Imagine a seguinte situação
hipotética:

João, dirigindo embriagado, bateu
na traseira de outro veículo, causando a morte do outro condutor.

O Ministério Público denunciou o sujeito
por homicídio doloso (art. 121 do CP), sob a alegação de que agiu com dolo
eventual de matar.

Procedimento do Tribunal do Júri

Quando a pessoa é denunciada por crime doloso contra a vida, ela
responde a um processo penal que é regido por um procedimento especial próprio
do Tribunal do Júri (arts. 406 a 497 do CPP).

Procedimento bifásico do Tribunal do Júri

O procedimento do Tribunal do Júri é chamado de bifásico (ou
escalonado) porque se divide em duas etapas:

1) Fase do sumário da culpa (iudicium
accusationis
): é a fase de acusação e instrução preliminar (formação da
culpa). Inicia-se com o oferecimento da denúncia (ou queixa) e termina com a
preclusão da sentença de pronúncia.

2) Fase de julgamento (iudicium
causae
).

Sentença que encerra o sumário da culpa

Ao final da 1ª fase do procedimento do júri (sumário da culpa), o
juiz irá proferir uma sentença, que poderá ser de quatro modos:

Pronúncia

Impronúncia

Absolvição sumária

Desclassificação

O réu será pronunciado quando o juiz
se convencer de que existem prova da materialidade do fato e indícios
suficientes de autoria ou de participação.

O juiz, ao pronunciar, deverá utilizar
linguagem sóbria e comedida, a fim de não exercer nenhuma influência nos
jurados. Deve evitar adjetivos ou outras palavras de censura contra o réu,
sob pena de ser nula por excesso de linguagem (“eloquência acusatória”).

O réu será impronunciado quando o juiz
não se convencer:

• da materialidade do fato;

• da existência de indícios
suficientes de autoria ou de participação.

Ex.: a única testemunha que havia
reconhecido o réu no IP não foi ouvida em juízo.

O réu será absolvido, desde logo,
quando estiver provado (a):

• a inexistência do fato;

• que o réu não é autor ou partícipe
do fato;

• que o fato não constitui crime;

• que existe uma causa de isenção de
pena ou de exclusão do crime.

Ex.: todas as testemunhas ouvidas
afirmaram que o réu não foi o autor dos disparos.

Ocorre quando o juiz se convencer de
que o fato narrado não é um crime doloso contra a vida, mas sim um outro
delito, devendo, então, remeter o processo para o juízo competente.

Ex.: juiz entende que não houve
homicídio doloso, mas sim latrocínio.

Recurso cabível: RESE.

Recurso cabível: APELAÇÃO.

Recurso cabível: APELAÇÃO.

Recurso cabível: RESE.

Voltando ao nosso exemplo:

O juiz, ao fim da 1ª fase do procedimento
do júri, pronunciou o acusado por homicídio doloso, designando dia para
julgamento do réu pelo Plenário popular.

Diante disso, o réu interpôs
recurso em sentido estrito argumentando que a embriaguez ao volante não é
suficiente para configurar o dolo eventual. Requereu a desclassificação do fato
típico imputado para o crime de homicídio tipo culposo, previsto no art. 302 do
Código de Trânsito Brasileiro.

A primeira pergunta que surge é a seguinte: a embriaguez ao
volante, por si só, já justifica considerar a existência de dolo eventual?

NÃO.

A
embriaguez do agente condutor do automóvel, por si só, não pode servir de
premissa bastante para a afirmação do dolo eventual em acidente de trânsito com
resultado morte.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.689.173-SC, Rel.
Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 21/11/2017 (Info 623).

O que isso quer dizer? Nem todo
mundo que, dirigindo embriagado, causar a morte de outra pessoa, terá que
responder por homicídio doloso (dolo eventual). Não há uma correlação
obrigatória, automática, entre embriaguez ao volante e dolo eventual.

A embriaguez ao volante é uma
circunstância negativa que deve ser levada em consideração no momento de se
analisar se o réu agiu ou não com dolo eventual. No entanto, não se pode
estabelecer como premissa que qualquer sempre haverá dolo eventual nesse caso.

