Comentários à Lei 13.827/2019, que autoriza a aplicação de medida protetiva de urgência pela autoridade policial


Olá amigos do Dizer o Direito, foi publicada, no dia
14/05/2019, a Lei nº 13.827/2019, que altera a Lei Maria da Penha (Lei nº
11.340/2006) para autorizar, em algumas hipóteses, a aplicação, pela autoridade
policial, de medida protetiva de urgência em favor da mulher.

Vamos entender o que mudou, mas, antes, como vocês já sabem,
é importante fazer uma revisão geral sobre o tema.

NOÇÕES GERAIS SOBRE AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

“Lei Maria da Penha”

A Lei nº 11.340/2006 (Lei de Violência Doméstica) é
conhecida como “Lei Maria da Penha”, em uma homenagem à Sra. Maria da Penha
Maia Fernandes que, durante anos, foi vítima de violência doméstica e lutou
bastante para a aprovação deste diploma.

A Lei nº 11.340/2006 prevê regras processuais instituídas
para proteger a mulher vítima de violência doméstica.

Desse modo, se uma mulher for vítima de violência doméstica
e familiar, a apuração deste delito (crime ou contravenção penal) deverá
obedecer ao rito da Lei Maria da Penha e, de forma subsidiária, ao CPP e às
demais leis processuais penais, naquilo que não for incompatível (art. 13).

Medidas protetivas de urgência

Medidas protetivas de urgência são providências previstas
nos arts. 22 a 24 da Lei nº 11.340/2006 e aplicadas para proteger as mulheres
vítimas de violência doméstica.

Natureza jurídica

As medidas protetivas possuem a natureza jurídica de medidas
cautelares.

Pressupostos

Para a concessão das medidas protetivas de urgência, é
necessária a comprovação do:

a) fumus commissi
delicti
: é a demonstração da existência de indícios de que houve violência
doméstica contra a mulher.

b) periculum libertatis:
é a existência de um risco à vítima ou a terceiros caso a medida protetiva não
seja imediatamente concedida.

Hipóteses previstas na Lei

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao
agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de
urgência, entre outras:

I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com
comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro
de 2003;

II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a
ofendida;

III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das
testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por
qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a
integridade física e psicológica da ofendida;

IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores,
ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Art. 23.  Poderá o juiz,
quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial
ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes
ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo
dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV – determinar a separação de corpos.

Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade
conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá
determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à
ofendida;

II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos
de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização
judicial;

III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao
agressor;

IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial,
por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e
familiar contra a ofendida.

Parágrafo único.  Deverá o
juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III
deste artigo.

Rol exemplificativo

Vale ressaltar que o rol das medidas protetivas previsto na
lei é meramente exemplificativo, podendo ser concedidas outras providências que
não estejam ali elencadas.

Trata-se daquilo que a doutrina denominou de princípio da
atipicidade das medidas protetivas de urgência (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada.
ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 931).

Possibilidade de aplicação de mais de uma

As medidas protetivas de urgência poderão ser aplicadas
isolada ou cumulativamente. Ex: determinação para que o agressor se afaste do
lar (inciso II do art. 22) e não se aproxime da vítima (inciso III do mesmo
artigo).

Além disso, as medidas protetivas de urgência poderão ser
aplicadas em conjunto com as medidas cautelares do CPP. Ex: determinação para
que o agressor se afaste do lar (inciso II do art. 22 da LMP) e que compareça
periodicamente em juízo (inciso I do art. 319 do CPP).

Momento

As medidas cautelares poderão ser requeridas e deferidas
durante a investigação preliminar e também após a instauração do processo
penal.

Legitimidade para requerer

Segundo o § 3º do art. 19 da Lei nº 11.340/2006, as medidas
protetivas de urgência podem ser requeridas:

a) a pedido da ofendida;

b) a requerimento do Ministério Público.

Obs: o pedido da ofendida para que lhe seja concedida medida
protetiva não precisa ser subscrito por advogado ou Defensor Público (art. 27
da Lei nº 11.340/2006).

E o Delegado de Polícia?

Não existe previsão na Lei para que o Delegado, em nome
próprio, formule pedido de concessão de medida protetiva de urgência.

