Decisões garantem respeito à identidade de gênero de pessoas trans

 

Paula Benett: decisão do STJ tem a ver com liberdade.

O nome que aparece no registro civil é a maneira pela qual os indivíduos são identificados jurídica e socialmente. É uma experiência muito desconfortável, para dizer o mínimo, quando uma pessoa não se reconhece no nome que lhe foi designado. Assim aconteceu com Paula Benett, uma mulher transexual que precisou entrar com ação na Justiça para alterar o nome e o sexo em sua certidão de nascimento.

Para Paula, a frase clássica da escritora francesa Simone de Beauvoir – “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” – define bem a importância que essa alteração representa para as pessoas trans. E acrescenta: “Eu acho essa frase fantástica porque é justamente isso. Não é o corpo que diz o que você é. É a cabeça”.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem assumido papel de vanguarda nessa área, com um histórico de decisões permitindo a mudança do registro civil por pessoas trans desde, pelo menos, 2009.

No entanto, foi somente em maio de 2017 que o STJ firmou o entendimento de que o direito dos transexuais à retificação da certidão de nascimento em relação ao nome e ao sexo não poderia ser condicionado à realização de cirurgia de adequação sexual, também chamada de transgenitalização (o número do processo não é divulgado em razão de segredo judicial).

“As pessoas trans transitam. Isso independe de cirurgia. Quando você vê alguém na rua, você não vê genitália. Você vê gênero. O fato de eu me assumir como mulher não traz prejuízos à sociedade. A questão da inclusão não gera exclusão de direitos para outras pessoas que não são trans”, afirma Paula Benett.

Viver com dignidade

Pela decisão do STJ, a alteração do sexo constante no registro civil deve ser feita no assentamento de nascimento original, proibida a inclusão, ainda que sigilosa, da expressão “transexual”, do sexo biológico ou dos motivos das modificações registrais.

Assistente social e ativista do movimento LGBT, Paula conta que, antes de decisões como as tomadas pelo STJ, homens e mulheres trans enfrentavam muita dificuldade para conseguir alterar o registro civil, tendo de buscar a Justiça para conseguir a mudança do nome na certidão de nascimento sem ter, no entanto, a garantia de que a sua identidade de gênero seria respeitada.

“A decisão do STJ foi de suma importância, pois tem a ver com o respeito da identidade de gênero, tem a ver com quem realmente nós somos. Tem a ver com liberdade. Eu sou mulher, e a Justiça está me dizendo que assegura esse meu direito de ser mulher. Trata-se de garantir a dignidade da pessoa humana, de poder viver uma vida com dignidade, sem se preocupar com violência ou com julgamentos”, ressalta.

Respeito às diferenças

O entendimento de que é possível a alteração do registro civil sem realização de cirurgia foi firmado pela Quarta Turma do STJ, que acolheu pedido de modificação de prenome e de sexo registral de transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para demonstrar identificação social como mulher.

Para o colegiado, o direito dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à realização de cirurgia, a qual muitas vezes se mostra inviável por razões médicas ou financeiras.

O relator, ministro Luis Felipe Salomão, destacou que os transexuais, via de regra, vivem em desconexão psíquico-emocional com o seu sexo biológico e buscam formas de adequação. Ele lembrou que, apesar da existência de princípios como a imutabilidade do registro, a Lei de Registros Públicos prevê a possibilidade de alteração do nome que cause situação vexatória ou de degradação social, a exemplo das denominações que destoem da aparência física do indivíduo.

Na hipótese específica dos transexuais, o ministro Salomão entendeu que a simples modificação de nome não seria suficiente para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Para o relator, foi necessária uma evolução da jurisprudência para alcançar também os transexuais não operados, de forma a trazer “a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças”.

Tudo em cartório

Ainda não existe no Brasil uma norma legal que regulamente a alteração do registro civil por pessoas trans. Até recentemente, para mudar a certidão de nascimento, era preciso mover uma ação judicial.

Porém, em junho de 2018, em convergência com as decisões tomadas pelo STJ e mais recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4.275), o então corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, publicou o Provimento 73, que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de transgêneros.

Ficou estabelecido que homens e mulheres trans, maiores de 18 anos, podem pedir a alteração do registro civil, adequando-o à identidade de gênero autopercebida, independentemente de autorização judicial prévia ou comprovação de cirurgia de adequação sexual.

O pedido de retificação registral de sexo e de mudança do prenome e da imagem registrados na documentação pessoal pode ser feito diretamente nos cartórios de registro civil, não sendo necessária a presença de advogados ou defensores públicos.

A série 30 anos, 30 histórias apresenta reportagens especiais sobre pessoas que, por diferentes razões, têm suas vidas entrelaçadas com a história de três décadas do Superior Tribunal de Justiça. Os textos são publicados nos fins de semana.

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