É válida a cláusula que prevê a prorrogação automática da fiança em caso de prorrogação do contrato principal?


Imagine a
seguinte situação hipotética:

A empresa “JJ
Ltda.” celebrou contrato de mútuo com determinado banco. Por meio desse
ajuste, o banco emprestou 100 mil reais à empresa que utilizou tais recursos
como capital de giro para seu negócio.

João figurou no
contrato como fiador do empréstimo.

O que é
fiança?

Fiança é um tipo de
contrato por meio do qual uma pessoa (chamada de “fiadora”) assume o
compromisso junto ao credor de que ela irá satisfazer a obrigação assumida pelo
devedor, caso este não a cumpra (art. 818 do Código Civil).

Logo, João, ao assinar
o contrato na condição de fiador, forneceu ao banco uma garantia pessoal (uma caução fidejussória): “se a
empresa JJ não pagar o que deve, pode cobrar a dívida de mim”.

Características
do contrato de fiança

a) Acessório:
pressupõe a existência de um contrato principal. Em nosso exemplo, o contrato
principal é a abertura de crédito e a fiança é um ajuste acessório a esse.

b) Formal:
afirma-se que a fiança é um contrato formal porque exige a forma escrita (art.
819 do CC). Logo, não é válida a fiança verbal. Contrato formal é diferente de
solene. A fiança é formal (precisa de forma escrita), mas não é solene, já que
não exige escritura pública.

c) Gratuito ou
benéfico
: na grande maioria dos casos, a fiança é gratuita, considerando
que o fiador não terá nenhuma prestação em seu favor, nada recebendo em troca
da garantia prestada. Vale ressaltar, no entanto, que é possível que o fiador
seja remunerado por esse serviço e, então, o contrato passa a ser oneroso
(fiança onerosa). É o caso, por exemplo, da fiança bancária na qual o banco
aceita ser fiador de determinada pessoa em troca de uma remuneração por conta
disso.

d) Subsidiário:
em regra, a fiança é subsidiária porque depende de inexecução do contrato
principal. Todavia, é possível (e muito comum) que haja a previsão da cláusula
de solidariedade na qual o fiador renuncia ao benefício de ordem e assume o
compromisso de poder ser diretamente acionado em caso de dívida.

e) Unilateral:
em regra, a fiança gera obrigação apenas para o fiador (satisfazer o credor
caso o devedor não cumpra a obrigação). Normalmente, nem o credor nem o devedor
possuem obrigações para com o fiador. Exceção: na fiança remunerada, o devedor
tem a obrigação de pagar uma quantia ao fiador por ele ter oferecido esse
serviço.

f) Não admite
interpretação extensiva
: as cláusulas do contrato de fiança devem ser
interpretadas restritivamente. Assim, em caso de dúvida sobre a interpretação
das cláusulas, a exegese deverá ser feita em favor do fiador. Isso se justifica
porque a fiança, em regra, é um contrato gratuito. Logo, não seria justo que,
por meio de interpretações extensivas, o fiador assumisse obrigações que ele
não expressamente aceitou no pacto escrito. Desse modo, o fiador responde
somente por aquilo que declarou no contrato de fiança. Ex: Ricardo assinou
contrato de fiança afirmando que pagaria os alugueis caso Fabiano (locatário)
ficasse em atraso. Fabiano pagou todos os alugueis, mas, após a devolução do
apartamento, o locador percebeu que ele deixou a bancada de mármore da cozinha
quebrada. Se o contrato de fiança não mencionava a responsabilidade do fiador
por avarias no imóvel, não será possível que o locador cobre essa despesa de
Ricardo.

Contrato de
mútuo bancário tinha vigência determinada

O contrato bancário possuía
uma cláusula de vigência de 1 ano, ou seja, vigorava até o dia 05/05/2012.

Havia, contudo, uma
cláusula prevendo expressamente a possibilidade de prorrogação automática da
fiança caso houvesse também a prorrogação do contrato principal.

No dia 05/05/2012, a
empresa JJ não conseguiu pagar o empréstimo e, por isso, o contrato de mútuo
foi prorrogado por mais 6 meses.

Essa prorrogação foi
ajustada e assinada pelo representante legal da empresa e pelo banco. João
não  participou dessa prorrogação.

6 meses depois, a
empresa novamente não conseguiu quitar a dívida e o banco ajuizou execução
contra a pessoa jurídica e também contra João. Este último se defendeu alegando
que:

• para a fiança
continuar válida, seria necessário que ele tivesse anuído expressamente com a
prorrogação;

• a fiança não admite
interpretação extensiva;

• a cláusula que prevê
a prorrogação automática é abusiva e, portanto, nula de pleno direito.

O banco
poderá cobrar a dívida do fiador? O contrato de fiança ainda está em vigor?
Essa cláusula de prorrogação automática da fiança é válida?

SIM. É
lícita (e, portanto, válida) cláusula em contrato de mútuo bancário que preveja
expressamente que a fiança prestada prorroga-se automaticamente com a
prorrogação do contrato principal.

STJ.
2ª Seção. REsp 1.253.411-CE, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em
24/6/2015 (Info 565).

Em regra, a fiança não
se estende além do período de tempo previsto no contrato. Justamente por isso,
para que a fiança seja prorrogada, é preciso a concordância expressa do fiador.
Sobre o tema, o STJ editou, inclusive, um enunciado: Súmula 214-STJ: O fiador
na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não
anuiu.

No entanto, o STJ
decidiu que é válido que o contrato preveja uma cláusula dizendo que, em caso
de prorrogação do contrato principal, a fiança (pacto acessório) também será
prorrogada.

Havendo
expressa e clara previsão contratual da manutenção da fiança, em caso de
prorrogação do contrato principal, o pacto acessório também é prorrogado
automaticamente, seguindo a sorte do principal.

Essa cláusula não viola o art. 819 do CC, que afirma que a fiança não
pode ser interpretada extensivamente?

NÃO. Realmente, na
fiança não se admite a interpretação extensiva de suas cláusulas. No entanto,
no caso acima explicado não houve interpretação extensiva.

“Não admitir
interpretação extensiva” significa que o fiador deve responder, exatamente,
por aquilo que declarou no instrumento da fiança. Ele não pode responder por
nada a mais do que aquilo que ele aceitou no contrato de fiança.

Na situação concreta, o
fiador concordou com todos os termos do contrato, inclusive com a cláusula que
previa a prorrogação automática da fiança em caso de prorrogação do contrato
principal.

Logo, a cláusula era muito
clara e o fiador aceitou. Ao aplicar essa cláusula de prorrogação automática
não se está fazendo interpretação extensiva. Ao contrário, está sendo
interpretada a cláusula literalmente.

Mas o fiador
ficará “preso” para sempre a esse contrato?

NÃO.
Ele tem o direito de, no período de prorrogação contratual, notificar o credor
afirmando que não mais deseja ser fiador. A isso se dá o nome de “notificação resilitória”,
estando prevista no art. 835 do CC:

Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança
que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando
obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a
notificação do credor.

Observação
final:

Ressalte-se que, no
caso concreto acima explicado, a avença principal não envolvia relação
contratual de consumo, pois cuidava-se de mútuo mediante o qual se obteve
capital de giro para o exercício de atividade empresarial. Existe, contudo, um
precedente da 4ª Turma aplicando o mesmo entendimento para os casos de contrato
de consumo sob o argumento de que não se trata de cláusula abusiva (art. 51 do
CDC) (STJ. 4ª Turma. REsp 1.374.836-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado
em 3/10/2013. Info 534).

Artigo Original em Dizer o Direito

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