Comentários à Lei 12.650/2012, que acrescentou o inciso V ao art. 111 do Código Penal



https://www.youtube.com/watch?v=CxblIT0nuGs

Márcio André Lopes Cavalcante*

Foi publicada no último dia
18/05, a Lei n.°
12.650/2012, que versa sobre prescrição penal.

Vamos conhecer um pouco mais
sobre o que dispõe esta nova lei.

Sobre o que trata a Lei n.° 12.650/2012

Esta Lei altera o Código Penal,
dispondo sobre a prescrição nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e
adolescentes.

Conceito de prescrição

Pode-se conceituar prescrição
como

         
a perda do direito do Estado de

         
punir (pretensão punitiva) ou

         
executar uma punição já imposta (pretensão
executória)

         
em razão de não ter agido (inércia) nos prazos
previstos em lei.

Natureza jurídica

A prescrição é causa de extinção
da punibilidade (art. 107, IV do CP).

Embora a prescrição produza
efeitos no processo penal, ela possui natureza de direito penal (direito
material) tendo em vista que influencia diretamente no direito ou não do Estado
de punir. Logo, são aplicados à prescrição os “princípios” do direito penal,
dentre eles o da irretroatividade da lei ulterior mais gravosa.

Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva

Quando começa a correr o prazo da prescrição? Em outras palavras, a
partir de quando começa o prazo para que o Estado-acusação tente punir uma
pessoa que, supostamente, cometeu um crime?

Os termos iniciais da prescrição
estão previstos nos incisos do art. 111 do Código Penal:

Art. 111 – A prescrição, antes de
transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
I – do dia em que o crime se
consumou;
II – no caso de tentativa, do dia
em que cessou a atividade criminosa;
III – nos crimes permanentes, do
dia em que cessou a permanência;
IV – nos de bigamia e nos de
falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o
fato se tornou conhecido.

Este artigo, em sua redação
original, trazia:

  • Uma regra geral para os crimes
    consumados (ou seja, regra válida para quase todos os crimes consumados); e
  • Uma regra geral para os crimes
    tentados (ou seja, regra válida para quase todos os crimes tentados);
  • Três exceções (ou seja, três regras
    específicas para alguns tipos de crimes).

As regras e as exceções são as
seguintes:

Regra geral no caso de

crimes consumados

O prazo
prescricional começa a correr do dia

em que o crime se CONSUMOU.

Regra geral no caso de

crimes tentados

O prazo
prescricional começa a correr do dia

em que CESSOU A ATIVIDADE
CRIMINOSA
.

1ª regra específica:

crimes permanentes

O prazo
prescricional começa a correr do dia

em que CESSOU A PERMANÊNCIA.

2ª regra específica:

crime de bigamia

O prazo
prescricional começa a correr do dia

em que O FATO SE TORNOU
CONHECIDO
.

3ª regra específica:

crime de falsificação
ou alteração de assentamento do registro civil

O prazo
prescricional começa a correr do dia

em que O FATO SE TORNOU
CONHECIDO
.

Obs: existem outras regras de
termo inicial estabelecidas por leis especiais, como a Lei de Falência (p. ex.),
ou por conta de entendimentos jurisprudenciais, como no caso dos crimes
habituais. Vamos nos concentrar, no entanto, apenas nas regras previstas no
Código Penal.

O que fez a Lei n.° 12.650/2012?

A Lei n.° 12.650/2012 acrescentou o inciso
V no art. 111 do Código Penal prevendo uma nova regra específica para o termo
inicial da prescrição:

Art. 111 – A prescrição, antes de
transitar em julgado a sentença final, começa a correr:

V – nos crimes contra a dignidade
sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação
especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse
tempo já houver sido proposta a ação penal.

4ª regra específica:

crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes

O prazo
prescricional começa a correr do dia

em que a VÍTIMA COMPLETAR 18 (dezoito) anos,

salvo se a esse tempo já houver sido proposta ação
penal.

Exemplo prático de aplicação desta nova regra:

“X”, homem de 30 anos, é vizinho
da Sra. Maria, que tem uma filha (“A”) de 12 anos de idade.

“X”, no dia 20 de junho de 2012,
aproveitando-se que Maria não estava em casa e que tinha livre acesso à casa da
vizinha, pratica ato libidinoso com a pequena “A”. Antes de sair da casa, “X”
ainda subtrai um cordão de ouro pertencente à “A” mediante grave ameaça.

