Direitos trabalhistas brasileiros também são assegurados a pessoas estrangeiras, mas imigrantes enfrentam desafios para inclusão no mercado de trabalho
Detalhe de pessoa estendendo a mão e entregando passaporte a outra
08/09/22 – No Haiti, Gesner Petit Homme foi professor de escolas primárias por quase 10 anos. Depois, tentou a vida como vendedor e chegou a montar um negócio que não vingou. As dificuldades financeiras e a falta de oportunidades no país o levaram à decisão de deixar o Haiti em busca de trabalho.
Há seis anos, Homme desembarcou no Brasil, país que ofereceu as condições mais favoráveis para o ingresso regular por meio da concessão de um visto humanitário (que busca facilitar a entrada de pessoas que vêm de países em situações adversas). Aqui, ele trabalha há mais de cinco anos com carteira assinada, como auxiliar de serviços gerais em um condomínio no bairro Jardim Botânico, em Brasília.
Em uma década, o volume de trabalhadores estrangeiros no Brasil saltou de 62.423, em 2011, para 181.385, em 2020, conforme relatório do Observatório das Migrações Nacionais (OBMigra). O dado contempla diferentes tipos de imigração, incluindo refugiados ou imigrantes que ingressam com concessão de visto. Pessoas vindas do Haiti, como Gesner, e da Venezuela formam mais da metade dos imigrantes no mercado formal brasileiro. A região Sul e o Estado de São Paulo são os principais destinos.
“Foi o meu primeiro emprego no Brasil, e eu já entrei ‘fichado’ (formalmente contratado). Tudo o que vi – férias, décimo terceiro – foi de acordo com os direitos. Isso dá uma segurança”, conta Gesner. Com a remuneração fixa, ele conseguiu trazer a esposa e o filho mais novo – que, aos 23, trabalha, também com carteira assinada, em uma igreja na capital federal – e envia dinheiro para dois filhos que continuam no Haiti. “A decisão que tomei foi certa, porque melhorou a minha situação”, conta.
Direitos trabalhistas para estrangeiros
O ministro Agra Belmonte, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), explica que a nova Lei de Migração, de 2017, regulamentada pelo Decreto 9.199/2017, garante igualdade de tratamento e de oportunidades a imigrantes nas distintas esferas sociais, incluindo o trabalho. Assim, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aplica-se aos estrangeiros da mesma forma que aos brasileiros, o que lhes assegura todos os direitos trabalhistas do Brasil.
Mas não foi sempre assim. Até então, vigia a Lei 6.815/1980. “Editada durante a ditadura militar, ela tinha como princípios a segurança nacional e a proteção dos trabalhadores brasileiros contra a concorrência do trabalho efetuado por estrangeiros”, explica. Conforme o ministro, o novo texto adequou a legislação específica à previsão constitucional de que o Direito brasileiro é aplicável a qualquer pessoa que se encontre em território nacional, independentemente de sua nacionalidade.
Para trabalhar formalmente no Brasil, o imigrante necessita obter autorização de residência para fins laborais, Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), CPF e Carteira de Trabalho (CTPS).
Em caso de conflitos trabalhistas ocorridos em território nacional envolvendo trabalhadores estrangeiros e empregadores, o julgamento cabe à Justiça do Trabalho.
Imigrantes em situação ilegal
Mesmo que esteja em situação ilegal – e poderá responder por isso nas esferas competentes -, se trabalhar no Brasil em atividade lícita, o imigrante poderá reivindicar os direitos trabalhistas. “Logo, o trabalhador pode se informar junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao sindicato de categoria ou a advogado particular sobre seus direitos e acionar a Justiça do Trabalho para eventuais reparações trabalhistas”, explica o ministro Agra Belmonte.
Em um caso assim, a Justiça do Trabalho determinou a liberação dos valores do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) a um imigrante de Bangladesh que estava no Brasil irregularmente. A decisão, de 2016 (anterior à nova Lei de Migração), foi premiada no Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Em outro, julgado pela Sexta Turma do TST em 2006 (também anterior à nova lei), um trabalhador paraguaio que estava em situação irregular no Brasil conseguiu o direito de acionar a Justiça do Trabalho após exercer a função de eletricista por 17 anos em uma empresa e ter sido demitido sem receber as verbas rescisórias e o FGTS.
Desafios para integração no mercado formal
Para Leonardo Cavalcanti, coordenador científico do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) e professor no Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília (CEPPAC-UnB), são necessárias políticas e ações que possibilitem a integração dessas pessoas no mercado de trabalho. “Uma das dificuldades é o idioma. Depois, as homologações dos estudos. Muitos desenvolvem uma função aquém da sua formação. Encontramos médicos na cozinha, engenheiros ajudantes de obras, médicos fazendo obra, atuando como cabeleireiros”.
A procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, coordenadora Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho (MPT), cita, além disso, a limitação de estruturas públicas para dar amparo a essas pessoas, como as de educação e saúde. Traz como exemplo, também, o quadro reduzido de pessoal no Sistema Nacional de Empregos (Sine) e as taxas de desemprego.
