a Lei nº 14.039/2020, que insere na legislação a previsão expressa de que os
serviços prestados pelos advogados e por profissionais de contabilidade possuem
natureza técnica e singular.
envolve essa alteração legislativa.
Pública somente pode contratar obras, serviços, compras e alienações se
realizar uma licitação prévia para escolher o contratante (art. 37, XXI).
que a lei poderá especificar casos em que os contratos administrativos poderão
ser celebrados sem esta prévia licitação. A isso, a doutrina denomina
“contratação direta”.
é a contratação precedida de licitação. Contudo, a legislação poderá prever
casos excepcionais em que será possível a contratação direta, sem licitação.
Licitações (Lei nº 8.666/93) prevê três grupos de situações em que a
contratação ocorrerá sem licitação prévia. São as chamadas licitações
dispensadas, dispensáveis e inexigíveis. Vejamos o quadro comparativo abaixo:
Dispensada
|
Dispensável
|
Inexigível
|
Art.
17 |
Art.
24 |
Art.
25 |
Rol
taxativo |
Rol
taxativo |
Rol
exemplificativo |
A
lei determina a não realização da licitação, obrigando a contratação direta. |
A
lei autoriza a não realização da licitação. Mesmo sendo dispensável, a Administração pode decidir realizar a licitação (discricionariedade). |
Como
a licitação é uma disputa, é indispensável que haja pluralidade de objetos e pluralidade de ofertantes para que ela possa ocorrer. Assim, a lei prevê alguns casos em que a inexigibilidade se verifica porque há impossibilidade jurídica de competição. |
Ex.:
quando a Administração Pública possui uma dívida com o particular e, em vez de pagá-la em espécie, transfere a ele um bem público desafetado, como forma de quitação do débito. A isso chamamos de dação em pagamento (art. 17, I, “a”). |
Ex.:
compras de pequeno valor (inciso II). |
Ex.:
contratação de artista consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública para fazer o show do aniversário da cidade. |
Lei nº 8.666/93 trata sobre inexigibilidade de licitação nos seguintes termos. Vou
destacar aqui somente a hipótese do inciso II:
quando houver inviabilidade de competição, em especial:
art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a
inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
quais são esses serviços de que trata o art. 13, com especial atenção para as
situações descritas nos incisos III e V:
consideram-se serviços
técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
projetos básicos ou executivos;
em geral;
tributárias;
gerenciamento de obras ou serviços;
pessoal;
bens de valor histórico.
inexigibilidade de licitação, os contratos para a prestação de serviços
técnicos profissionais especializados deverão, preferencialmente, ser
celebrados mediante a realização de concurso, com estipulação prévia de prêmio
ou remuneração.
neste artigo aplica-se, no que couber, o disposto no art. 111 desta Lei.
técnicos especializados que apresente relação de integrantes de seu corpo
técnico em procedimento licitatório ou como elemento de justificação de
dispensa ou inexigibilidade de licitação, ficará obrigada a garantir que os
referidos integrantes realizem pessoal e diretamente os serviços objeto do
contrato.
acima transcritos querem dizer:
natureza singular, poderão ser contratados pela Administração Pública mesmo sem
licitação, desde que o contratado tenha notória especialização.
14.039/2020, advogados e profissionais de contabilidade poderiam ser contratados
pela Administração Pública sem licitação?
tese, já era possível, considerando que os serviços prestados por advogados e
por profissionais de contabilidade são considerados “serviços técnicos
profissionais especializados”, estando previstos nos incisos III e V do art. 13
da Lei nº 8.666/93:
consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos
relativos a:
técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
judiciais ou administrativas;
não basta ser um serviço técnico
profissional especializado. É necessário também que esse serviço técnico
profissional especializado tenha natureza singular e seja desempenhado por profissional ou empresa
de notória
especialização.
direta por inexigibilidade, é necessário, portanto, o preenchimento de três
requisitos cumulativos:
aqueles enumerados, exemplificativamente, no art. 13 da Lei 8.666/1993, tais
como: estudos, planejamentos, pareceres, perícias, patrocínio de causas etc.;
serviço singular: a singularidade do serviço depende da demonstração da
excepcionalidade da necessidade a ser satisfeita e da impossibilidade de sua
execução por parte de um profissional comum; e
contratado: destaque e reconhecimento do mercado em sua área de atuação, o
que pode ser demonstrado por várias maneiras (estudos, experiências,
publicações, organização, aparelhamento etc.).” (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende.
Curso de Direito Administrativo. 5ª ed., São Paulo: GEN/Método, 2017, p.
554-555)
do Tribunal de Contas da União:
competição para a contratação de serviços técnicos, a que alude o inciso II do
art. 25 da Lei nº 8.666/1993, decorre da presença simultânea de três
requisitos: serviço técnico especializado, entre os mencionados no art. 13 da
referida lei, natureza singular do serviço e notória especialização do
contratado.
