É possível o ajuizamento de ação possessória, fundada em cláusula resolutiva expressa, decorrente de inadimplemento contratual do promitente comprador, sendo desnecessária a prévia propositura de ação para resolução do contrato


 

Imagine a seguinte situação
hipotética:

João, proprietário de uma
fazenda, celebrou com Pedro, compromisso de compra e venda do imóvel.

Assim, João se comprometeu a
vender a fazenda para Pedro, que ficou de pagar R$ 700 mil divididos em 7
prestações de R$ 100 mil.

No momento da assinatura do
contrato, João já transferiu a posse para Pedro, que passou a ocupar a fazenda,
ali vivendo e trabalhando.

Ocorre que Pedro pagou apenas
duas prestações, tornando-se, a partir daí, inadimplente.

João fez uma notificação
extrajudicial do devedor conferindo o prazo de 10 dias para purgar a mora, sob
pena de resolução do contrato, nos termos da cláusula 4.3 do contrato celebrado.

Passou o prazo e Pedro não pagou
a dívida nem desocupou o imóvel, caracterizando, assim, o esbulho, dada a posse
precária exercida.

Diante desse cenário, João
ajuizou ação de reintegração de posse contra Pedro.

O juiz concedeu a liminar determinando
que o réu desocupasse o imóvel.

O requerido recorreu e o Tribunal
de Justiça extinguiu o processo, sem resolução de mérito, sob o argumento de
que o correto seria o prévio ajuizamento de ação para rescisão do contrato.

Desse modo, o Tribunal entendeu
pela inadequação da via eleita (reintegração de posse sem pedido de rescisão do
compromisso de compra e venda do imóvel).

 

Agiu corretamente o
Tribunal de Justiça?

NÃO.

 

Cláusula resolutiva

O art. 474 do Código Civil trata sobre as cláusulas
resolutivas expressa e tácita:

Art. 474. A cláusula resolutiva
expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial.

 

þ
(PGM Curitiba) A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita
depende de interpelação judicial. (certo)

ý (Defensor DPE-RN 2015
CESPE) A extinção do contrato decorrente de cláusula resolutiva expressa
configura exercício do direito potestativo de uma das partes do contrato de
impor à outra sua extinção e depende de interpelação judicial. (errado)

 

CLÁUSULA
RESOLUTIVA

EXPRESSA

TÁCITA

Trata-se de uma cláusula
expressamente estipulada pelas partes no momento da celebração do negócio
jurídico ou em oportunidade posterior (por meio de aditivo contratual), porém,
sempre antes da verificação da situação de inadimplência nela prevista, que constitui
o suporte fático para a resolução do ajuste firmado.

                                                            

Nesta cláusula, as partes
indicam as hipóteses que geram a extinção do contrato.

Importante mencionar que a
cláusula resolutiva expressa não extingue automaticamente o contrato, mas
apenas permite ao credor exercer o direito de optar entre:

·
a execução da prestação; ou

·
a resolução do ajuste.

É aquela prevista pelo próprio
texto legal, e se aplica em situações nas quais as partes não estipulam
mediante cláusula expressa.

Nessa modalidade de extinção,
ocorrendo determinada circunstância ensejadora de descumprimento
obrigacional, está a parte prejudicada autorizada a buscar o rompimento do
vínculo contratual, nos termos do art. 395, parágrafo único, do CC:

 

Art. 395 (…)

Parágrafo único. Se a
prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la,
e exigir a satisfação das perdas e danos.

 

 

A vantagem de se estipular uma
cláusula resolutiva expressa é que, se ocorrer a situação ali prevista,
haverá resolução da relação negocial independentemente de pronunciamento
judicial.

Para que haja a resolução da
relação negocial exige-se pronunciamento judicial.

 

Interpretação tradicional
do STJ para o art. 474 do CC

Mesmo com a previsão legal do art.
474 do Código Civil, que dispensa as partes da ida ao Judiciário quando
existente a cláusula resolutiva expressa por se operar de pleno direito, o STJ,
ao interpretar esse dispositivo, entendia ser “imprescindível a prévia
manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda
de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente
cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do
princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos” (STJ. 4ª Turma. REsp
620.787/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 27/04/2009).

