Lei 14.038/2020: regulamenta a profissão de Historiador


Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje (18/08/2020),
a Lei nº 14.038/2020, que regulamenta a profissão de Historiador.

Em 27/04/2020,
o projeto de lei havia sido vetado com base nas seguintes razões:

“A propositura
legislativa, ao disciplinar sobre a profissão de historiador, com a imposição
de requisitos e condicionantes, ofende o direito fundamental previsto no art.
5º, XIII da Constituição da República, por restringir o livre exercício
profissional, a ponto de atingir seu núcleo essencial (v. g. RE 511.961, Rel.
Min. Gilmar Mendes, Plenário, DJe de 13/11/2009), bem como dispõe sobre
atividade vinculada à própria liberdade intelectual, artística, científica e de
comunicação, protegida e assegurada, conforme previsto no artigo 5º, IX, da
Carta Constitucional, que dispõe que ‘é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença’, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
(v. g. RE 414.426, Rel. Min. Ellen Gracie, Plenário, julgado em 1º de agosto de
2011).”

O Congresso Nacional, contudo,
decidiu rejeitar o veto e o projeto foi convertido na Lei nº 14.038/2020.

Diante disso, a pergunta
que surge é a seguinte: a Lei nº 14.038/2020 é constitucional ou não?

Penso que, em sua maior parte, a
lei é incompatível com a Constituição Federal.

Exponho abaixo as razões que me
levam a concluir dessa forma.

Livre exercício profissional

A regra
no ordenamento jurídico nacional é a da liberdade das profissões (art. 5º,
 XIII, da CF/88). Isso significa
que, em regra, é
 livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão.

Vale ressaltar, no entanto, que a
lei poderá estabelecer qualificações para o exercício do trabalho, ofício ou
profissão. É o que prevê o art. 5º, XIII, da CF/88:
 

Art. 5º (…)

XIII – é livre o exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a
lei estabelecer;

Tem-se nesse dispositivo uma reserva
legal qualificada, ou seja, a Constituição remeteu à lei o estabelecimento das
qualificações profissionais como restrições ao livre exercício profissional.

O legislador possui ampla
liberdade para estabelecer quaisquer requisitos para o exercício das
profissões?

NÃO. O STF entende que nem todos
os trabalhos, ofícios ou profissões podem ser condicionados ao cumprimento de
exigências legais para o seu exercício. Isso significa dizer que algumas
exigências que a lei faz para o exercício de determinadas profissões podem ser
declaradas inconstitucionais.

Como já mencionado, a regra é a
liberdade no exercício das profissões. Somente podem ser exigidas, pela lei, restrições
para aquelas profissões que, de alguma forma, possam trazer perigo de dano à
coletividade ou prejuízos diretos a direitos de terceiros, sem culpa das
vítimas, como a medicina e as demais profissões ligadas à área da saúde, a
engenharia, a advocacia e a magistratura, dentre outras.

Por outro lado, a lei não pode
impor restrições ao exercício de profissões que não tenham a aptidão de gerar
tais riscos.

Ex1: a Ordem
dos Músicos do Brasil afirmava que, segundo a Lei nº 3.857/80, o indivíduo
somente poderia exercer a profissão de músico se estivesse inscrito no Conselho
Profissional dos músicos. O STF entendeu que essa exigência era incompatível
com a CF/88. A atividade de músico, ainda que mal exercida, não tem potencial
de causar grande prejuízo à sociedade. Logo, trata-se de profissão que não
precisa de controle ou de autorização. Pode ser livremente exercida, mesmo por
quem não seja “formado” em uma escola ou faculdade de música. Nesse sentido:

(…) Nem todos os ofícios ou profissões podem ser
condicionadas ao cumprimento de condições legais para o seu exercício. A regra
é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode
ser exigida inscrição em conselho de fiscalização profissional. A atividade de
músico prescinde de controle. Constitui, ademais, manifestação artística
protegida pela garantia da liberdade de expressão. (…)

STF. Plenário. RE 414426, Rel. Min. Ellen Gracie,
julgado em 01/08/2011.

Ex2: o STF decidiu que a CF/88
não recepcionou o art. 4º, V, do Decreto-lei 972/69, que exige o diploma de
curso superior de jornalismo, registrado pelo Ministério da Educação, para o
exercício da profissão de jornalista. Isso porque não se exige qualificação
técnica para que a pessoa possa exercer a liberdade de expressão (STF.
Plenário. RE 511961, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 17/06/2009).