Que crimes praticou “X”?

·        
Estupro de vulnerável (art. 217-A do CP): pena
de 8 a 15 anos.

·        
Roubo (art. 157 do CP): pena de 4 a 10 anos.

“A” fica com medo de contar o que
aconteceu para sua mãe. Por isso, omite o estupro e afirma que perdeu o cordão
de ouro.

Em
2034, ou seja, 22 anos após este fato, “A” reencontra “X” e os fatos que viveu
e que procurou esquecer voltam à tona em sua memória. Ela se revolta e fica
incomodada diante da impunidade de “X” e da possibilidade de ele estar praticando
com outras menores o mesmo que fez com ela. Diante disso, ela decide procurar a
polícia e relatar o que aconteceu no dia 20 de junho de 2012.

Do ponto de vista apenas da
prescrição, o Delegado de Polícia poderá instaurar inquérito para apurar tais
fatos e o Ministério Público poderá oferecer denúncia pelos crimes praticados
por “X” contra “A”?

  • No que tange ao crime
    de roubo: NÃO (está prescrito).
  • No que pertine ao crime
    de estupro: SIM.

Quando começou a correr o prazo prescricional para estes crimes?

  • No caso do roubo:
    o prazo prescricional começou a correr do dia em que o crime se consumou
    (20/06/2012), nos termos do art. 111, I, do CP.
  • No caso do estupro:
    O prazo prescricional começou a correr não no dia em o crime se consumou, mas
    sim na data em que a
    vítima (“A”) completou 18 (dezoito) anos
    , conforme previsto no novel
    inciso V do art. 111 do CP.

Logo, no caso do roubo (art. 157,
caput), o crime já prescreveu (prescreve em 16 anos), mas o estupro de
vulnerável ainda não por conta do inciso V do art. 111, inserido no CP pela Lei
n.° 12.650/2012.

Na hipótese narrada, o crime de
estupro de vulnerável (que prescreve em 20 anos, nos termos do art. 109, I, do
CP), somente irá prescrever 20 anos após a vítima “A” ter completado 18 anos.

Entendendo a parte final do inciso V

O inciso V do art. 111 possui a
seguinte redação:

Art.
111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a
correr:

(…)

V –
nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos
neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18
(dezoito) anos, salvo se a
esse tempo já houver sido proposta a ação penal
.

O que significa esta parte final (destacada) do inciso V?

Se for cometido um crime contra a
dignidade sexual de crianças e adolescentes, o prazo prescricional só começa a
correr quando a vítima completar 18 anos.

No
entanto, o fato de o prazo prescricional estar suspenso não impede que seja,
desde logo, instaurado o inquérito policial para apurar este estupro e que o
Ministério Público ofereça denúncia.

Assim, em nosso exemplo, se “A”,
mesmo antes de completar 18 anos, tivesse contado para sua mãe o que aconteceu,
ou se o crime tivesse sido descoberto por qualquer outro meio, seria possível
que as investigações fossem iniciadas imediatamente e que o MP propusesse a
ação penal em seguida.

Vamos então supor que “A”, no mesmo
dia, contou o que aconteceu para sua mãe. Esta procurou o Delegado, que
presidiu um IP e remeteu para o MP. O Promotor ofereceu denúncia (propôs a ação
penal) contra “X” no dia 12 de agosto de 2012.

Significa dizer que, nesse caso,
em 12/08/2012, começou a correr o prazo prescricional. Trata-se da situação
prevista na parte final do inciso V do art. 111.

Aprofundando o debate sobre a parte final deste inciso V

Acredito que a interpretação que deveria
prevalecer é a exposta acima. No entanto, pode ser que surjam correntes
diferentes. Vamos então polemizar um pouco?

Pergunta: no caso da parte final do inciso V do art. 111, tendo sido
proposta a ação penal mesmo antes da vítima completar 18 anos, qual é o termo
inicial da prescrição?

1ª corrente: é a data da
propositura da ação penal. É a interpretação que reputo mais adequada com o
espírito protecionista da vítima revelado pelo legislador.


2ª corrente: é a data do
recebimento da denúncia, com base em uma interpretação conjugada com o art.
117, I, do CP. É a posição defendida por Rogério Sanches.