Trabalho precário e análogo à escravidão
Ainda segundo a procuradora, “a pessoa em situação de vulnerabilidade social, econômica, documental e de integração acaba sujeita a várias formas de superexploração no mundo do trabalho”. Ela alerta que essa situação gera danos de diversas ordens, com violação aos direitos humanos das formas mais graves possíveis. “São danos psicológicos, físicos e mentais que podem durar a vida inteira”.
Em junho deste ano, por exemplo, uma operação encontrou 25 bolivianos em situação de trabalho análoga à escravidão em uma confecção de Indaiatuba, no interior de São Paulo. Em março, oito bolivianos já haviam sido resgatados na capital paulista.
Tráfico de pessoas
Outro problema é o tráfico de pessoas, crime praticado, entre outras finalidades, para submeter pessoas a trabalho análogo à escravidão. Relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) divulgado no ano passado alertou para o problema e destacou que mulheres, adolescentes, crianças e pessoas LGBTQIA+ são as mais vulneráveis. Conforme o documento, de 84 casos atendidos pela Defensoria Pública da União entre 2013 e 2017 envolvendo imigrantes, 14,3% tinham relação com trabalho escravo e tráfico de pessoas, e 13,1% com trabalho escravo.
Preconceitos
O que também agrava as dificuldades enfrentadas por muitos imigrantes no mercado de trabalho formal é o preconceito. “Há questões históricas que precisam ser enfrentadas pelo Brasil, relacionadas a raça e gênero”, comenta Leonardo Cavalcanti.
Relatório do OBMigra aponta que, entre 2011 e 2020, especialmente em razão da vinda de pessoas do Haiti e da Venezuela, a composição racial dos imigrantes no mercado formal mudou: negros e pardos, que eram apenas 13,9%, passaram a ser maioria.
Com isso, vêm uma série de diferenciações: estrangeiros vindos do chamado Sul Global (regiões mais pobres) têm remunerações menores que os do Norte Global (países mais ricos), e negros tendem a receber até dois salários mínimos. As mulheres imigrantes recebem cerca de 70% do valor dos rendimentos dos homens, e as oriundas do Sul Global recebem em média menos da metade dos rendimentos das do Norte Global. Os dados são do OBMigra.
Empregabilidade e renda
Atento a esse problema, um grupo de estudantes do Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (Cefet-RJ) criou, em 2017, a Toti, plataforma de ensino e inclusão de pessoas refugiadas e migrantes no mercado de tecnologia. “Essas pessoas ficam em situação de muita vulnerabilidade, e um dos desafios é a empregabilidade. Faltava quem os ajudasse a conseguir um emprego qualificado, que pagasse um bom salário”, relata um dos fundadores e CEO da empresa, Caio Rodrigues.
A Toti qualifica estrangeiros para que possam trabalhar como desenvolvedores na área de tecnologia. Depois, conecta os alunos a empresas em busca de profissionais, o que “encurta o espaço entre o que as pessoas sabem e o mercado de trabalho”, explica Caio. Quando conseguem uma vaga, os estrangeiros têm um incremento médio de 200% na renda.
Mudança de vida
A angolana Marta da Conceição Tonet e o marido, Severino Armando, estão entre os imigrantes que saíram da informalidade, aumentaram a segurança e viram a renda aumentar após a capacitação na Toti.
Eles chegaram ao Brasil em 2019, beneficiados por um programa de bolsas universitárias. Como o valor era insuficiente para custear as despesas da família, foram em busca de emprego. As entrevistas, contudo, não resultaram em contratações. “Em Angola, eu estudava gestão de empresas e era professora. Chegando aqui, você tem que começar do zero. A experiência que você tem no seu país não conta”, diz.
Então, o marido passou a fazer bicos como pedreiro, e ela fazia tranças africanas. A partir do curso na área de tecnologia, as coisas mudaram. Em 2022, Marta foi contratada como desenvolvedora na fintech Neon, e Severino como desenvolvedor nas Organizações Globo. Isso, segundo ela, transformou a vida da família. “Conseguimos ter comida suficiente em casa, comprar as coisas necessárias para a nossa filha, nos mudamos para um lugar mais organizado, não temos dificuldades para pagar a faculdade. Nós dois temos carteira assinada, o que representa muita coisa”. Para ela, isso demonstra a importância de o mercado abrir portas para imigrantes e oportunizar uma vida, de fato, melhor.
Proteja o trabalho
A campanha Proteja o Trabalho, desenvolvida por diferentes agências e organizações que fazem parte do Sistema das Nações Unidas (ONU) – Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), Organização Internacional para as Migrações (OIM), Organização Internacional do Trabalho (OIT) – e pelo Ministério do Trabalho e Previdência, busca fornecer informações para pessoas migrantes e refugiadas relacionadas aos direitos trabalhistas no Brasil.
(NP/CF)
Fonte: TST – Tribunal Superior do Trabalho