O que a Lei prevê é que a vítima, ao ser ouvida pela
autoridade policial, e ao ser cientificada de seus direitos, declare que está
solicitando a concessão de uma ou mais medidas protetivas.

Esse pedido da vítima é remetido pelo Delegado para ser
analisado pelo juiz.

Veja a dicção da Lei:

Art. 12.  Em todos os
casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da
ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes
procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

(…)

III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas,
expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de
medidas protetivas de urgência;

Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida (pedido tratado no inciso III do art. 12
acima)
, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:

I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as
medidas protetivas de urgência;

II – determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de
assistência judiciária, quando for o caso;

III – comunicar ao Ministério Público para que adote as
providências cabíveis.

Desse modo, em sentido estritamente técnico, o Delegado de
Polícia não formula, em nome próprio, requerimento de concessão de medida protetiva.
Ele remete ao juiz o pedido deduzido pela ofendida.

Obviamente que isso não diminui em nada a relevância da
autoridade policial, que é o agente mais importante no sistema de proteção da
vítima de violência doméstica, sendo o que primeiro ampara e garante os
direitos da ofendida. O objetivo aqui é apenas ressaltar um aspecto
técnico-jurídico da Lei.

É necessário assegurar contraditório prévio ao ofensor antes da
decretação da medida protetiva?

NÃO. As medidas protetivas de urgência poderão ser
concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de
manifestação do Ministério Público (art. 19, § 1º da Lei nº 11.340/2006). É a
posição também do STJ.

Em sentido contrário: Renato Brasileiro defende que, em
regra, o juiz, antes de decretar a medida, deveria intimar o agressor para que
ele tenha a oportunidade de exercer o contraditório prévio. Essa intimação
prévia somente não deveria ocorrer em casos de urgência ou de perigo de
ineficácia da medida. O autor defende esse entendimento com base no § 3º do
art. 282 do CPP. Como esse parágrafo foi incluído no CPP pela Lei nº
12.403/2011 (posterior à Lei Maria da Penha), Brasileiro sustenta que o
dispositivo se aplica também para os casos de medida protetiva de urgência.
Veja a redação do art. 282, § 3º:

Art. 282 (…)

§ 3º Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia
da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a
intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças
necessárias, permanecendo os autos em juízo. (Incluído pela Lei nº 12.403/2011).

Medida protetiva concedida apenas com base na palavra da vítima

O STJ já reconheceu como válida a concessão de medida
protetiva do art. 22, III, da Lei nº 11.340/2006 apenas com base na palavra da
vítima:

(…) 1. Em se tratando de casos de violência doméstica em
âmbito familiar contra a mulher, a palavra da vítima ganha especial relevo para
o deferimento de medida protetiva de urgência, porquanto tais delitos são
praticados, em regra, na esfera da convivência íntima e em situação de
vulnerabilidade, sem que sejam presenciados por outras pessoas.

2. No caso, verifica-se que as medidas impostas foram somente
para manter o dito agressor afastado da ofendida, de seus familiares e de
eventuais testemunhas, restringindo apenas em menor grau a sua liberdade.

3. Estando em conflito, de um lado, a preservação da integridade
física da vítima e, de outro, a liberdade irrestrita do suposto ofensor, atende
aos mandamentos da proporcionalidade e razoabilidade a decisão que restringe
moderadamente o direito de ir e vir do último. (…)

STJ. 6ª Turma. RHC 34.035/AL, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 05/11/2013.

O juiz pode conceder medidas protetivas de ofício?

Com base na redação do art. 282, § 2º do CPP, deve-se
entender que:

• Na fase do inquérito policial: NÃO. Aqui é necessário
pedido ou requerimento.

• Na fase judicial: SIM.

Art. 282 (…)

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício
ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por
representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério
Público. (Incluído pela Lei nº 12.403/2011).

Quais
as consequências caso o indivíduo descumpra a decisão judicial que impôs a
medida protetiva de urgência?


é possível a execução da multa imposta;


é possível a decretação de sua prisão preventiva (art. 313, III, do CPP);

• o agente responderá pelo crime do
art. 24-A da Lei nº 11.340/2006:

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial
que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2
(dois) anos.

COMPETÊNCIA PARA A CONCESSÃO DA MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA

Vamos agora tratar sobre o tema realmente alterado pela Lei nº
13.827/2019: quem concede a medida protetiva de urgência?

