O livro “Solitária” foi o foco do primeiro encontro do projeto “Escrevendo Direitos”, promovido pela Ouvidoria do Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir direitos fundamentais por meio de obras literárias brasileiras. O evento, realizado nesta terça-feira (18) por videoconferência, teve a presença da autora Eliana Alves Cruz. A juíza-ouvidora do Tribunal, Flávia Martins de Carvalho, mediou as perguntas do público para a escritora.
O livro, livremente inspirado no caso do garoto Miguel da Silva ― que morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo no Recife, em 2020 ―, narra o drama de duas mulheres negras, mãe e filha, que moram no trabalho em um condomínio de luxo. Para a autora, além de abordar as questões de gênero e raça ligadas ao trabalho doméstico, o livro trata da herança escravocrata na cultura brasileira no século 21.
Dispositivo da Ingratidão
Eliana explicou que o livro “Solitária” surgiu após uma pesquisa sobre as leis portuguesas sobre a escravidão. Durante a investigação, ela descobriu uma norma conhecida como Dispositivo da Ingratidão, que permitia a um senhor de escravo revogar a liberdade do cativo alforriado caso considerasse que ele agiu de forma ingrata. Para a autora, esse dispositivo ainda está presente nas relações de trabalho no Brasil.
“A gente só vai sofisticando os métodos de crueldade. Se pensarmos, por exemplo, nos entregadores de comida por aplicativo, se o funcionário não come, não tem segurança, não tem saúde, e ainda se sente grato pelo trabalho, como é que a gente deve chamar esse tipo de trabalho?”, indagou a autora. “As pessoas vivem num dilema. Sabem que estão numa situação muito complicada, mas se sentem na obrigação de se sentirem gratas.”
Afeto e solidão
A escritora destacou o papel do afeto e da cordialidade na cultura brasileira como laços aprisionadores das pessoas negras que exercem o trabalho doméstico, e que as leis brasileiras não são capazes de dissipar. “Ter os direitos respeitados para além dos afetos é um passo para tapar o buraco da carência e da solidão por que passam essas pessoas, que é o buraco de não pertencimento e de ser um cidadão de segunda categoria.”
No livro, a autora propõe, ainda, uma reflexão sobre a gravidez não desejada e o aborto na vida de duas personagens diferentes: uma adolescente da classe média, e a outra, uma empregada doméstica. Cada uma delas lida com a questão do aborto de uma forma diferente.
Eliana explicou que o título do livro surgiu da polissemia da palavra “solitária”: o termo enquanto adjetivo para qualificar uma mulher que se sente só, enquanto sinônimo de prisão e, também, como uma verminose, “algo que te parasita, que come o que você consome”, ela explicou. “Essa é a relação, ao meu ver, que o Brasil tem com o trabalho doméstico”, afirmou.
Eliana ponderou também que o trabalho doméstico nos moldes brasileiros é muito particular, atravessado por peculiaridades, e por isso exige que a literatura e a produção acadêmica nacionais se debrucem sobre o tema a partir de vozes novas e plurais. Ela destacou a necessidade de garantir mais espaço à população negra, indígena e das classes baixas nos espaços intelectuais e de poder para que suas histórias sejam contadas.
Perfil
Eliana tem 59 anos, é negra e começou a carreira como jornalista. Abandonou o trabalho em assessorias de imprensa para se dedicar ao ofício da escrita literária. O primeiro livro, “Água de Barrela”, foi publicado em 2015. “Levou um tempo para eu me entender como escritora”, lembrou. Eliana também já apresentou o programa “Trilha das Letras”, do canal EBC.
(Gustavo Aguiar//AL)