Imagine
a seguinte situação hipotética:

João
estava sentindo fortes dores abdominais e, por isso, procurou um hospital
público.

Ali,
foi atendido pelo médico Rodrigo, profissional do SUS (Sistema Único de Saúde).

No
próprio hospital foi realizado exame de ultrassom, por meio do qual se
constatou que João deveria passar por uma cirurgia de retirada da vesícula
(colecistectomia).

Rodrigo
explicou ao paciente que a rede pública de saúde apenas cobre a cirurgia “aberta”
e que, caso quisesse realizar o procedimento “fechado”, ou seja, por meio de
videolaparoscopia, seria cobrada a quantia de R$ 2.500,00, pelo uso do
equipamento que é de propriedade particular do médico.

João
optou pela cirurgia através de vídeo (fechada).

Logo
após o procedimento, a filha de João pagou a Rodrigo a quantia solicitada (R$
2.500,00).

O Ministério Público
descobriu a situação e denunciou Rodrigo pela prática de corrupção passiva
(art. 317, § 1º do Código Penal), sob o argumento de que ele recebeu vantagem indevida
no exercício de função equiparada a funcionário público.

Art.
317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar
promessa de tal vantagem:

Pena
– reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

§
1º A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa,
o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica
infringindo dever funcional.

(…)

 

Rodrigo
defendeu-se alegando que o valor cobrado consistia apenas no aluguel do
aparelho de videolaparoscopia, que é de sua propriedade.

O
médico foi condenado em 1ª instância, condenação mantida pelo Tribunal de
Justiça.

 

O
STJ concordou com o juiz e o TJ? Para o STJ, houve crime no presente caso?

NÃO.

O
STJ entendeu que, no caso concreto, houve apenas o recebimento de ressarcimento
pelos gastos decorrentes do uso do equipamento de videolaparoscopia, técnica
cirúrgica não coberta pelo SUS.

Logo,
isso não configura vantagem indevida para fins penais.

 

Mas
a lei veda que, no SUS, sejam cobrados valores do paciente ou de seus
familiares a título de complementação

É
verdade.

A
Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (Lei nº 8.080/90) e a Portaria nº 113/97
do Ministério da Saúde vedam a cobrança de valores do paciente ou familiares a
título de complementação, dado o caráter universal e gratuito do sistema
público de saúde.

Esse
entendimento foi reforçado pelo STF no julgamento do RE 581.488/RS, com
repercussão geral, em que se afastou a possibilidade de “diferença de classe”
em internações hospitalares pelo SUS (relator Ministro Dias Toffoli, Plenário,
DJe de 8/4/2016):

É inconstitucional a
possibilidade de um paciente do Sistema Único de Saúde (SUS) pagar para ter
acomodações superiores ou ser atendido por médico de sua preferência, a chamada
“diferença de classes”.

STF. Plenário. RE
581488/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 3/12/2015 (repercussão geral)
(Info 810).

 

Assim, sob o aspecto
administrativo, a conduta do médico configura afronta à legislação citada e
pode até caracterizar as infrações dos arts. 65 e 66 do Código de Ética Médica:

Art.
65. Cobrar honorários de paciente assistido em instituição que se destina à
prestação de serviços públicos, ou receber remuneração de paciente como
complemento de salário ou de honorários.

 

Art.
66. Praticar dupla cobrança por ato médico realizada.

 

Todavia,
para o STJ, não há crime. Isso porque a tipificação do art. 317 do CP exige a
comprovação de recebimento de vantagem indevida pelo médico, o que não se configura
quando há mero ressarcimento ou reembolso de despesas.

O
uso do aparelho de videolaparoscopia acarreta custos de manutenção e reposição
de peças, não sendo razoável obrigar que o médico suporte tais gastos, em
especial quando houver aquiescência da vítima à adoção da técnica cirúrgica por
lhe ser notoriamente mais benéfica em relação à cirurgia tradicional ou “aberta”.

Desse
modo, o reembolso dos gastos pelo uso do equipamento não representa o
recebimento de vantagem pelo acusado, não demonstrada a elementar normativa do
art. 317 do Código Penal.

 

Em
suma:

Para tipificação do
art. 317 do Código Penal – corrupção passiva -, deve ser demonstrada a
solicitação ou recebimento de vantagem indevida pelo agente público, não
configurada quando há mero ressarcimento ou reembolso de despesa.

STJ. 5ª
Turma. HC 541.447-SP, Rel.
Min.
João Otávio de Noronha, julgado em 14/09/2021 (Info 709).

Artigo Original em Dizer o Direito

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