A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
GVT era uma empresa que prestava
serviços de telecomunicações (telefonia fixa, TV por assinatura e internet
banda larga).
Quando a empresa presta serviços de telecomunicações, ela
tem que pagar ICMS, tendo em vista que a CF/88 prevê essa espécie de serviço
como sendo um dos fatos geradores do imposto:
Art. 155. Compete aos Estados e ao
Distrito Federal instituir impostos sobre:
(…)
II – operações relativas à circulação
de mercadorias e sobre prestações de serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação,
ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
No mesmo sentido é a LC 87/96 (Lei Kandir):
Art. 2º O imposto incide sobre:
(…)
III – prestações onerosas de serviços
de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção,
a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de
qualquer natureza;
A GVT ajuizou ação explicando o
seguinte:
– muitas vezes seus
clientes/usuários não pagam as faturas de cobrança do serviço prestado
(tornam-se inadimplentes) e frequentemente os contratos de prestação de
serviços desses usuários são rescindidos;
– se isso acontece, ou seja, se há
inadimplência do usuário, não ocorre o fato gerador do ICMS-comunicação por
ausência do elemento onerosidade;
– a cobrança do ICMS, nestes
casos, teria natureza confiscatória e atentaria contra o princípio da
capacidade contributiva, pois se cobra o tributo sem que haja a manifestação de
riqueza;
– também violaria o princípio da
não cumulatividade tributária, pois, sendo o ICMS um tributo não-cumulativo, é
direito do contribuinte de direito (autora) repassá-lo ao contribuinte de fato
(usuário);
– em suma, a GVT defendeu que, em
caso de inadimplência do usuário, não será devido o pagamento do ICMS sobre os serviços
de telecomunicações.
O STF concordou com a tese
da empresa?
NÃO. O STF decidiu que:
A
inadimplência do usuário não afasta a incidência ou a exigibilidade do ICMS
sobre serviços de telecomunicações.
STF.
Plenário. RE 1003758/RO, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min.
Alexandre de Moraes, julgado em 14/5/2021 (Repercussão Geral – Tema 705) (Info
1017).
As vendas inadimplidas não podem
ser excluídas da base de cálculo do tributo. Isso porque a inadimplência do
consumidor final é um evento posterior e alheio e, portanto, não obsta a
ocorrência do fato gerador do ICMS-comunicação, que já aconteceu.
Conforme previsto no inciso III
do art. 2º da LC 87/96, o ICMS-comunicação incide sobre a prestação onerosa de
serviços de comunicação. Assim, uma vez prestado o serviço de comunicação ao
consumidor, de forma onerosa, já incidirá necessariamente o imposto,
independentemente de a empresa ter efetivamente auferido receita com a
realização do serviço.
Incabível o argumento da
recorrente de que o inadimplemento retira o caráter oneroso da prestação, uma
vez que a onerosidade é previamente estabelecida no contrato de prestação de
serviços, de modo que é a prestação do serviço em si que a materializa, e não o
posterior faturamento.
Desse modo, eventual
inadimplemento do usuário gera crédito à empresa, o qual pode ser pleiteado
tanto pela via administrativa quanto pela via judicial, mantendo-se incólume a
onerosidade dos serviços já prestados.
Existem duas relações jurídicas
distintas e independentes entre si, regidas por normas específicas:
·
uma entre a empresa (contribuinte de direito) e o respectivo consumidor/usuário
(contribuinte de fato) de natureza civil;
·
e outra, de caráter estritamente tributário, entre a empresa (sujeito passivo)
e o Fisco (sujeito ativo).
O inadimplemento da fatura é
elemento estranho à ocorrência do fato gerador e nada interfere na obrigação
tributária da recorrente em recolher o imposto em questão e repassá-lo ao
Estado, obrigação esta que decorre da lei e não pode ser confundida com a
obrigação contratual. Desse modo, o não pagamento das contas de energia pelos
consumidores finais do serviço deverá ser resolvido em outra via, não sendo
cabível ao Estado o ônus do inadimplemento.
Assim, não possui qualquer
respaldo constitucional, sendo, portanto, absolutamente inadmissível, repassar
ao Erário os riscos próprios da atividade econômica em face de eventual
inadimplemento dos consumidores/usuários, a pretexto de fazer valer os
princípios da não-cumulatividade, da capacidade contributiva e da vedação ao
confisco.
A inadimplência do usuário não constitui excludente legal do
tributo, de modo que admitir que as vendas inadimplidas pudessem ser excluídas
da base de cálculo do ICMS implicaria violação direta ao princípio da
legalidade tributária, bem como ao disposto no art. 150, § 6º, e art. 155, §
2º, XII, g, da Constituição Federal:
Art. 150. Sem prejuízo de outras
garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
§ 6º Qualquer subsídio ou isenção,
redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou
remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido
mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule
exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou
contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.
Art. 155. Compete aos Estados e ao
Distrito Federal instituir impostos sobre:
(…)
§ 2º O imposto previsto no inciso II
atenderá ao seguinte:
(…)
XII – cabe à lei complementar:
(…)
g) regular a forma como, mediante
deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e
benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Se o pedido da autora fosse
acolhido, o STF estaria atuando como legislador positivo, modificando as normas
tributárias inerentes ao ICMS para instituir benefício fiscal em favor dos
contribuintes, o que ensejaria violação também ao princípio da separação dos
Poderes.