Desse modo, se, no caso concreto
acima narrado, fosse aplicada a jurisprudência sedimentada no STJ, sem uma
análise mais criteriosa e específica, a solução seria, realmente, reconhecer a
falta de interesse de agir do autor (João) por conta da “inadequação da via
eleita” já que ele teria que, previamente, pleitear em juízo a resolução do
contrato.

 

STJ alterou seu entendimento

Ocorre que o STJ afirmou que, casos
como o narrado acima exigem uma solução diferente daquela que era
tradicionalmente adotada pela jurisprudência. É necessária uma mudança para se
adotar um entendimento mais condizente com as expectativas da sociedade
hodierna, voltadas à mínima intervenção estatal no mercado e nas relações
particulares, com foco na desjudicialização, simplificação de formas e ritos e,
portanto, na primazia da autonomia privada.

 

Cláusula resolutiva
expressa + interpelação + concessão de prazo

Após a necessária interpelação
para constituição em mora, deve haver um período no qual o contrato não pode
ser extinto e que o compromissário comprador tem possibilidade de purgar.

Após o decurso do prazo in albis,
isto é, sem a purgação da mora, nada impede que o compromitente vendedor exerça
o direito potestativo concedido pela cláusula resolutiva expressa para a
resolução da relação jurídica extrajudicialmente.

Cumprida a necessidade de
comprovação da mora e comunicado o devedor acerca da intenção da parte
prejudicada de não mais prosseguir com a avença, ultrapassado o prazo para a
purgação da mora, o contrato se resolve de pleno direito, sem interferência
judicial. Essa resolução, como já mencionado, dá-se de modo automático, pelo só
fato do inadimplemento do promitente comprador, independentemente de qualquer
outra providência.

 

 

Em alguns casos será
necessária intervenção judicial (ex: em casos de inadimplemento substancial)

Não se nega a existência de casos
nos quais, em razão de outros institutos, esteja a parte credora impedida de
pôr fim à relação negocial, como, por exemplo, quando evidenciado o
adimplemento substancial*. Porém, essas hipóteses não podem transformar a
excepcionalidade em regra, principalmente caso as partes estipulem cláusula
resolutiva expressa e o credor demonstre os requisitos para a comprovação da
mora, aguarde a apresentação de justificativa plausível pelo inadimplemento ou
a purga e comunique a intenção de desfazimento do ajuste, informação que pode
constar da própria notificação.

Nessas hipóteses excepcionais,
quando sobressaírem motivos plausíveis e justificáveis para a não resolução do
contrato, a parte devedora sempre poderá socorrer-se da via judicial a fim de alcançar
a declaração de manutenção do ajuste, transformando o inadimplemento absoluto
em parcial, oferecendo, na oportunidade, todas as defesas que considerar
adequadas a fim de obter a declaração de prosseguimento do contrato.

O que não se pode é exigir que a
parte credora – já prejudicada pelo inadimplemento – tenha que propor demanda
judicial para obter a resolução do contrato quando já existe uma cláusula
resolutória expressa em seu favor. Exigir isso seria impor ônus demasiado e
obrigação contrária ao texto expresso da lei, desprestigiando o princípio da
autonomia da vontade, da não intervenção do Estado nas relações negociais,
criando obrigação que refoge à verdadeira intenção legislativa.

 

Exigências da notificação
extrajudicial

Ressalte-se que a notificação
deve conter o valor do crédito em aberto, o cálculo dos encargos contratuais
cobrados, o prazo e local de pagamento e, principalmente, a explícita
advertência de que a não purgação da mora no prazo acarretará a gravíssima
consequência da extinção do contrato por resolução, fazendo nascer uma nova
relação entre as partes – de liquidação.

Dito isso, afirma-se que a
alteração jurisprudencial é necessária para tornar prescindível o intento de
demanda/ação judicial nas hipóteses em que existir cláusula resolutória
expressa e tenha a parte cumprido os requisitos para a resolução da avença.

