É juridicamente possível a realização do procedimento de criogenia no Brasil?


Imagine
a seguinte situação hipotética:

João
faleceu deixando duas filhas: Carla e Larissa.

Carla
morava em Porto Alegre (RS) e Larissa vivia no Rio de Janeiro (RJ) com o pai (João).

Logo
após a morte, Larissa avisou sua irmã que o desejo de João era o de seu corpo
fosse submetido ao procedimento de congelamento (criogenia). Por isso, Larissa
explicou que já havia providenciado os preparativos para a realização da
criogenia, por intermédio da empresa Rio Pax, localizada na cidade do Rio de
Janeiro/RJ, para posterior traslado do corpo aos Estados Unidos, onde o corpo
ficaria congelado.

Carla
não concordou e afirmou que essa ideia não fazia sentido. Disse, ainda, que o
pai nunca lhe contou isso e que não deixou nada assinado manifestando esse suposto
desejo.

Diante
disso, Carla ajuizou ação ordinária contra Larissa com o objetivo de impedir a realização
da criogenia, buscando, em consequência, o sepultamento do corpo de seu pai ao
lado de sua ex-esposa no cemitério.

Larissa contestou afirmando que seu pai era uma pessoa aficionada
por tecnologia e sempre acreditou na criogenia. Argumentou também que a autora
não tinha muito contato com o genitor e que ele não deixou seu desejo por
escrito porque nunca acreditou que pudesse haver algum empecilho por parte da outra
filha.

A
discussão jurídica travada neste caso reside, portanto, no seguinte ponto: para
que um morto seja submetido à criogenia, é necessário que ele tenha deixado uma
declaração escrita informando esse seu desejo? É necessária alguma formalidade específica?

NÃO.

Não
há exigência de formalidade específica acerca da manifestação de última vontade
do indivíduo sobre a destinação de seu corpo após a morte, sendo possível a
submissão do cadáver ao procedimento de criogenia em atenção à vontade
manifestada em vida.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.693.718-RJ, Rel.
Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/03/2019 (Info 645).

Vamos
entender os argumentos jurídicos, fazendo abaixo um resumo do brilhante voto do
Min. Marco Aurélio Bellize.

Hipóteses
mais comuns de destinação dos restos mortais

No
Brasil, a forma mais comum de destinação dos restos mortais de um ser humano é o
sepultamento em túmulo, com o respectivo enterro (inumação) no cemitério.

Existem,
contudo, outras formas de destinação do corpo após a morte do indivíduo.

Como
exemplos mais comuns, podemos citar:

a) a cremação (incineração do
cadáver com posterior entrega das cinzas aos familiares em urna apropriada),
regulada pelo art. 77, § 2º da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos):

Art. 77 (…)

§ 2º A cremação de cadáver somente será
feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no
interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2
(dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no caso de morte violenta,
depois de autorizada pela autoridade judiciária.

b) a destinação gratuita do
próprio corpo, após a morte, para fins científicos ou altruísticos, nos termos
do art. 14 do Código Civil:

Art. 14. É válida, com objetivo
científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou
em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição
pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

c) a destinação do cadáver não reclamado
às escolas de Medicina, hipótese disciplinada pela Lei nº 8.501/92, cujo art. 2º
preconiza:

Art. 2º O cadáver não reclamado junto
às autoridades públicas, no prazo de trinta dias, poderá ser destinado às
escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.

Hipóteses
menos tradicionais

Existem
também algumas situações mais diferentes das tradicionais, verificadas em
diversas partes do mundo, e que não são previstas expressamente na legislação
brasileira:


a “resomação” ou “biocremação”: processo em que, utilizando-se água
superaquecida e hidróxido de potássio, o cadáver é liquefeito, sobrando apenas
os ossos, os quais são cremados e devolvidos aos familiares em uma urna.

