Era uma vez um crime: as principais discussões sobre a abolitio criminis no STJ


Era uma vez um crime: as principais discussões sobre a abolitio criminis no STJ




08/05/2022 07:00
08/05/2022 07:00
04/05/2022 20:29


Tão humano quanto o crime é o sentimento de justiça que clama por punição. Em artigo intitulado Liberdade, igualdade e fraternidade: alguns reflexos do lema da Revolução Francesa no Processo Penal, o ministro Rogerio Schietti Cruz registra a lição do penalista italiano Francesco Carrara segundo a qual punir é o “destino da humanidade”.

No entanto, as transformações culturais no decurso do tempo conduzem a mudanças em relação às condutas que a sociedade considera merecedoras de punição.

A legislação penal brasileira prevê expressamente a hipótese de uma conduta deixar de ser enquadrada como crime devido à edição de norma revogadora superveniente. De acordo com o caput do artigo 2º do Código Penal (CP), ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de tipificar como crime. Nesse caso, deve haver a cessação da execução e dos efeitos de eventual sentença condenatória.

Entre os exemplos mais mencionados de delitos alcançados pela chamada abolitio criminis no Brasil estão o adultério e a sedução de mulher virgem entre 14 e 18 anos de idade – ambos os tipos penais foram revogados pela Lei 11.106/2005. Ao longo de sua história, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem sendo provocado, em várias ocasiões, a se manifestar sobre a aplicação do instituto da abolitio criminis.

Esta reportagem especial apresenta as principais decisões do STJ em matéria de abolitio criminis, compiladas pela corte nas publicações Jurisprudência em Teses e Pesquisa Pronta.

Crime de posse ilegal de arma de fogo

No âmbito da revogação de norma penal, o questionamento mais comumente feito ao Tribunal da Cidadania diz respeito ao termo final da abolitio criminis temporária instituída pelo Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) para que os possuidores e proprietários de armas de fogo em situação irregular providenciassem o seu registro.

A Súmula 513 consolidou na corte superior o entendimento de que, mesmo após a alteração promovida no Estatuto do Desarmamento por meio da Lei 11.706/2008, permanece válida até 23 de outubro de 2005 a suspensão da vigência da norma incriminadora da conduta de possuir arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado – edição 102 de Jurisprudência em Teses.

Um dos precedentes que deu origem à súmula foi o recurso especial (REsp 1.311.408) de um homem condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) por deter irregularmente, até 2006, uma pistola com o número raspado.

A controvérsia foi julgada sob o rito dos repetitivos (Tema 596). Por unanimidade, a Terceira Seção negou o pedido de absolvição do réu. O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, concluiu que o novo prazo implementado pela Lei 11.706/2008 – e posteriormente prorrogado pela Lei 11.922/2009 – para a abolição temporária do crime de posse ilegal de arma de fogo é aplicável somente ao armamento de uso permitido cuja numeração se encontre preservada.

O artigo 30 da Lei 10.826/2003, na nova redação, continuou a prever uma abolitio criminis para que se procedesse à regularização da arma, por meio do seu registro. Contudo, diferentemente da redação original, mencionou expressamente que a benesse dizia respeito ao proprietário ou possuidor de arma de fogo de uso permitido”, afirmou o relator do repetitivo.

Segundo Sebastião Reis Júnior, o lapso temporal da abolitio criminis para quem detém armamento de uso restrito, proibido ou com identificação numérica prejudicada encerrou-se em 23 de outubro de 2005, termo final da prorrogação dos prazos elencados na redação original dos artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento.

Sobre os efeitos da entrega espontânea de arma de fogo, o ministro entendeu que o artigo 32 da Lei 10.826/2003, a partir da redação atual, estabeleceu uma causa permanente de exclusão da punibilidade no tocante à posse irregular do armamento.

Crimes contra a honra por meio da imprensa

Conforme a edição 130 de Jurisprudência em Teses, é consensual no STJ a compreensão de que a não recepção da Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967) pela Constituição Federal não implicou abolitio criminis dos delitos contra a honra cometidos por meio da imprensa.

Com esse fundamento, a Quinta Turma denegou, por unanimidade, o habeas corpus (HC 287.819) de um promotor de Justiça do Ministério Público do Pará (MPPA) que pedia o afastamento de majorante e a suspensão da pena restritiva de direitos imposta em razão da prática do crime de calúnia contra um procurador da mesma instituição.

De acordo com a defesa, o acórdão do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) incorreu em constrangimento ilegal devido à não aplicação do princípio da ultratividade da regra penal mais benéfica, uma vez que os fatos apontados como delituosos aconteceram na vigência da Lei de Imprensa.