 

Em suma:

É possível o manejo de ação possessória, fundada em
cláusula resolutiva expressa, decorrente de inadimplemento contratual do
promitente comprador, sendo desnecessário o ajuizamento de ação para resolução
do contrato.

STJ. 4ª
Turma. REsp 1.789.863-MS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 10/08/2021 (Info
704).

 

* DOD Pédia

Antes de verificar o que decidiu
o STJ, vamos relembrar o que é a teoria do adimplemento substancial

Por meio da teoria do
adimplemento substancial, defende-se que, se o adimplemento da obrigação foi
muito próximo ao resultado final, a parte credora não terá direito de pedir a
resolução do contrato porque isso violaria a boa-fé objetiva, já que seria
exagerado, desproporcional, iníquo.

No caso do adimplemento
substancial, a parte devedora não cumpriu tudo, mas quase tudo, de modo que o
credor terá que se contentar em pedir o cumprimento da parte que ficou
inadimplida ou então pleitear indenização pelos prejuízos que sofreu (art. 475,
CC).

Veja o
clássico conceito de Clóvis do Couto e Silva:

Adimplemento
substancial “constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que,
tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução,
permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que
a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)” (O
Princípio da Boa-Fé no Direito Brasileiro e Português in Estudos de Direito
Civil Brasileiro e Português. São Paulo: RT, 1980, p. 56).

 

Sua origem está no Direito
Inglês, por volta do séc. XVIII, tendo lá recebido o nome de substancial performance.

 

Esta teoria é prevista
expressamente no ordenamento jurídico brasileiro?

NÃO. Não existe uma previsão expressa
dessa teoria. Apesar disso, ela encontra fundamento em diversos princípios,
dentre eles:

• a função social do contrato
(art. 421 do CC);

• a boa-fé objetiva (art. 422);

• a equivalência das obrigações

• a vedação ao abuso de direito
(art. 187);

• a eticidade

• a razoabilidade e

• a vedação ao enriquecimento sem
causa (art. 884).

 

Segundo o Min. Paulo de Tarso
Sanseverino, atualmente, o fundamento para a aplicação da teoria do
adimplemento substancial no Direito brasileiro é a cláusula geral do art. 187
do Código Civil, que permite a limitação do exercício de um direito subjetivo
pelo seu titular quando se colocar em confronto com o princípio da boa-fé
objetiva. Desse modo, esta teoria está baseada no princípio da boa-fé objetiva.
Aponta-se também como outro fundamento o princípio da função social dos
contratos.

 

A teoria do adimplemento
substancial já foi acolhida pelo STJ?

SIM. Existem julgados adotando
expressamente a teoria.

Vale ressaltar, no entanto, que
seu uso não pode ser banalizado a ponto de inverter a lógica jurídica de
extinção das obrigações. O “normal” que as partes esperam legitimamente é que
os contratos sejam cumpridos de forma integral e regular.

Diante disso, a fim de que haja
critérios, o STJ afirma que são necessários três requisitos para a aplicação da
teoria:

a) a existência de expectativas
legítimas geradas pelo comportamento das partes;

b) o pagamento faltante há de ser
ínfimo em se considerando o total do negócio;

c) deve ser possível a
conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de
pleitear a quantia devida pelos meios ordinários.

STJ. 4ª Turma. REsp 1581505/SC,
Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 18/08/2016.

 

Na Inglaterra, onde surgiu a
teoria, “os autores ingleses formularam três requisitos para admitir a substantial performance: (a)
insignificância do inadimplemento; (b) satisfação do interesse creditório; (c)
diligência por parte do devedor no desempenho de sua prestação, ainda que a
mesma se tenha operado imperfeitamente” (RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da
vontade e teoria da imprevisão
. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006).

 

Importante destacar que o STJ
considera que essa teoria não deve ser aplicada nos casos envolvendo alienação
fiduciária em garantia:

Não se aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos
de alienação fiduciária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69.

STJ. 2ª Seção. REsp 1622555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para
acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 22/2/2017 (Info 599). 

Artigo Original em Dizer o Direito

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