O Estado Brasileiro é um Estado laico. A norma-parâmetro
dessa laicidade é o art. 19, I, que define a separação entre Estado e Igreja.
Mas como veremos ao comentá-lo, adota-se uma separação atenuada, ou seja, uma
separação que permite pontos de contato, tais como a previsão de ensino
religioso (art. 210, §1º), o casamento religioso com efeitos civis (art. 226,
§2º) e a assistência religiosa nas entidades oficiais, consubstanciada neste
dispositivo. Enfim, fazem-se algumas concessões à confessionalidade abstrata,
porque não referida a uma confissão religiosa concreta, se bem que ao largo da
história do país o substrato dessa confessionalidade é a cultura haurida na
prática do Catolicismo”. (Comentário
Contextual à Constituição
. São Paulo: Malheiros, 7ª ed, p. 97).

Assim, a separação entre o Estado e as igrejas, proclamada
no art. 19, I, da CF/88, não prejudica a colaboração do Poder Público com
entidades religiosas. Isso é, inclusive, previsto na parte final do referido
dispositivo constitucional.

Citem-se, como exemplo, as parcerias do Poder Público nas
áreas da saúde com as Santas Casas de Misericórdia (católicas) e com a
Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.

Não se pode adotar o dirigismo estatal no ensino religioso

Em se tratando de ensino religioso, não se pode admitir o
dirigismo estatal.

O dirigismo estatal pode se manifestar de duas formas:

1ª) Na intenção do Estado de elaborar um conteúdo único e
oficial para a disciplina de ensino religioso, resumindo neste curso a
exposição de aspectos descritivos, históricos, filosóficos e culturais de todas
as religiões, matéria que deveria ser ministrada por professores do Estado sem
vinculação com qualquer religião.

Esta forma de dirigismo estatal violaria a Consagração da
Liberdade Religiosa, pois simultaneamente estaria mutilando diversos dogmas,
conceitos e preceitos das crenças escolhidas e ignorando de maneira absoluta o
conteúdo das demais. Além disso, estaria obrigando alunos de uma determinada
religião a ter contato com crenças, dogmas e liturgias contrários à sua própria
fé, em desrespeito ao art. 5º, VI, da CF/88.

2ª) Na intenção do Estado de optar pelo conteúdo
programático de uma única crença, concedendo-lhe o monopólio do ensino
religioso uniconfessional. Isso também seria inconstitucional por configurar
flagrante privilégio e desrespeito ao Estado Laico, em clara violação ao art.
19, I, da CF/88. Não pode, portanto, haver o monopólio do ensino religioso
uniconfessional.

Dessa forma, em se tratando de ensino religioso, o Estado
não deve interferir para determinar o conteúdo programático nem para direcionar
o estudo para uma religião específica.

Em suma:

O
Estado, observado o binômio Laicidade do Estado (art. 19, I) / Consagração da
Liberdade religiosa (art. 5º, VI) e o princípio da igualdade (art. 5º, caput),
deverá atuar na regulamentação do cumprimento do preceito constitucional
previsto no art. 210, §1º, autorizando na rede pública, em igualdade de
condições, o oferecimento de ensino confessional das diversas crenças, mediante
requisitos formais e objetivos previamente fixados pelo Ministério da Educação.

Dessa
maneira, será permitido aos alunos que voluntariamente se matricularem o pleno
exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de
acordo com os princípios de sua confissão religiosa, por integrantes da mesma,
devidamente credenciados e, preferencialmente, sem qualquer ônus para o Poder
Público.

STF. Plenário. ADI 4439/DF, rel. orig.
Min. Roberto Barroso, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em
27/9/2017 (Info 879).

Parcerias

O Estado deverá estabelecer regras administrativas gerais
que permitam a realização de parcerias voluntárias sem transferências de
recursos financeiros, em regime de mútua cooperação com todas as confissões
religiosas que demonstrarem interesse, para a concretização do art. 210, § 1º
da CF/88, em termos semelhantes aos previstos na Lei 13.204/2015.

Para isso, as Secretarias de Educação deverão realizar
prévio chamamento público para cadastrarem as confissões religiosas
interessadas. Posteriormente, no período de matrícula da rede pública, deverão
ser ofertadas as diversas possibilidades para que os alunos ou seus
pais/responsáveis legais, facultativamente, realizem expressamente sua opção
entre as várias confissões ofertadas ou pela não participação no ensino
religioso.

Com a demanda definida, o Poder Público poderá estabelecer
os horários, preferencialmente nas últimas aulas do turno, para que haja a
liberação daqueles que não pretendam participar.

Artigo Original em Dizer o Direito

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