os “recifes eternos” (eternal reefs):
procedimento em que se misturam os restos mortais de um indivíduo com cimento
ecológico para criar formações de recifes artificiais no fundo do mar;

a “plastinação”: procedimento que, semelhante à mumificação, consiste em
preservar o corpo em uma forma semireconhecível. Segundo informações obtidas no
site www.hypescience.com, essa técnica foi inventada pelo anatomista Gunther
von Hagens, sendo “usada em escolas de medicina e laboratórios de anatomia para
preservar amostras dos órgãos para a educação. Mas von Hagens tomou o processo
um passo adiante, e criou exposições de corpos plastinados como se estivessem
congelados no meio de suas atividades cotidianas. Segundo o Instituto de
Plastinação, milhares de pessoas se inscreveram para doar seus corpos para a
educação ou exposição”.
Criogenia

Outra
forma de destinação do corpo humano para depois da morte não prevista em nossa
legislação, que vem ganhando muitos adeptos no mundo todo é a criogenia.

A
criogenia (ou criopreservação) é a técnica de congelamento do corpo humano após
a morte, em baixíssima temperatura, a fim de conservá-lo, com o intuito de reanimação
futura da pessoa, caso sobrevenha alguma importante descoberta científica que
possibilite o seu retorno à vida.

Em
outras palavras, a criogenia consiste no congelamento de cadáveres a baixas
temperaturas, com a finalidade de que, com os possíveis avanços da ciência,
sejam, um dia, ressuscitados.

Assim,
quando o paciente é declarado morto, os médicos tentam evitar a deterioração do
corpo, injetando-lhe medicamentos específicos, e se utilizando de máquinas que
mantém a circulação do sangue e a oxigenação do corpo.

O
corpo é envolto em uma manta térmica especial, que ajuda a mantê-lo frio, e
transportado até a clínica em temperaturas baixas, que fazem com que o cérebro
exija menos oxigênio e mantenha os tecidos vivos por mais tempo.

Na
clínica, o sangue do paciente é retirado ao mesmo tempo em que, por outro tubo,
é inserido o líquido crioprotetor, uma substância química à base de glicerina.
O líquido substitui outros compostos intracelulares, evitando que cristais de
gelo se formem dentro das células. Depois de injetadas as substâncias, o corpo
é direcionado para uma cabine com gás nitrogênio circulante. Lá, fica esfriando
por cerca de três horas para assegurar que todas as partes do corpo serão
congeladas por igual. No final do processo, o paciente estará completamente
vitrificado.

Em
seguida, o corpo é colocado em um saco plástico protetor e imerso em um
cilindro de nitrogênio líquido, onde é monitorado. O corpo, então, repousará em
tal cilindro, podendo ser visitado pela família até que a ciência descubra um
modo de recuperá-lo.
Vale
ressaltar que os familiares do falecido que está em criogenia podem visitar o
corpo no instituto onde ele fica armazenado (Cryonics Institute), havendo,
inclusive, um local para depósito de flores, como em um cemitério.

Há,
atualmente cerca de 250 pessoas congeladas em tubos de nitrogênio, conforme
informações da Alcor Life Extension Foundation, fundação destinada à pesquisa e
realização da criogenia, bem como do Cryonics Institute, instituto que realiza
o procedimento de criopreservação, ambos localizados nos Estados Unidos.
Criogenia:
lacuna normativa

O ordenamento jurídico pátrio não
possui previsão legal sobre a utilização da criogenia em corpo humano post mortem. Também não há qualquer vedação
no nosso sistema jurídico em relação à adoção desse procedimento. Trata-se,
assim, de verdadeira lacuna normativa.

Nessas hipóteses, para viabilizar a
integração da norma jurídica, o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-lei nº 4.657/42) estabelece a seguinte
regra:

Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz
decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de
direito.

Direito
ao cadáver

O
ordenamento jurídico confere certa margem de liberdade à pessoa para dispor
sobre seu patrimônio jurídico após a morte, assim como protege essa vontade e
assegura que seja observada.

Existe,
portanto, uma autonomia para que a pessoa indique, em vida, o que deve ser
feito com seu corpo, após a sua morte. Esse direito que a pessoa tem é chamado
de “direito ao cadáver”.