3ª corrente: é a data da
consumação do delito. Isso porque a parte final do inciso V do art. 111 nega a
exceção, sem estabelecer expressamente um novo marco inicial da prescrição.
Logo, volta-se à regra geral, que é o art. 111, I, do CP. Trata-se da posição
que pode ser adotada por doutrinadores mais “garantistas”, com base em uma
interpretação mais benéfica ao réu.

Crítica a esta eventual 3ª corrente:

Vamos demonstrar a impertinência
da interpretação baseada nesta 3ª corrente com um exemplo hipotético:

“João” e “Maria”, motorista e
babá, praticam, na presença de “Ricardo” (4 anos de idade), conjunção carnal, a
fim de satisfazer lascívia própria. Este fato ocorreu em 10/06/2012.

“João” e “Maria” cometeram o
delito previsto no art. 218-A do Código Penal. Trata-se de crime contra a
dignidade sexual de criança ou adolescente.

Quando começa a correr o prazo prescricional deste delito?

R: No dia em que a “Ricardo”
completar 18 anos (em 10/03/2026). Até lá, o prazo prescricional está suspenso
por força da parte inicial do inciso V do art. 111 do CP.

Prazo prescricional em abstrato do crime do art. 218-A do CP

A pena máxima do crime do art.
218-A é de 4 anos. Logo, este delito prescreve em 8 anos.

No exemplo dado, no dia em que “Ricardo”
completou 18 anos (em 10/03/2026), ele procurou o MP e relatou o ocorrido
naquele dia. O Promotor ajuizou a ação penal. Este crime não estava prescrito e
somente prescreverá em 2034.

Agora imaginemos que, quando “Ricardo” completou 14 anos, ou seja, 10
anos após o fato, ele decidiu contar aos pais o que aconteceu naquele dia
10/06/2012. Os pais de “Ricardo” procuraram o MP.

Se adotarmos a 3ª corrente,
o MP não poderá ajuizar a ação penal porque se o fizer antes de “Ricardo”
completar 18 anos, o prazo prescricional será o da regra geral do inciso I do
art. 111, ou seja, o prazo prescricional terá iniciado na data em que o crime
se consumou (10/06/2012). Como já se passaram mais de 10 anos, o crime estaria
prescrito.

Desse modo, chegaríamos à absurda
conclusão de que o MP teria que esperar até que a vítima completasse 18 anos
para então ajuizar a ação penal e, assim, o prazo prescricional ser contado da
data do 18º aniversário.

Vale ressaltar que a referida mudança
legislativa atendeu a interesses de vitimologia no sentido de proteger os
interesses da vítima.

Por essa razão, a interpretação
exposta na 3ª corrente não deve ser adotada.

Analisando a expressão “crimes contra a dignidade sexual de crianças e
adolescentes, previstos no CP ou em leis especiais”

Vejamos mais uma vez a redação do
inciso V do art. 111:

Art.
111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a
correr:

(…)

V –
nos crimes contra a dignidade
sexual de crianças e adolescentes
, previstos neste Código ou em legislação especial,
da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já
houver sido proposta a ação penal.

O que é criança e adolescente?

Segundo
o critério legal do ECA (art. 2º), criança é a pessoa até 12 anos de idade
incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.

Crime praticado contra a pessoa em
seu 18º aniversário:

No dia em que a pessoa completa
18 anos, ela deixa de ser adolescente e passa a ser adulta. Assim, se a pessoa
for estuprada no dia do seu 18º aniversário, não se aplica este art. 111, V do
CP.

Quais são os crimes contra a dignidade sexual de crianças e
adolescentes previstos no Código Penal?

  • Estupro (art. 213, §
    1º);
  • Violação sexual
    mediante fraude (art. 215);
  • Assédio sexual (art.
    216-A, § 1º);
  • Estupro de vulnerável
    (art. 217-A);
  • Corrupção de menores
    (art. 218);
  • Satisfação de lascívia
    mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A);
  • Favorecimento da
    prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (art. 218-B);
  • Mediação para servir a
    lascívia de outrem (art. 227, § 1º);
  • Rufianismo (art. 230, §
    1º);
  • Tráfico internacional
    de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231, § 2º, I);
  • Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231-A, §
    2º, I).