Em regra, a autoridade judicial (Juiz ou Desembargador).

Até a edição da Lei nº 13.827/2019, essa regra não tinha
exceções.

A Lei nº 13.827/2019 trouxe uma exceção, permitindo que a
medida protetiva de afastamento do lar seja concedida pelo Delegado de Polícia se
o Município não for sede de comarca ou até mesmo pelo policial caso também não
haja Delegado de Polícia no momento.

Entendendo a novidade legislativa:

Verificada a existência de…

– risco atual ou iminente à vida ou à integridade física
da mulher em situação de violência doméstica e familiar,

– ou de seus dependentes,

– o agressor deverá ser imediatamente afastado do lar,
domicílio ou local de convivência com a ofendida.

Quem determina esse afastamento?

1º) em primeiro lugar, a autoridade judicial.

2º) se o Município não for sede de comarca: o Delegado de
Polícia poderá determinar essa medida.

3º) se o Município não for sede de comarca e não houver
Delegado disponível no momento: o próprio policial (civil ou militar) poderá
ordenar o afastamento.

Se a medida for concedida por Delegado ou por policial
(situações 2 e 3), o Juiz será comunicado no prazo máximo de 24 horas e
decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada,
devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.

Veja o dispositivo inserido:

Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à
vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e
familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do
lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:

I – pela autoridade judicial;

II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede
de comarca; ou

III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca
e não houver delegado disponível no momento da denúncia.

§ 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o
juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá,
em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo
dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.

(…)

Discussão quanto à constitucionalidade por violação ao princípio da
jurisdicionalidade

A presente novidade legislativa gerará algumas interessantes
discussões sobre a sua constitucionalidade. Isso porque, tradicionalmente, o
direito brasileiro considera que as medidas cautelares somente podem ser
deferidas pela autoridade judicial. É o chamado princípio da
jurisdicionalidade.

O afastamento do lar é uma medida cautelar penal e,
portanto, certamente surgirão vozes defendendo que a lei é inconstitucional por
outorgar ao Delegado de Polícia e ao policial a possibilidade de sua concessão.

Confira, por exemplo, o que
dizia Renato Brasileiro antes da edição da Lei nº 13.827/2019:

“Pelo princípio da
jurisdicionalidade, a decretação de toda e qualquer espécie de provimento
cautelar está condicionada à manifestação fundamentada do Poder Judiciário
(…)

Se a Constituição Federal
enfatiza que ‘ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal’ (art. 5º, LIV), que ‘ninguém será preso senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária
competente’ (art. 5º, LXI), que ‘a prisão de qualquer pessoa e o local onde se
encontre serão comunicados imediatamente ao juízo competente’ (art. 5º, LXII),
que ‘a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária’
(art. 5º, LXV) e que ‘ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a
lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança’ (art. 5º, LXVI), fica
evidente que a Carta Magna impõe a sujeição de toda e qualquer medida cautelar
à apreciação do Poder Judiciário.

Não por outro motivo, dispõe o
art. 19, caput, da Lei Maria da Penha, que as medidas protetivas de urgência
poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a
pedido da ofendida. Em face desses dispositivos, depreende-se que a restrição à
liberdade de locomoção do agressor inerente à aplicação dessas medidas deve
resultar não simplesmente de uma ordem judicial, mas de um provimento
resultante de um procedimento qualificado por garantias mínimas, como a
independência e a imparcialidade do juiz, o contraditório e a ampla defesa, o
duplo grau de jurisdição, a publicidade e, sobretudo, nessa matéria, a
obrigatoriedade de motivação (jurisdicionalidade em sentido estrito).

Destarte, considerando que todas
essas medidas protetivas de urgência afetam, direta ou indiretamente, a
liberdade de locomoção, ora com maior, ora com menor intensidade, podendo
inclusive ser convertidas em prisão preventiva diante do descumprimento das
obrigações impostas (CPP, art. 313, III), não se admite que possam ser
decretadas por outras autoridades que não o juiz competente (v.g, Comissões
Parlamentares de Inquérito).” (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 4ª ed., Salvador:
Juspodivm, 2016, p. 928).