O direito ao cadáver é uma vertente do
direito ao próprio corpo, sendo considerado, portanto, como um desdobramento do
direito de personalidade. Nesse sentido:

“Como prolongamento do direito ao
corpo, e em nosso entender, sob a mesma base, encontra-se o direito da pessoa
de dispor quanto ao destino do próprio cadáver, devendo ser respeitada a sua
vontade pela coletividade, salvo se contrária à ordem pública.” (BITTAR, Carlos
Alberto. Os direitos da personalidade.
7ª ed. Atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004, p. 85-86)

Por
força do direito ao cadáver a pessoa tem a possibilidade de dizer de qual modo
deseja que seu corpo seja sepultado (ex: se cremado, enterrado etc.), bem como
pode autorizar a doação do seu corpo morto, no todo ou em partes).

Criogenia
está protegida pelo direito ao cadáver

Com
isso, conclui-se que o procedimento da criogenia encontra proteção jurídica, na
medida em que o indivíduo tem autonomia para escolher a destinação de seu corpo
e não há, na lei, uma proibição quanto à escolha por esse procedimento.

Vale
ressaltar, ainda, que, além de não haver proibição na lei, a criogenia não
ofende a moral e os bons costumes.

Direito
ao cadáver não é de titularidade dos herdeiros do falecido, mas pode ser por
estes defendido

Os
familiares ou herdeiros do morto não são os titulares do direito ao cadáver. No
entanto, possuem capacidade jurídica de fato para exercer a sua proteção
considerando a impossibilidade do falecido de defender esse seu direito.

Em
casos envolvendo a tutela de direitos da personalidade do indivíduo post mortem (direito ao cadáver), o
ordenamento jurídico legitima os familiares mais próximos a atuarem em favor
dos interesses deixados pelo de cujus.
São exemplos dessa legitimação as normas insertas nos arts. 12, parágrafo
único, e 20, parágrafo único, do Código Civil.

Assim,
a filha do falecido tem legitimidade para defender a vontade manifestada por
seu pai no sentido de ser submetido à criogenia.

Ok.
É possível que o indivíduo declare em vida que deseja que seu corpo seja submetido
à criogenia. No entanto, a pergunta que vem em seguida é a seguinte: é necessário
que o indivíduo, em vida, tenha feito uma manifestação escrita nesse sentido?

NÃO.
Embora seja recomendável, a fim de evitar futuros litígios entre os familiares,
não se exige que a pessoa tenha deixado por escrito a vontade de ser cremada
após a morte, isto é, não há exigência legal de que essa manifestação de
vontade seja formalizada por meio de escritura pública, testamento ou outro
documento correlato, sobretudo porque na nossa cultura não é de praxe deixar
formalizado esse tipo de última vontade.

Com
base em que se conclui que não é necessária manifestação escrita neste caso?

Com base naquilo que a Lei dos
Registros Públicos prevê a respeito da cremação:

Art. 77 (…)

§ 2º A cremação de cadáver somente será
feita daquele que houver manifestado a vontade
de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito
houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no
caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.

A
LRP não exige que o indivíduo tenha deixado um documento escrito dizendo que
desejava ser cremado. Dessa maneira, como a Lei não exige uma forma especial, deve-se
concluir que é possível aferir a vontade do indivíduo, após o seu falecimento,
por quaisquer outros meios de prova legalmente admitidos (ex: testemunhas).

Esse
mesmo raciocínio da cremação deve ser aplicado para a criogenia.

Em
caso de ausência de manifestação expressa deve-se dar prevalência à palavra dos
familiares próximos ao morto

Na
falta de manifestação expressa deixada pelo indivíduo em vida acerca da
destinação de seu corpo após a morte, presume-se que sua vontade seja aquela
apresentada por seus familiares mais próximos.

Os
familiares mais próximos podem traduzir a expressão da vontade da pessoa no
sentido de ser submetida ao procedimento da criogenia após o seu falecimento.

Voltando
ao nosso exemplo:

Tanto
a autora como a ré possuem o mesmo grau de parentesco com o falecido (são
filhas). No entanto, Larissa morava sozinha com seu pai há muitos anos, sendo razoável
concluir, diante das particularidades fáticas do caso, que a sua manifestação é
a que traduz a real vontade de seu genitor em relação à destinação de seus
restos mortais.

Artigo Original em Dizer o Direito

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