Existem atualmente crimes contra a dignidade sexual praticados contra
crianças e adolescentes previstos em leis especiais?

Sobre este tema, certamente
surgirão duas correntes:


1ª corrente: NÃO. A única
lei que fala literalmente em “crimes contra a dignidade sexual” é o Código
Penal. Aplicar esta regra do inciso V do art. 111 do CP a outros crimes sexuais
contra crianças e adolescentes que não tem a rubrica de “crimes contra a
dignidade sexual” seria analogia in malam
partem.


2ª corrente: SIM. Quando o
novel inciso V do art. 111 do CP menciona “crimes contra a dignidade sexual”
ele está se referindo ao bem jurídico protegido, ou seja, trata-se de um gênero
que abrange todas as espécies de “delitos sexuais” envolvendo crianças e adolescentes.
A expressão “crimes contra a dignidade sexual” é apenas um eufemismo para
“crimes sexuais” ou uma atualização vernacular para “crimes contra a liberdade
sexual”. Assim, esta expressão utilizada pela Lei (“crimes contra a dignidade
sexual”) abrange todas as infrações penais cuja ofensa ao bem jurídico envolva
práticas ligadas à sexualidade. Não se trata de analogia in malam partem, mas tão somente do exercício da interpretação
teleológica e histórica. É a minha posição sobre o tema.

Desse modo, a meu sentir, o
inciso V do art. 111 do CP é aplicável aos delitos previstos nos arts. 240,
241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente
considerando que se tratam de crimes praticados contra crianças e adolescentes no
contexto da sexualidade. Seria absurdo e excessivo apego ao formalismo dizer
que tais delitos não ofendem a dignidade sexual das crianças e dos
adolescentes, enquanto bem jurídico tutelado, pelo simples fato de o ECA não
utilizar esta expressão.

Observação importante: os crimes de que trata o inciso V do art. 111
não se confundem, necessariamente, com os crimes contra a dignidade sexual
praticados contra vulneráveis.

Em outras palavras, “crimes
contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes” não é sinônimo de “crimes
contra a dignidade sexual praticados contra vulneráveis”. Provemos:

  • Existe crime contra a dignidade
    sexual de vulnerável que não se enquadra no inciso V do art. 111. Ex: estupro
    de vulnerável praticado contra pessoa de 20 anos com deficiência mental (art.
    217-A, § 1º).
  • Existe crime contra a dignidade
    sexual de adolescente que não é crime contra a dignidade sexual de vulnerável.
    Ex: estupro praticado contra pessoa de 16 anos sem enfermidade mental e que, no
    caso concreto, podia oferecer resistência (art. 213, § 1º).

Conclusão: toda criança é vulnerável para fins de crimes contra a
dignidade sexual, mas nem todo adolescente será vulnerável sob este aspecto.

O adolescente só será considerado
vulnerável para fins de crime contra a dignidade sexual se:

  • For maior que 12 e
    menor que 14 anos; ou
  • Não tiver o necessário
    discernimento para a prática do ato por enfermidade ou deficiência mental; ou
  • Não podia, no caso
    concreto, por qualquer causa, oferecer resistência.

Os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes são
sempre de ação penal pública incondicionada.

Vigência da Lei n.° 12.650/2012

A Lei n.° 12.650/2012 entrou em vigor na
data de sua publicação (18/05/2012), não possuindo vacatio legis.

Lei irretroativa

Conforme já explicado, a prescrição
é matéria penal, ou seja, de direito material e não de direito processual.
Desse modo, submete-se à regra segundo a qual a nova lei penal não retroagirá,
salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF/88). No caso concreto, a Lei n.° 12.650/2012, ao retardar
o início da contagem da prescrição, torna mais gravosa a situação para o réu.
Logo, não pode ser aplicada retroativamente aos fatos praticados antes de
18/05/2012, data em que entrou em vigor.

* Juiz Federal Substituto (TRF da 1ª Região).

Foi Defensor Público estadual, Promotor de Justiça e
Procurador do Estado.

Como citar este texto em trabalhos científicos:

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.650/2012, que acrescentou o inciso V ao art. 111 do Código Penal. Dizer o Direito.
Disponível em:
http://www.dizerodireito.com.br/2012/05/comentarios-lei-126502012-que.html.
Acesso em: dd mm aa

Artigo Original em Dizer o Direito

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