Vale ressaltar que essa foi a razão pela qual, em 2017, o
então Presidente Michel Temer vetou projeto de lei aprovado que autorizava que autoridade
policial aplicasse provisoriamente medidas protetivas de urgências até que
houvesse deliberação por parte da autoridade judicial.

O Presidente da República vetou o dispositivo sob o
argumento de que a prerrogativa de impor medidas protetivas de urgência seria
privativa do Poder Judiciário, não podendo ser estendida à Polícia. Veja a
íntegra das razões apresentadas:

 “Os dispositivos,
como redigidos, impedem o veto parcial do trecho que incide em
inconstitucionalidade material, por violação aos artigos 2º e 144, § 4º, da
Constituição, ao invadirem competência afeta ao Poder Judiciário e buscarem
estabelecer competência não prevista para as polícias civis.”


A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ajuizou, inclusive, uma ação direta de inconstitucionalidade contra os incisos II e III e o § 1º, todos do art. 12-C (ADI 6138).

Mas, afinal, de contas, o art. 12-C da Lei nº 11.340/2006,
acrescido pela Lei nº 13.827/2019, é inconstitucional? Penso que não.

De fato, as medidas cautelares penais estão sujeitas ao
princípio da jurisdicionalidade, segundo o qual, em regra, somente podem ser concedidas
pela autoridade judicial. No entanto, o art. 12-C estabelece uma hipótese de jurisdicionalidade
postergada, postecipada ou diferida (CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403 Comentada – Medidas cautelares,
prisões provisórios e liberdade provisória
. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2013, p. 23). Isso porque, segundo o § 1º do dispositivo, em até 24 horas após a
autoridade policial impor o afastamento do lar, o juiz deverá ser comunicado sobre
a situação e terá também 24 horas para decidir se mantém ou revoga a medida
aplicada. Desse modo, a decisão sobre a medida continua sendo do Poder
Judiciário.

Além disso, é preciso que seja feita uma ponderação dos
interesses protegidos. A cláusula de jurisdicionalidade das medidas cautelares existe
como uma garantia do investigado ou réu, até mesmo como decorrência do devido
processo legal. No entanto, se a situação ocorre em um Município que não é sede
de comarca, a exigência da jurisdicionalidade prévia geraria um risco de dano
irreversível ao bem jurídico de maior importância do ordenamento jurídico, qual
seja, a vida da vítima.

Ressalte-se, ainda, que a restrição aos bens jurídicos do
agressor é mínima considerando que só é permitida a imposição de uma medida protetiva,
qual seja, o afastamento do lar, não havendo, desse modo, risco de dano
irreparável caso o magistrado entenda que deve revogar a imposição deferida
pela autoridade policial.

Discussão quanto à constitucionalidade por violação ao princípio da isonomia

Em outro extremo, surgiu também a tese de que o aludido art.
12-C seria inconstitucional por afrontar o princípio da isonomia. Isso porque,
conforme vimos, a Lei somente permite que o Delegado determine o afastamento do
agressor do lar nos Municípios que não são sede de comarca. Assim, as vítimas que
moram em Municípios onde há comarcas instaladas teriam uma proteção menor, considerando
que teriam que esperar por uma decisão judicial, o que, certamente, demora mais
do que a imposição direta pelo Delegado de Polícia.

Desse modo, para os defensores dessa linha de raciocínio, a Lei
teria tratado de forma desigual as vítimas de violência doméstica. Como
consequência, sustentam a ideia de que essa exigência (“quando o Município não
for sede de comarca”) deve ser declarada inconstitucional e, assim, em todo e
qualquer lugar do Brasil seria permitido que o Delegado de Polícia concedesse
imediatamente a medida protetiva de afastamento do lar. Nesse sentido, é a
posição defendida pelo estimado e combativo Thiago Garcia.

Apesar de reconhecer a interessante
construção proposta, respeitosamente, penso que não há violação à isonomia.

Conforme lição classicamente conhecida, o respeito à
igualdade significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais,
na exata medida de suas desigualdades.

A igualdade formal significa dizer que não pode haver
privilégios e tratamentos discriminatórios.

Da igualdade formal decorre o corolário da “igualdade na
lei”, que significa um comando endereçado ao legislador, que não deve instituir
discriminações ou tratamentos diferenciados baseados em fundamento que não seja
razoável ou que não vise a um fim legítimo.