14.039/2020?
da OAB (Lei nº 8.906/94) e na Lei dos Contadores (DL 9.295/46) afirmando,
expressamente, que os serviços prestados pelos advogados e profissionais de
contabilidade são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada
sua notória especialização, nos termos da lei.
inseridos:
serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e
singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.
o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua
especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências,
publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos
relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é
essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do
contrato.
por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória
especialização, nos termos da lei.
ou a sociedade de profissionais de contabilidade cujo conceito no campo de sua
especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências,
publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos
relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é
essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do
contrato.
de notória especialização inserida pela Lei nº 14.039/2020 é a mesma que já
constava no § 1º do art. 25 da Lei nº 8.666/93. Compare:
especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua
especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências,
publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros
requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho
é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do
contrato.
doutrina diziam a respeito da contratação de advogados por inexigibilidade de licitação
antes da Lei nº 14.039/2020?
que isso era possível, mas apontou alguns requisitos:
advocacia, sem licitação, deve observar os seguintes parâmetros: a) existência
de procedimento administrativo formal;
prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público;
praticado pelo mercado.
Barroso, julgado em 26/8/2014.
STJ a esse respeito:
administração pública, mediante procedimento de inexigibilidade de licitação,
deve ser devidamente justificada com a demonstração de que os serviços possuem
natureza singular e com a indicação dos motivos pelos quais se entende que o
profissional detém notória especialização.
licitação prevista no art. 25, II, da Lei n. 8.666/93 não se contenta com a
natureza técnica do serviço contratado. Exige a conjugação da natureza técnica
(art. 13) com a natureza singular e a notória especialização dos profissionais
ou empresas (art. 25, II). Assim, deve prevalecer o entendimento exposto no
decisum recorrido, e não aquele que pretende, ao arrepio da lei, generalizar a
inexigibilidade de licitação para todas as contratações de serviços
advocatícios. (…)
Francisco Falcão, julgado em 10/03/2020.
é incisivo em apontar que, em regra, a contratação de serviços advocatícios precisa
ser feita mediante licitação e que a inexigibilidade só é possível se o serviço
exigido, no caso concreto, for singular e o advogado ou
escritório contratado gozar de notória especialização. Nesse sentido, confira
excerto do voto do Ministro-Substituto Augusto Sherman Cavalcanti:
contratação de serviços advocatícios é tema pacífico nesta Corte de Contas,
cujo entendimento é a necessidade de processo licitatório para a contratação de
serviços dessa natureza, exceto quando ficar comprovada a notória
especialização e a singularidade do objeto.
análises dos diversos processos sobre esse tema existentes nesta Corte de
Contas, percebe-se que o termo notória especialização tem tido diversas
interpretações capciosas por alguns administradores públicos. Vejamos os termos
do § 1º, art. 25 da Lei 8.666/1993 ao definir Notória Especialização:
Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito
no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos,
experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de
outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu
trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do
objeto do contrato.
leitura do normativo extrai-se que é necessário, mas não suficiente, o
profissional gozar de renomado conceito profissional. Seu trabalho há de ser,
ainda, essencial e o mais adequado à administração pública.
mais, não se pode contratar por inexigibilidade um serviço comum, rotineiro e
que possa ser prestado por qualquer profissional da área, uma vez que a lei
exige, para tanto, a natureza singular do serviço (art. 25, II, Lei 8.666/1993).
Corte tem firme entendimento que serviços gerais de advocacia podem ser
desenvolvidos por inúmeros profissionais da área jurídica. A contratação em
discussão se efetivou para defesa de réus acusados de cometerem ilegalidades na
admissão de pessoal em desacordo com a Constituição Federal, concessão de
diárias em valores superiores ao previsto em norma, pagamentos de salários
superiores ao teto constitucional e aquisição e reembolso de passagens de forma
irregular. Não se está, portanto, diante de objeto singular, incomum, anômalo,
nem de notória especialização, sendo, nesse caso, imprescindível o processo
licitatório, caso fosse regular a contratação.” (Acórdão 1193/2019 – Plenário, Relator
Augusto Sherman, Tomada de Contas Especial, Data da sessão: 22/05/2019).
também faz coro às ressalvas e preocupações manifestadas pela jurisprudência:
a utilização indiscriminada deste dispositivo, muitas vezes permitida pelos órgãos
de controle. Cite-se como exemplo a contratação de serviços advocatícios de
assessoramento jurídico cotidiano; no caso daqueles serviços, a utilização
deveria se restringir àquela contratação que se alinhasse aos limites traçados
pelo legislador, não apenas no pertinente à notória especialização, tão flexibilizada
pelos gestores, mas, sobretudo, no que concerne à singularidade dos serviços
prestados. Nesse diapasão, pensamos que o patrocínio ou a defesa de causas
judiciais e administrativas, previstas no inciso V do artigo 13, do estatuto
(aquele artigo dá exemplos de serviços técnicos especializados), não devem ser
enquadrados como hipóteses de inexigibilidade, quando se referirem a assessoramento
jurídico cotidiano.
