20/11/22 – Não há o que discutir: o racismo está impregnado no DNA nacional. A população negra é a que mais morre no Brasil hoje, como mostra o relatório “A Cor da Violência – 2021” da Rede de Observatórios de Segurança do Brasil. O estudo revela que, somente na Bahia, 98% das pessoas mortas pela polícia são negras. Negros também são os que mais morrem em ações policiais, independentemente do tamanho da população preta e parda do lugar.

O racismo está em todos os âmbitos do Estado, na composição dos quadros de trabalho de órgãos públicos, no alvo das ações policiais, nas decisões do Poder Judiciário, no encarceramento massivo da população negra e no negligenciamento das ações de reparação pelo poder público. Isso revela a existência de um racismo institucional, que normaliza a discriminação dentro das estruturas do poder.

Juízes e promotores têm sido peças-chave na continuidade da discriminação por causa da cor da pele, já que a maioria das pessoas que compõem a carreira ainda é branca, com pouca ou nenhuma familiaridade com a realidade de escassez e discriminação das pessoas pretas. Basta analisar os dados da Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário, realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).  

O caso Simone

Simone André Diniz, mulher preta de 44 anos, filha de pai mecânico e mãe faxineira, sentiu na pele os efeitos da discriminação institucionalizada quanto tinha apenas 19 anos. Em março de 1997, ela era estudante de um curso de auxiliar de enfermagem, pago por seu pai, e decidiu concorrer a uma vaga de empregada doméstica. 

Embora o anúncio se destinasse a jovens “de preferência brancas, com 21 anos”, a observação não era um excludente, e Simone decidiu candidatar-se. Ao conversar com a responsável pelo anúncio, foi informada que sua cor “não preenchia os requisitos”.

Ela, então, ligou para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB – Seção São Paulo) para denunciar a discriminação. Após confirmar a restrição de raça imposta pelo anúncio, a OAB e a vítima prestaram notícia-crime à Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo (SP). Esse foi apenas o começo de uma longa jornada de luta contra o racismo. 

Omissão e racismo institucional

A notícia-crime deu início a um inquérito policial. O relatório do inquérito foi enviado ao Judiciário com ciência ao Ministério Público, que se manifestou pelo arquivamento do caso. A fundamentação do MP foi “falta de indícios de que o ato constituísse crime de racismo”. Em apenas um mês, em abril de 1997, o caso foi arquivado.

Inconformados, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), a Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e o Instituto do Negro Padre Batista apresentaram uma petição contra o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A petição denunciava violações a diversos artigos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. A alegação era a de que o Estado brasileiro não havia garantido o pleno exercício do direito à justiça e ao devido processo legal, falhara na condução dos recursos internos para apurar a discriminação racial e, por isso, descumprira a obrigação de garantir o exercício dos direitos previstos na Convenção Americana.

Em 2006, a CIDH concluiu, no Relatório 66/06, pela responsabilização do Estado brasileiro e efetuou 12 recomendações ao Brasil. Entre elas, a de reconhecer publicamente a responsabilidade pela violação dos direitos humanos de Simone André Diniz e conceder apoio financeiro à vítima, para que pudesse iniciar e concluir curso superior, além do pagamento de indenização  por danos morais.

Duas vezes

A desembargadora Jane Granzoto, conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), disse, no “Seminário Nacional Simone André Diniz: justiça, segurança pública e antirracismo”, que Simone sofreu discriminação racial duas vezes. A primeira, ao responder o anúncio do emprego, e a segunda quando buscou justiça e teve seu processo penal arquivado, a despeito das provas. “Esse é um exemplo contundente do racismo institucional que, infelizmente, persiste na sociedade brasileira”, afirmou.

O seminário, que ocorreu na sede do Tribunal Superior do Trabalho (TST) nos dias 17 e 18/11, também faz parte das ações de conscientização e educação para a igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário e serviu de plataforma para o debate sobre racismo estrutural e institucional. 

25 anos de luta

Hoje, Simone é empresária e gerencia, junto com o marido, uma oficina mecânica, mas se identifica como “do lar”. Como milhares de mulheres brasileiras, ela cuida não apenas do seu lar e do negócio da família, mas da educação das duas filhas, Pietra, de 17 anos, e Pérola, de 15. 

No momento, Simone aguarda a liberação de uma bolsa de estudos para cursar nível superior. A bolsa vai ser recebida como forma de reparação e faz parte do rol de condenações da CIDH ao estado brasileiro. Ela pretende estudar gastronomia.

Em seu depoimento no seminário que levou seu nome, Simone reconhece que o combate ao racismo é uma causa coletiva. “A minha luta não é só minha, é uma luta de todas as mulheres e de todos homens negros”, destaca. E o seu recado para a sociedade foi claro. “A gente tem que sentir a dor da outra pessoa”, ressaltou. “Não faça vista grossa, ajude quem está passando por isso, não deixe ter mais uma Simone Diniz”.

Igualdade racial no Poder Judiciário

A CIDH, no relatório do caso Simone Diniz, afirmou que uma análise do racismo através do Poder Judiciário poderia levar à falsa impressão de que, no Brasil, não ocorrem práticas discriminatórias. O caso foi responsável pela primeira condenação internacional do Brasil por racismo. A partir dela, a Justiça brasileira viu-se responsável pela promoção da mudança no tratamento dessas questões. Hoje, diversas iniciativas estão em curso para o combate ao racismo institucional e a promoção da igualdade. 

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem um grupo de trabalho para elaborar estudos e indicar soluções para a formulação de políticas judiciárias sobre a igualdade racial. Um dos resultados do projeto é a Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário, realizada em 2021.  

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) está trabalhando em um Mapa Étnico-Racial do quadro funcional do MP. A intenção é promover um diagnóstico sobre a implementação das ações afirmativas e traçar ações para o combate de possíveis desigualdades. De acordo com Otávio Luiz Rodrigues Júnior, conselheiro do CNMP, será possível criar na estrutura do Estado e, a partir dela, na sociedade “um sentimento uníssono de combate ao racismo”. Trata-se, segundo ele, de um “fenômeno transversal às desigualdades de gênero e às desigualdades econômicas”, e somente com a atuação conjunta do Estado e da sociedade será possível superar parte dos problemas.

(Franciane Ferreira/CF)

Com informações do Tribunal Superior do Trabalho

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