Imagine a seguinte situação
hipotética:

A Fazenda Pública estadual ingressou
com execução fiscal contra a empresa JC Calçados.

Foram penhorados 200 pares de
sapatos, avaliados em R$ 10 mil.

O juiz da execução determinou que
João (sócio da empresa) deveria ficar como depositário judicial desses sapatos.

Alguns meses depois o juiz
expediu mandado de constatação e reavaliação dos bens (sapatos).

O oficial de justiça certificou
ser inviável o cumprimento da determinação judicial porque o estabelecimento
comercial encontrava-se fechado.

Houve, então, determinação
judicial para que João apresentasse os bens penhorados ou o dinheiro
correspondente. Ele informou que os havia vendido.

Interrogado no inquérito
policial, João declarou que vendeu os pares de calçados porque ele necessitava
de dinheiro para pagar seus funcionários.

Diante disso,
o Ministério Público denunciou João pela prática do crime de peculato (art. 312
do CP):

Art. 312. Apropriar-se o funcionário
público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular,
de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou
alheio:

Pena – reclusão, de dois a doze anos,
e multa.

Segundo o MP,
João, na condição de depositário judicial, é um “auxiliar do juízo” (art. 149
do CPC/2015), devendo, portanto, ser considerado como funcionário público para
os fins penais, nos termos do art. 327 do CP:

Art. 327. Considera-se funcionário
público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem
remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

A tese do MP foi acolhida pelo
STJ?

NÃO.

O
depositário judicial que vende os bens sob sua guarda não comete o crime de
peculato.

STJ. 6ª Turma. HC 402.949-SP, Rel.
Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 13/03/2018 (Info 623).

Comete peculato o funcionário público
que se apropria de bem móvel de que tem a posse em razão do cargo.

A definição
legal de cargo público é fornecida pela Lei nº 8.112/90:

Art. 3º Cargo público é o conjunto de
atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem
ser cometidas a um servidor.

Cargo, segundo Nucci, “é o posto
criado por lei na estrutura hierárquica da Administração Pública, com
denominação e padrão de vencimentos próprios, ocupado por servidor com vínculo
estatutário (ex.: cargo de delegado de polícia, de oficial de justiça, de
auditor da receita etc.)”. (Código penal
comentado
. 13ª ed., São Paulo: RTJ, 2013, p. 1.203).

O depositário judicial não ocupa
cargo criado por lei, não recebe vencimento nem tem vínculo estatutário.

Trata-se de uma pessoa que,
embora tenha que exercer uma função no interesse público do processo judicial,
é estranha aos quadros da justiça e, pois, sem ocupar qualquer cargo público,
exerce um encargo por designação do juiz (munus
público
).

Não ocupa, de igual modo, emprego
público nem função pública. É, na verdade, um auxiliar do juízo que fica com o
encargo de cuidar de bem litigioso.

Desse modo, a conduta não se
enquadra na figura típica do art. 312 do CP, porque não há funcionário público,
para fins penais, nos termos do art. 327 do CP, em razão da ausência da
ocupação de cargo público.

Observação

Vale
ressaltar que o STJ decidiu apenas que a conduta do depositário judicial que
vende os bens sob sua guarda não comete o crime de peculato, pois não é
funcionário público e não ocupa cargo público. No entanto, a depender das
peculiaridades do caso concreto, a conduta pode configurar, em tese, os tipos
penais dos arts. 168, § 1º, II, 171 ou 179 do Código Penal:

Apropriação indébita

Art. 168. Apropriar-se de coisa alheia
móvel, de que tem a posse ou a detenção:

Pena – reclusão, de um a quatro anos,
e multa.

Aumento de pena

§ 1º – A pena é aumentada de um terço,
quando o agente recebeu a coisa:

(…)

II – na qualidade de tutor, curador,
síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial;

Estelionato

Art. 171. Obter, para si ou para
outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em
erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e
multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.

Fraude à execução

Art. 179. Fraudar execução, alienando,
desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas:

Pena – detenção, de seis meses a dois
anos, ou multa.

Artigo Original em Dizer o Direito

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.