singularidade imposta pelo artigo 24 parece restringir a hipótese a serviços específicos,
delimitados e extraordinários, que requeiram a ‘expertise’ não verificada nos
quadros da administração. Nesse ponto, imperioso relembrar que os
assessoramentos jurídicos, naturais à advocacia pública, e o patrocínio ou
defesa habitual, das diversas causas judiciais propostas em favor ou em face
dos entes ou órgãos da Administração, caracterizam-se como atividades próprias
de carreira funcional. A concepção constitucional prevista no inciso II do
artigo 37, da Constituição Federal, exige o provimento de tais cargos mediante
aprovação prévia em concurso, seja pela União, Estados, Distrito Federal ou
Municípios, motivo pelo qual reputamos como impreterível a existência de quadro
de servidores de carreira, para cumprir tais atribuições.” (TORRES, Ronny Charles
Lopes de. Leis de Licitações Públicas comentadas. Salvador: Juspodivm,
2019, p. 367-368).
14.039/2020 apenas repetiu aquilo que já era amplamente reconhecido pela Lei nº
8.666/93 e pela jurisprudência. Qual foi, então, o real objetivo dessa Lei?
sutil, tentou abolir, na prática, um dos requisitos exigidos pela Lei nº
8.666/93 e pela jurisprudência: a natureza singular do serviço.
embaralha os conceitos ao afirmar que os serviços prestados por advogados e por
profissionais de contabilidade “são, por sua natureza, técnicos e
singulares, quando comprovada sua notória especialização”.
interpretação literal, o que dispositivo afirma é que o serviço desempenhado
pelo profissional deve ser considerado técnico e singular quando for comprovada
a sua notória especialização. Ocorre que não existe essa proposta relação de consequencialidade.
três conceitos distintos e autônomos:
profissionais especializados;
tenha notória especialização.
contabilidade são sempre serviços técnicos profissionais especializados.
Sempre. É da sua essência. Lei nenhuma poderia dizer o contrário. Além disso,
estão previstos expressamente no art. 13 da Lei nº 8.666/93.
sempre os serviços advocatícios e de contabilidade terão natureza singular. Imaginemos
o ajuizamento de uma execução fiscal para cobrança de IPTU. Consiste em serviço
advocatício e, portanto, tem natureza técnica profissional especializada. Por
outro lado, é um serviço de natureza comum, que nada tem de singular (único,
distinto, ímpar). Logo, não pode ser contratado diretamente sem licitação mesmo
que o escritório que seja contratado detenha notória especialização. Neste
caso, teremos duas opções:
desempenhado pela Procuradoria do Município, composta por servidores concursados,
nos termos do art. 37, II, da CF/88 (posição que reputo correta); ou
Município não está obrigado a ter Procuradoria própria (como, infelizmente,
verificados em alguns decisões – v.g., STF RE 893694 AgR), então, neste
caso, a Administração Pública teria que contratar o advogado ou escritório por
meio de licitação, considerando que o art. 25, II, da Lei nº 8.666/93 não está
cumprido já que se trata de serviço comum.
14.039/2020 levaria à conclusão de que se os serviços advocatícios e de
contabilidade fossem realizados por profissional ou sociedade com notória
especialização, automaticamente estaria dispensada a licitação. Essa interpretação,
contudo, é inconstitucional e afronta a própria definição de inexigibilidade. A
inexigibilidade de licitação ocorre quando a competição não é possível. Se o
serviço de advocacia ou contabilidade é comum (não singular), existe a
possibilidade de competição e, portanto, não há razões jurídicas ou morais para
se evitar a licitação, instituto que existe não apenas para atender a um
comando constitucional expresso, como também para garantir a moralidade e a impessoalidade
na Administração Pública.
de lei havia sido vetado, em 08/01/2020, sob o seguinte fundamento:
legislativa, ao considerar que todos os serviços advocatícios e contábeis são,
na essência, técnicos e singulares, viola o princípio constitucional da
obrigatoriedade de licitar, nos termos do inciso XXI, do art. 37 da
Constituição da República, tendo em vista que a contratação de tais serviços
por inexigibilidade de processo licitatório só é possível em situações
extraordinárias, cujas condições devem ser avaliadas sob a ótica da
Administração Pública em cada caso específico, conforme entendimento do Supremo
Tribunal Federal (v.g. lnq. 3074-SC, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma,
DJe 193, de 3-10-2014)”.
decidiu rejeitar o veto, razão pela qual o projeto aprovado tornou-se lei.
vigor na data de sua publicação (18/08/2020).
Cavalcante
Público, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.