Em seu voto, o ministro relator, Joel Ilan Paciornik, lembrou que, ao declarar a não recepção constitucional da Lei 5.250/1967, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130, o STF determinou que os fatos enquadrados na Lei de Imprensa fossem remetidos à tipificação constante na legislação penal comum, independentemente de quando se deu a prática criminosa.

“Não há como aplicar à espécie qualquer regra ínsita à Lei de Imprensa, com alegado fundamento em sua favorabilidade ao réu, porquanto não se cuida de conflito de leis penais e processuais no tempo, mas de estrito cumprimento da determinação de aplicação da legislação penal comum aos fatos decorrentes das relações de imprensa, exarada em sede de controle concentrado de constitucionalidade, do qual exsurgem efeitos erga omnes“, afirmou.

Crimes da legislação antidrogas

O STJ também é palco de diversas indagações referentes à abolitio criminis no universo das drogas. Quanto à posse de entorpecentes para consumo pessoal, a corte possui jurisprudência no sentido de que o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) não levou à descriminalização, mas apenas à despenalização da conduta, inexistindo, portanto, a abolitio criminis.

Com esse fundamento, a Sexta Turma decidiu, por unanimidade, denegar o habeas corpus (HC 412.614) impetrado pela Defensoria Pública paulista em favor de um condenado por roubo qualificado, cujo benefício renovado de livramento condicional havia sido revogado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em razão do cometimento do crime de posse de drogas para uso próprio no curso do primeiro período de livramento.

Em seu voto, o ministro aposentado Nefi Cordeiro, relator, observou que, de acordo com o artigo 88 do Código Penal, o réu condenado por delito durante a vigência do livramento condicional não poderá obter novamente o mesmo benefício.

Com relação à conduta que levou à revogação do livramento, o ministro destacou que o posicionamento pacífico do STJ a respeito da tipicidade da posse de drogas para uso pessoal está alinhado ao que já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

“É assente na jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, o entendimento de que a Lei 11.343/2006 não implicou abolitio criminis da conduta de possuir droga para consumo próprio, ou seja, a conduta foi apenas despenalizada pela nova Lei de Drogas, mas não descriminalizada”, explicou Nefi Cordeiro.

Crimes contra a dignidade sexual

No tocante ao debate sobre a abolitio criminis em delitos contra a dignidade sexual, a edição 151 de Jurisprudência em Teses anota que a conduta de atentado violento ao pudor permanece criminalizada mesmo após a revogação do artigo 214 do Código Penal pela Lei 12.015/2009. O entendimento consolidado pelos órgãos julgadores de direito penal do STJ é o de que o legislador reuniu em único dispositivo os delitos de atentado violento ao pudor e estupro.

Foi o que levou em consideração a Quinta Turma, por unanimidade, ao não conhecer de habeas corpus em que a defesa de um condenado pela prática forçada de conjunção carnal e outros atos libidinosos contra vítima menor de 14 anos alegava constrangimento ilegal diante da revogação do artigo 214 do CP, antes mesmo da prolação da sentença.

Ao negar a análise do pedido da defesa contra o acórdão do TJSP, o relator, Ribeiro Dantas, ressaltou que, segundo a jurisprudência do STJ, a tipificação penal do atentado violento ao pudor se mantém com fundamento no princípio da continuidade normativa.

“O delito de atentado violento ao pudor, antes tipificado no artigo 214 do Código Penal, com a reforma introduzida na legislação penal, foi aglutinado no artigo 213 do mesmo código”, assinalou o ministro, ressaltando que a Lei 12.015/2009 somente deslocou o fato criminoso para outro tipo penal, “agora cumulativo”.

Na edição 153 de Jurisprudência em Teses, é mencionada a incidência da abolitio criminis em relação ao crime de corrupção sexual de maiores de 14 e menores de 18 anos, que estava previsto na redação original do artigo 218 do Código Penal e deixou de ser tipificado com o advento da Lei 12.015/2009.

A partir desse entendimento, a Quinta Turma decidiu, por unanimidade, dar provimento a um recurso especial para reconhecer a extinção da punibilidade no caso de um professor condenado pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) por manter relações sexuais com uma aluna. O episódio ocorreu em 2002, quando a jovem tinha entre 14 e 18 anos.