A Lei não concede um privilégio odioso às vítimas que
residem em Municípios que não sejam sede de comarca. Em verdade, o objetivo
dela é permitir que, mesmo sem a presença física do Poder Judiciário, ela tenha
resguardada a sua integridade física. Existe, portanto, uma razão jurídica que
fundamenta a distinção.

O critério escolhido pelo legislador é objetivo e razoável. Se
o Município não é sede de comarca, não é razoável aguardar uma decisão judicial
porque esta irá demorar mais do que em outras localidades que não possuem essa
deficiência.

É indiscutível que a rede de assistência às mulheres vítimas
de violência doméstica ainda é insuficiente para garantir uma proteção plena às
ofendidas. No entanto, as eventuais falhas estruturais não autorizam, a meu
sentir, um elastecimento da lei para desconsiderar um critério legítimo adotado
pelo legislador.

Se fôssemos considerar, como preponderante, o argumento das deficiências
do sistema de proteção, poderíamos cogitar a ampliação da lei, por
interpretação, para permitir a concessão de outras medidas protetivas (além do
afastamento do lar), como, por exemplo, a proibição de se aproximar da vítima
ou mesmo a prestação de alimentos. Em outras palavras, tais medidas são
extremamente necessárias e não foram contempladas na Lei como sendo passíveis
de concessão pela autoridade policial. Nem por isso, seria possível a sua
ampliação com base na alegação de inconstitucionalidade.

Ressalte-se que o afastamento do princípio da
jurisdicionalidade é excepcional e, portanto, não deve ser ampliada por
interpretação extensiva.

Qual é o instrumento cabível contra a decisão da autoridade policial
que concede ou nega a medida cautelar de urgência?

Se o juiz já manteve a decisão do Delegado, o responsável
pela decisão passou a ser a autoridade judicial e, portanto, o recurso deverá
ser contra o pronunciamento do magistrado.

Por outro lado, se o juiz ainda não apreciou a decisão do
Delegado, teremos duas situações possíveis:

• Delegado concedeu a medida: o suposto ofensor pode
impetrar habeas corpus para o juiz.

• Delegado denegou a medida: a vítima deverá formular novo
pedido de concessão da medida, agora para o juiz.

Quais
as consequências caso o indivíduo descumpra a decisão da autoridade policial
que impôs a medida protetiva de urgência?

É
possível que o Delegado represente ao juiz para a decretação da prisão preventiva
do ofensor (art. 313, III, do CPP).

Vale
ressaltar que o agente não responderá pelo crime do art. 24-A da Lei nº
11.340/2006, considerando que o tipo penal fala em “descumprir decisão
judicial”:

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial
que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2
(dois) anos.

Assim, o agente só responderá pelo crime do art. 24-A se o
juiz mantiver a decisão concessiva do Delegado e o agressor continuar
descumprindo a medida.

O agente poderia responder por desobediência (art. 330 do CP)?

Também não.

Não há crime de desobediência quando a pessoa desatende a
ordem e existe alguma lei prevendo uma sanção civil, administrativa ou
processual penal para esse descumprimento, sem ressalvar que poderá haver
também a sanção criminal.

Explicando melhor:

• Se uma ordem é dada e na Lei existe a previsão de uma sanção
civil ou administrativa para o caso de descumprimento dessa ordem, não se
configura o crime de desobediência.

• Exceção: haverá delito de desobediência se na Lei, além da
sanção civil ou administrativa, expressamente constar uma ressalva de que não
se exclui a sanção penal.

Ex.1: Marcelo foi parado em uma blitz. O agente de trânsito
determinou que ele apresentasse a habilitação e o documento do veículo, tendo
Marcelo se recusado a fazê-lo. Marcelo não cometeu crime de
desobediência porque o art. 238 do Código de Trânsito já prevê punições
administrativas para essa conduta (infração gravíssima, multa e apreensão do
veículo), sem ressalvar a possibilidade de aplicação de sanção penal.

Ex.2: Gutemberg foi intimado para testemunhar em uma ação
penal, tendo, no entanto, sem justificativa, deixado de comparecer ao ato
processual. Gutemberg cometeu o crime de desobediência. O CPP determina que o
juiz poderá aplicar multa e condená-lo a pagar as custas da diligência, sem prejuízo do processo penal por crime de desobediência (art. 219).
Assim, a Lei (no caso, o CPP) prevê punições civis, ressalvando, no entanto,
que elas poderão ser aplicadas juntamente com a condenação criminal.