Razoabilidade e proporcionalidade
das restrições

Dessa forma, a lei que restrinja
o desempenho das profissões, especificando requisitos mínimos ao exercício de
atividades técnicas, apresenta-se como exceção à regra geral da liberdade de
exercício profissional. Essas restrições legais precisam, portanto, ser
proporcionais e necessárias e estão restritas às “qualificações profissionais”
— formação técnico/científica indispensável para o bom desempenho da atividade.

Análise da Lei

Com base nas premissas acima
expostas, penso que é inconstitucional a exigência de registro em órgão competente
para que o Historiador possa exercer sua atividade profissional, imposição que
está presente nos arts. 1º, 5º e 7º da Lei nº 14.038/2020:

Art. 1º Esta Lei regulamenta a
profissão de Historiador, estabelece os requisitos para o exercício da
atividade profissional e determina o registro em órgão competente.

Art. 5º Para o provimento e exercício
de cargos, funções ou empregos de historiador, é obrigatória a comprovação de
registro profissional nos termos do art. 7º desta Lei.

Art. 7º O exercício da profissão de
Historiador requer prévio registro perante a autoridade trabalhista competente.

Por outro lado, as demais exigências
mencionadas no art. 2º, como a necessidade de diploma superior, na forma do
art. 3º, parecem-se razoáveis e proporcionais:

Art. 2º É livre o exercício da
atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências
estabelecidas nesta Lei.

Art. 3º O exercício da profissão de
Historiador, em todo o território nacional, é assegurado aos:

I – portadores de diploma de curso
superior em História, expedido por instituição regular de ensino;

II – portadores de diploma de curso
superior em História, expedido por instituição estrangeira e revalidado no
Brasil, de acordo com a legislação;

III – portadores de diploma de
mestrado ou doutorado em História, expedido por instituição regular de ensino
ou por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a
legislação;

IV – portadores de diploma de mestrado
ou doutorado obtido em programa de pós-graduação reconhecido pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES que tenha linha de
pesquisa dedicada à História;

V – profissionais diplomados em outras
áreas que tenham exercido, comprovadamente, há mais de 5 (cinco) anos, a
profissão de Historiador, a contar da data da promulgação desta Lei.

O art. 4º, ao meu sentir, merece interpretação
conforme a Constituição no sentido de que as atribuições mencionadas nos
incisos II a VI não podem ser consideradas como privativas do Historiador.
Assim, outros profissionais também podem desempenhá-las. É o caso, por exemplo,
do jornalista, no inciso II ou do arquivista na hipótese dos incisos IV e V:

Art. 4º São atribuições dos
historiadores:

I – magistério da disciplina de
História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja
cumprida a exigência da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei de
Diretrizes e Bases da Educação – LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;

II – organização de informações para
publicações, exposições e eventos sobre temas de História;

III – planejamento, organização,
implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;

IV – assessoramento, organização,
implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;

V – assessoramento voltado à avaliação
e seleção de documentos para fins de preservação;

VI – elaboração de pareceres,
relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.

Assim, com exceção do inciso I, as
demais atribuições do art. 4º acima transcrito não são exclusivas do
Historiador, sendo inconstitucional eventual intepretação nesse sentido.

O art. 6º, em última análise, impõe
a exclusividade de que tais atribuições sejam desempenhadas por Historiadores,
o que, conforme já explicado, revela-se inconstitucional:

Art. 6º As entidades que prestam
serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de
contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados.

A expressão “serviços em História”
é excessivamente ampla e inespecífica, de forma que se mostra desproporcional a
exigência. É possível, por exemplo, imaginarmos uma entidade dedicada à edição
de publicações e à realização de eventos voltados à história do esporte. Não
faz qualquer sentido que essa entidade seja obrigada a manter historiadores
legalmente habilitados em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato.

Além disso, o art. 6º impõe essa obrigação
de maneira genérica, sem estipular maiores informações a respeito e,
principalmente, sem cominar sanção para seu descumprimento.

Desse modo, a despeito de
reconhecer e valorizar a nobre e relevantíssima profissão de Historiador, me
parece que a Lei nº 14.038/2020 não atende aos requisitos exigidos pelo STF,
sendo, portanto, inconstitucional.

Márcio André Lopes
Cavalcante

Juiz Federal. Foi Defensor
Público, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.

Artigo Original em Dizer o Direito

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