Desse modo, não existe uma
presunção de que o condutor que mata alguém no trânsito praticou o crime com
dolo eventual.

Embriaguez ao volante + outros
elementos = dolo eventual

Para que fique configurado o dolo
eventual, além da embriaguez ao volante é necessário que haja outros elementos
nos autos de que o condutor estivesse dirigindo de forma a assumir o risco
de provocar acidente sem se importar com eventual resultado fatal de seu
comportamento.

Ex1: condutor, além de
embriagado, dirigia o automóvel em velocidade muito acima do permitido.

Ex2: condutor, além de
embriagado, dirigia o automóvel, propositalmente, em zigue-zague na pista ou
fazendo sucessivas ultrapassagens perigosas.

Ex3: condutor do automóvel, além
de embriagado, dirigia desrespeitando sinal vermelho.

Ex4: condutor do automóvel, além
de embriagado, “jogou” o veículo contra pedestres para assustá-los ou passou
por outros automóveis “tirando fino” e freando logo em seguida.

Ex5: recentemente, o STF decidiu
que configura dolo eventual o caso do condutor embriagado que entrou na
contramão e atingiu uma motocicleta, causando a morte da vítima:

Verifica-se
a existência de dolo eventual no ato de dirigir veículo automotor sob a
influência de álcool, além de fazê-lo na contramão. Esse é, portanto, um caso
específico que evidencia a diferença entre a culpa consciente e o dolo
eventual. O condutor assumiu o risco ou, no mínimo, não se preocupou com o
risco de, eventualmente, causar lesões ou mesmo a morte de outrem.

STF.
1ª Turma. HC 124687/MS, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto
Barroso, julgado em 29/5/2018 (Info 904).

Enfim, além da embriaguez, deve
haver um plus, isto é, uma
circunstância a mais que caracterize o dolo eventual.

Segunda pergunta: o juiz, no fim
da 1ª fase do procedimento, pode desclassificar a conduta do réu que dirigia o
carro embriagado para homicídio culposo ou isso seria uma forma de usurpar do
Júri a competência para decidir o tema (art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF/88)?
Chegando um caso de homicídio causado por condutor embriagado, o juiz deverá
obrigatoriamente pronunciar o réu para que o Tribunal do Júri decida se houve
dolo eventual ou culpa consciente?

O juiz pode
desclassificar sim. Ele não é obrigado a remeter para o Plenário do Júri e isso
não viola o art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF/88. Conforme decidiu o STJ:

Na
primeira fase do Tribunal do Júri, ao juiz togado cabe apreciar a existência de
dolo eventual ou culpa consciente do condutor do veículo que, após a ingestão
de bebida alcoólica, ocasiona acidente de trânsito com resultado morte.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.689.173-SC, Rel.
Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 21/11/2017 (Info 623).

A primeira etapa do procedimento
bifásico do Tribunal do Júri tem o objetivo principal de avaliar a suficiência
ou não de razões (justa causa) para levar o acusado ao seu juízo natural.

O juízo da acusação (iudicium accusationis) funciona, assim,
como um filtro pelo qual somente passam as acusações fundadas, viáveis,
plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (iudicium causae).

Não é uma tarefa fácil
distinguir, na prática, o que seja dolo eventual ou culpa consciente,
especialmente em homicídios causados na direção de automóvel. Isso porque é
sempre muito difícil ter certeza sobre o elemento anímico que move a conduta do
agente.

Se essa dificuldade existe para o
julgador togado, “que emite juízos técnicos apoiados em séculos de estudos das
ciências penais, o que se pode esperar de um julgamento realizado por pessoas
que não possuem esse saber e que julgam a partir de suas íntimas convicções,
sem explicitação dos fundamentos e razões que definem seus julgamentos?”

Se o legislador criou um
procedimento bifásico para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, em
que a primeira fase se encerra com uma avaliação técnica, empreendida por um
juiz togado, o qual se socorre da dogmática penal e da prova dos autos, e
mediante devida fundamentação, não se pode, então, desprezar esse “filtro de
proteção para o acusado” e submetê-lo ao julgamento popular sem que se façam
presentes as condições necessárias e suficientes para tanto.

Artigo Original em Dizer o Direito

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