De acordo com a relatora, ministra Laurita Vaz, a superveniência da modificação normativa do tipo penal da corrupção de menores conduz à aplicação, no caso, do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Ela lembrou que, além do Código Penal, a Lei 12.015/2009 alterou, em profundidade, a caracterização desse delito no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

“Verifica-se uma lacuna legislativa, em consonância com a nova sistemática para a delicada questão da tutela da dignidade sexual dos menores, no caso de prática de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com adolescente maior de 14 e menor de 18 anos, que não esteja inserido em um contexto de favorecimento de prostituição ou outra forma de exploração sexual”, comentou Laurita Vaz.

Outra tese do STJ é abordada na edição da Pesquisa Pronta a respeito do enquadramento penal da conduta de manter casa de prostituição, tratada como delito desde a redação original do artigo 229 do Código Penal.

Um dos precedentes elencados é um recurso especial de relatoria da ministra Maria Thereza de Assis Moura, no qual a Sexta Turma definiu que a manutenção de casa de prostituição continua a configurar crime mesmo após as mudanças introduzidas na legislação penal pela Lei 12.015/2009.

Por unanimidade, o colegiado entendeu que esse novo cenário legal passou a exigir a exploração sexual como elemento normativo do tipo penal descrito no artigo 229 do CP, de modo que a prática de manter estabelecimento para fins libidinosos, por si só, não mais caracteriza crime; sendo necessário, para a configuração do delito, que haja violação à liberdade das pessoas no exercício da mercancia sexual.

(Os números dos processos citados neste tópico não são divulgados em razão de segredo judicial.)

Crime de embriaguez ao volante

Em uma de suas edições, a Pesquisa Pronta aborda a jurisprudência do STJ sobre a incidência da abolitio criminis no crime de dirigir em estado de embriaguez com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, nos termos da redação dada ao caput do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) pela Lei Seca (Lei 11.705/2008).

No Recurso Especial 1.508.716, o Ministério Público gaúcho contestou a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) que absolveu um motorista flagrado em 2011 com concentração de álcool no sangue superior ao limite permitido por lei.

Para o acórdão atacado, a redação atual do caput do artigo 306 do CTB, conferida pela Lei 12.760/2012, exige, para a configuração do crime, não só a aferição do teor alcoólico, mas também a comprovação da alteração da capacidade psicomotora do condutor. No caso, a corte estadual considerou que não houve tal demonstração e, portanto, determinou a aplicação retroativa da Lei 12.760/2012, por se tratar de norma penal mais benéfica em comparação com a previsão da Lei 11.705/2008.

Ao apreciar a matéria, a Sexta Turma deu provimento ao recurso, por unanimidade. Para o colegiado, a Lei 12.760/2012 não criou hipótese de abolitio criminis em relação a fatos denunciados anteriormente à sua vigência, sendo que a norma corrente permite o emprego de outros meios de verificação do estado de embriaguez de forma alternativa, e não cumulativa com o exame de alcoolemia.

“A atual redação do artigo 306 do CTB é mais severa em relação à anterior, porque, para a configuração do delito de embriaguez ao volante, tornou desnecessária a aferição da concentração de álcool no organismo do agente apenas por exame de sangue ou teste de etilômetro”, comentou o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator.

Crime de desmatamento de área de preservação permanente

Outra edição do serviço Pesquisa Pronta reúne os precedentes do STJ responsáveis por firmar a compreensão de que inexiste abolitio criminis, a partir da sanção do atual Código Florestal (Lei 12.651/2012), quanto ao delito inscrito no artigo 38, caput, da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998): “Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção”.

Em um dos julgamentos a respeito da matéria, a Quinta Turma, por unanimidade, manteve a decisão monocrática do relator, ministro Felix Fischer, que negou provimento ao Recurso Especial 1.408.507, interposto pela Defensoria Pública da União em favor de um agricultor que praticava atividade agrossilvipastoril em Área de Preservação Permanente (APP) e teve a sentença absolutória anulada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

A defesa argumentou que o caput do artigo 61-A do Código Florestal de 2012 autoriza a continuidade de práticas agrossilvipastoris em APP. Ao rejeitar a aplicação da abolitio criminis, o ministro Fischer recordou que uma lei penal incriminadora só pode ser revogada de maneira expressa a partir da edição de outra lei.

“Verifica-se que, in casu, não houve qualquer modificação na descrição do comportamento proibido do artigo 38, caput, da Lei 9.605/1998, nem qualquer alteração substancial no complemento da norma penal em branco, de modo a caracterizar situação de abolitio criminis“, concluiu.

Fischer destacou também que o artigo 61-A da Lei 12.651/2012 exige o cumprimento de uma série de condicionantes ligadas à recomposição ambiental de imóveis rurais em área de preservação permanente para a extinção da punibilidade e a regularização das atividades agrossilvipastoris consolidadas até 22 de julho de 2008.


Fonte: STJ

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