Ex.3: Cleôncio foi intimado para testemunhar em uma ação de
indenização por danos morais, tendo, no entanto, sem justificativa, deixado de
comparecer ao ato processual. Cleôncio não cometeu o crime de
desobediência. O CPC prevê que a testemunha faltosa será conduzida
coercitivamente e condenada a pagar as despesas do adiamento do ato (art. 455,
§ 5º). Contudo, a Lei (no caso, o CPC) não prevê a possibilidade de tais
sanções cíveis serem aplicadas juntamente com a punição pelo crime de
desobediência.

E no caso do art. 12-C da Lei Maria da Penha?

A Lei nº 11.340/2006 prevê que o descumprimento da medida
protetiva do art. 12-C gera uma consequência processual penal (prisão preventiva)
e não ressalvava a possibilidade de o agente responder também criminalmente.
Logo, seguindo o raciocínio acima, não se pode condenar o agente por crime de
desobediência.

Nesse sentido:

(…) 1. O Superior Tribunal de
Justiça firmou o entendimento de que para a caracterização do crime de
desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial,
sendo necessário que não exista previsão de sanção específica.

2. A Lei n. 11.340/06 determina que,
havendo descumprimento das medidas protetivas de urgência, é possível a
requisição de força policial, a imposição de multas, entre outras sanções, não
havendo ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do art. 330 do
Código Penal.

3. Ademais, há previsão no art. 313,
III, do Código de Processo Penal, quanto à admissão da prisão preventiva para
garantir a execução de medidas protetivas de urgência nas hipóteses em que o
delito envolver violência doméstica.

4. Em respeito ao princípio da
intervenção mínima, não há que se falar em tipicidade da conduta atribuída ao
recorrido, na linha dos precedentes deste Sodalício. (…)

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp
1528271/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 13/10/2015.

VEDAÇÃO À LIBERDADE PROVISÓRIA

Prisão em flagrante

Imagine que João foi preso em flagrante após praticar lesões
corporais gravíssimas contra sua esposa Laura, motivado por ciúmes.

Este indivíduo deverá ser submetido a uma audiência de
custódia na qual o juiz, após ouvi-lo, poderá:

1) determinar o relaxamento da prisão em flagrante (caso
entenda que a prisão foi ilegal);

2) conceder liberdade provisória (com ou sem a imposição de medidas
cautelares diversas da prisão);

3) converter a prisão em flagrante em prisão preventiva,
caso estejam presentes os pressupostos do art. 312 do CPP.

Veja o que diz o CPP:

Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz
deverá fundamentadamente:

I – relaxar a prisão ilegal; ou

II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando
presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem
inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou

III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Decretação da prisão preventiva

Assim, é perfeitamente possível a decretação da prisão
preventiva do flagranteado suspeito de ter cometido um crime envolvendo
violência doméstica e familiar contra a mulher.

Essa possibilidade está prevista expressamente no art. 20 da
Lei nº 11.340/2006.

Vale ressaltar, no entanto, mais uma vez, que a prisão
preventiva, neste caso, somente é possível se estiverem presentes os
pressupostos do art. 312 do CPP e demais requisitos exigidos pelo Código:

Art. 312.  A prisão
preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem
econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a
aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício
suficiente de autoria.

O que fez a Lei nº 13.827/2019?

A Lei nº 13.827/2019 inseriu um dispositivo à Lei Maria da
Penha:

– proibindo expressamente a concessão de liberdade
provisória

– ao autor de um crime praticado com violência doméstica e
familiar contra mulher

– caso esteja demonstrado que a soltura do agente acarretará

– risco à integridade física da vítima ou

– risco à efetividade da medida protetiva de urgência.

Veja a redação do dispositivo:

Art. 12-C (…)

§ 2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à
efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade
provisória ao preso. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 13.827/2019)

Risco deve ser concreto

Vale ressaltar que a demonstração do risco não pode ser fundamentada
de forma abstrata, sendo necessário que o magistrado explicite razões concretas
pelas quais, naquele caso específico, a liberdade do agente acarretaria os
riscos que se busca evitar. Ex: o agente possui outros registros de violência
doméstica.

