30/01/2023 – Decisão da 13ª Vara do Trabalho de Fortaleza (CE) reconheceu o vínculo de emprego de um entregador que trabalhava para a empresa Ifood. Na sentença, publicada em dezembro do ano passado, o juiz do trabalho Vladimir Paes de Castro apontou a existência dos requisitos que caracterizam a modalidade de trabalho como contrato intermitente, uma prestação de serviço não contínua, na qual se alternam períodos de atividade e inatividade.
O trabalhador realizou entregas para a empresa no período de junho de 2020 a maio de 2022, quando foi bloqueado pela plataforma, sem justificativa ou possibilidade de recurso. De acordo com as normas constantes nas políticas e regras da empresa, o Ifood estabelece a possibilidade de rescisão unilateral em caso de mau uso ou uso indevido da plataforma, ou caso o entregador obtenha recorrentes avaliações negativas dos estabelecimentos e/ou clientes finais.
O magistrado declarou que a modalidade de rescisão do contrato de trabalho foi sem justa causa, então julgou procedentes os pedidos de pagamento das verbas rescisórias correspondentes: aviso-prévio indenizado, férias mais 1/3 de todo o período, 13º salário, FGTS mais 40% e indenização por danos morais no valor de R$ 5 mil. O valor total da condenação foi arbitrado em R$ 20 mil.
Novas formas de exploração do trabalho
O juiz derrubou a alegação costumeira do Ifood, de que se trata de mera intermediadora da relação jurídica entre o cliente (restaurantes, bares e outras empresas que fornecem alimentos) e o consumidor final, na qual os alimentos seriam entregues pelos prestadores de serviço explorando a atividade conhecida como economia compartilhada.
Um exemplo desse modelo de economia seria a empresa/aplicativo Airbnb, onde o cliente que busca alugar um espaço (casa de veraneio, apartamento, flat, quarto etc.) utiliza o aplicativo para buscar locais cadastrados. A negociação é toda realizada na plataforma e com total autonomia do cliente locatário e do proprietário dos imóveis, podendo o preço e outras condições serem estipuladas e negociadas pelas partes, sem a intervenção da plataforma.
“No caso do Ifood e outras empresas/aplicativos, como a Uber, a situação é bem distinta. Nessa situação, as empresas não seriam apenas consideradas como uma facilitadora do encontro de clientes e prestadores de serviços/microempreendedores, mas a própria responsável pelo fornecimento do serviço de acordo com a demanda imediata dos seus clientes”, explicou o magistrado.
Trata-se de uma nova forma de exploração de mão de obra, em que o suposto prestador de serviço, no caso o entregador, não tem nenhum benefício e não possui liberdade contratual para pactuar com autonomia. Em regra, os trabalhadores são subordinados como outro qualquer, e submetidos aos direcionamentos da empresa digital, cuja atividade econômica é gerida pelo algoritmo do aplicativo.
Precarização do trabalho
Na sentença, o juiz buscou analisar pesquisas e levantamentos científicos feitos no país a respeito de entregadores de delivery de aplicativos, que confirmam esse cenário de exploração do trabalho humano e de forma precarizante.
Segundo pesquisa realizada pela Universidade Federal da Bahia, os trabalhadores que têm na entrega por aplicativos a única ocupação de trabalho possuem jornada semanal em média de 64,5 horas ou 10 horas e 24 minutos por dia. Em média, atuam 6,16 dias por semana, sendo que 40% deles trabalham todos os dias. Para 70% deles, esse é seu único trabalho. Os demais têm mais de um serviço, sendo a entrega a ocupação principal ou subsidiária.
Outro dado relevante encontrado por esse levantamento é que 51,7% recebem, por hora, menos do que o equivalente a um salário mínimo. A situação é ainda pior quando avaliados os ciclistas isoladamente, que ao final de um mês de trabalho, com jornada média de mais de 57 horas semanais, conseguem apenas R$ 932 brutos e R$ 701 líquidos.
“Esses dados demonstram a absoluta precarização dessa relação de trabalho, onde a grande maioria dos trabalhadores e trabalhadoras vivem integralmente dessa atividade, dedicam muitas horas diárias ao trabalho em favor das plataformas digitais/aplicativos, e por outro lado, não têm direitos trabalhistas basilares respeitados (salário mínimo, jornada de trabalho constitucional, férias, 13º salário etc.), e muitos nem sequer a mínima proteção social previdenciária”, demonstrou o magistrado.
Racismo estrutural
De acordo com outra pesquisa da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), 71% dos entregadores eram pretos e pardos (negros), 75% trabalhavam até 12 horas diárias e a média de ganhos mensais era de R$ 936, configurando menos do que um salário mínimo. Diante dessa constatação, o juiz optou por mencionar o professor e atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Silvio de Almeida. Em sua obra “Racismo Estrutural”, o intelectual aborda diversos aspectos que revelam o racismo entranhado na estrutura da sociedade.
“O racismo estrutural é amplamente perpetuado através das políticas públicas típicas do sistema neoliberal em que nos encontramos, a exemplo de arrocho fiscal, redução de investimentos sociais em todas as áreas, desconstrução de direitos sociais, principalmente trabalhistas e previdenciários, como tem ocorrido nos últimos anos. Esse cenário de total desregulação e mitigação de direitos sociais acarreta também a profunda informalidade e precarização no mercado de trabalho”, relacionou o juiz do trabalho com os trabalhadores de plataformas digitais/aplicativos de entrega.
Intermediação digital e subordinação jurídica
O magistrado analisou os “Termos e condições de uso – Ifood para entregadores”, que possui uma série de cláusulas que são importantes para a análise do enquadramento jurídico da relação entre a plataforma digital e os trabalhadores. Segundo o juiz, as normas demonstram o controle e gestão de toda a atividade comercial, inclusive na ocasião do recebimento de valores dos consumidores finais e pagamentos a serem realizados em favor dos entregadores, comprovando a subordinação dos trabalhadores aos direcionamentos e comandos da empresa.
Conforme Vladimir de Castro, o Ifood não se trata apenas de uma empresa de tecnologia, pois fornece efetivamente a logística para que o estabelecimento parceiro consiga entregar os alimentos e outros produtos ao consumidor final. Os valores das entregas são definidos automaticamente pelo algoritmo do aplicativo da reclamada, ou seja, o trabalhador não possui nenhuma autonomia na precificação do serviço por ele prestado.
“Todas essas normas e cláusulas contratuais demonstram um cenário de absoluta subordinação dos entregadores, sendo que a reclamada possui todo o poder empresarial e direciona as atividades do empreendimento econômico com a finalidade de prestação de serviços de transporte de alimentos (delivery)”, concluiu o magistrado.
Da sentença, cabe recurso.
Fonte: TRT da 7ª Região (CE)