A Lei Maria da Penha pode ser aplicada em favor de mulheres trans ?


 

Imagine
a seguinte situação hipotética:

O
pai chegou bêbado em casa e passou a agredir sua filha, que é uma mulher trans.

Uma mulher trans é
uma pessoa que nasceu com o sexo físico masculino, mas que se identifica como
uma pessoa do gênero feminino. Vamos entender um pouco mais sobre o assunto:

“O termo trans é utilizado para se referir a
uma pessoa que não se identifica com o gênero ao qual foi designado em seu
nascimento. Quando nascemos, nossos gêneros são determinados pelo nosso sexo.
Assim, uma pessoa que nasce com um pênis é considerada como um homem e uma
pessoa que nasce com uma vagina, como uma mulher. Contudo, algumas pessoas
percebem que se identificam com outro gênero e passam a viver como assim
desejam e se sentem melhor consigo mesmas.

Dessa
forma, podemos utilizar ‘mulher trans’ ou ‘pessoa transfeminina’ para se
referir a alguém que foi designado homem, mas se entende como uma figura
feminina. Já o termo “homem trans’ ou “pessoa transmasculina’ é indicado para
tratar uma pessoa que foi designada mulher, mas se identifica com uma imagem
pessoal masculina.” (https://transcendemos.com.br/transcendemosexplica/trans/)

 

A
vítima conseguiu fugir e procurou a Delegacia da Mulher.

A
autoridade policial encaminhou ao juízo pedido de medidas protetivas em favor
da vítima, nos termos do art. 12, III, da Lei nº 11.340/2006.

O
juiz, contudo, negou o pedido afirmando que a Lei nº 11.340/2006, conhecida
como Lei Maria da Penha, somente se aplicaria para vítimas que sejam do sexo
feminino em seu sentido biológico.

O
TJ/SP manteve a decisão do magistrado.

O
Ministério Público, então, recorreu ao STJ em favor da vítima.

 

Para
o STJ, a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) se aplica para mulheres trans?

SIM.

 

Sexo,
gênero e identidade de gênero

É
importante diferenciar esses três conceitos, a partir do “Protocolo para
Julgamento com Perspectiva de Gênero”, aprovado na Recomendação nº 128, de 15
de fevereiro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça.

Veja
abaixo o que o Protocolo fala sobre o tema.

 

Sexo

O
conceito de sexo está relacionado aos aspectos biológicos que servem como base
para a classificação de indivíduos entre machos, fêmeas e intersexuais. Em
nossa sociedade, seres humanos são divididos nessas categorias – em geral, ao
nascer – a partir de determinadas características anatômicas, como órgãos
sexuais e reprodutivos, hormônios e cromossomos.

Ocorre
que, atualmente, o conceito de sexo é considerado obsoleto enquanto ferramenta
analítica para refletirmos sobre desigualdades. Isso porque deixa de fora uma
série de outras características que não são puramente biológicas, mas sim
socialmente construídas e atribuídas a indivíduos e que têm maior relevância
para entendermos como opressões acontecem no mundo real.

 

Gênero

Utilizamos
a palavra gênero quando queremos tratar do conjunto de características
socialmente atribuídas aos diferentes sexos.

Enquanto
o sexo se refere à biologia, o gênero se refere à cultura.

Quando
pensamos em um homem ou em uma mulher, não pensamos apenas em suas
características biológicas; pensamos também em uma série de construções
sociais, referentes aos papéis socialmente atribuídos aos grupos: gostos,
destinos e expectativas quanto a comportamentos.

Da
mesma forma, como é comum presentear meninas com bonecas, é comum presentear
meninos com carrinhos ou bolas. Nenhum dos dois grupos têm uma inclinação
necessária a gostar de bonecas ou carrinhos, mas, culturalmente, criou-se essa
ideia – que é tão enraizada que, muitas vezes, pode parecer natural e imutável.
A atribuição de características diferentes a grupos diferentes não é,
entretanto, homogênea. Pessoas de um mesmo grupo são também diferentes entre
si, na medida em que são afetadas por diversos marcadores sociais, como raça,
idade e classe, por exemplo. Dessa forma, é importante ter em mente que são
atribuídos papéis e características diferentes a diferentes mulheres.

 

Identidade
de gênero

Muitas
vezes, uma pessoa pode se identificar com um conjunto de características não
alinhado ao seu sexo designado. Ou seja, é possível nascer do sexo masculino,
mas se identificar com características tradicionalmente associadas ao que
culturalmente se atribuiu ao sexo feminino e vice-versa, ou então, não se
identificar com gênero algum.

Pessoas
que não se conformam com o gênero a elas atribuído ao nascer foram e ainda são
extremamente discriminadas no Brasil e no mundo, na medida em que a
conformidade entre sexo e gênero continua a ser a expectativa dominante da
sociedade.

Assim,
a identidade de gênero consiste na identificação com características
socialmente atribuídas a determinado gênero – mesmo que de forma não alinhada
com o sexo biológico de um indivíduo (pessoas cujo sexo e gênero se alinham,
são chamadas cisgênero; pessoas cujo sexo e gênero divergem, são chamadas
transgênero; existem também pessoas que não se identificam com nenhum gênero.

 

Aplicação
da Lei Maria da Penha às mulheres trans porque o critério é o gênero (que não
se confunde com o sexo)

O
alcance do art. 5º da Lei nº 11.340/2006 passa necessariamente pelo
entendimento do conceito de gênero, que não se confunde com o conceito de sexo
biológico.

O
elemento diferenciador da abrangência da Lei nº 11.340/2006 é o gênero
feminino. Acontece que o sexo biológico e a identidade subjetiva nem sempre
coincidem. Nesta ótica, a Lei deve ser dilatada para abranger esses casos, como
a situação dos transgêneros, os quais tenham identidade com o gênero feminino.

 

Em
suma:

A Lei nº 11.340/2006
(Maria da Penha) é aplicável às mulheres trans em situação de violência
doméstica.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.977.124/SP,
Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 5/4/2022 (Info 732).

Artigo Original em Dizer o Direito

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