Deve-se evitar, portanto, que este § 2º seja utilizado para
se negar, de forma automática e generalizada, a liberdade provisória.

Vale ressaltar, inclusive, que o STF entende que é
inconstitucional a lei que proíbe a liberdade provisória de forma genérica.

A lei, quando afasta a concessão de liberdade provisória de
forma genérica, retira do juiz a oportunidade de, no caso concreto, analisar os
pressupostos da necessidade ou não da prisão cautelar.

Cabe ao magistrado, e não ao legislador, verificar se se
configuram ou não, em cada caso, hipóteses que justifiquem a prisão cautelar.
Isso porque a Constituição Federal não permite a prisão ex lege (ou seja, apenas por força de lei).

Nesse sentido: STF. Plenário. HC 104339/SP, Rel. Min. Gilmar
Mendes, julgado em 10/5/2012.

Interpretação sistemática

O novo § 2º do art. 12-C da Lei nº 11.340/2006 não pode ser
lido isoladamente, devendo ser interpretado em conjunto com as regras do Código
de Processo Penal a respeito da prisão preventiva e da liberdade provisória.

Assim, mesmo que haja risco à integridade física da ofendida
ou à efetividade da medida protetiva de urgência, o agente não poderá
permanecer preso, por exemplo, se tiver praticado vias de fato (art. 21 do DL
3.688/41), considerando que o CPP não admite a prisão preventiva em caso de
contravenção penal. Logo, a prática de contravenção penal, no âmbito de
violência doméstica, não é motivo idôneo para justificar a prisão preventiva do
réu (STJ. 6ª Turma. HC 437535-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel.
Acd. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 26/06/2018).

De igual forma, não caberá prisão preventiva se esse risco à
vítima ou à efetividade da medida protetiva puder ser solucionado com a
concessão de outras medidas cautelares diversas da prisão. Ex: concede-se a
prisão domiciliar do agressor (obviamente, em residência diferente do lar da vítima). Isso porque o art. 12-C, § 2º, da Lei nº
11.340/2006 deve ser interpretado em conjunto com o art. 310, II do CPP.

Antecipação da hipótese de prisão preventiva

O CPP admite a decretação da prisão preventiva contra o
autor de um crime envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher com
o objetivo de garantir a execução das medidas protetivas de urgência:

Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a
decretação da prisão preventiva:

(…)

III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra
a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para
garantir a execução das medidas protetivas de urgência;

A jurisprudência, no entanto, aplica esse inciso III do art.
313 do CPP apenas nos casos em que o agente descumpre uma medida protetiva de
urgência. Ex: a juíza ordenou que João (agressor) mantivesse distância mínima
de 500 metros de Laura (vítima) e não tentasse nenhum contato com ela por
qualquer meio de comunicação (art. 22, III, “a” e “b”). Passadas duas semanas,
João descumpriu a medida protetiva e foi até a casa de Laura. Neste caso, como
houve descumprimento da medida, a magistrada poderia decretar a prisão
preventiva, com fundamento no art. 313, III, do CPP.

O novo § 2º do art. 12-C antecipa a possibilidade de
decretação da prisão preventiva. Isso porque afirma que a liberdade provisória
deve ser negada se houver um “risco” à efetividade da medida protetiva de
urgência.

REGISTRO DAS MEDIDAS PROTETIVAS

Por fim, a Lei nº 13.827/2019 acrescentou um novo
dispositivo à Lei Maria da Penha prevendo que as medidas protetivas de urgência
deverão ser registradas em bancos de dados para fiscalização de sua
efetividade:

Art. 38-A.  O juiz competente
providenciará o registro da medida protetiva de urgência.

Parágrafo único. As medidas protetivas de urgência serão
registradas em banco de dados mantido e regulamentado pelo Conselho Nacional de
Justiça, garantido o acesso do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos
órgãos de segurança pública e de assistência social, com vistas à fiscalização
e à efetividade das medidas protetivas.

Vigência

A Lei nº 13.827/2019 entrou em vigor na data de sua
publicação (14/05/2019).

Márcio André Lopes Cavalcante

Juiz Federal. Foi Defensor Público, Promotor de Justiça e
Procurador do Estado.

Artigo Original em Dizer o Direito

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