Blockchain: tecnologia usada em moedas digitais pode ser opção para Poder Judiciário


Uma das mais avançadas tecnologias já inventadas. É isso que define o blockchain, usado para as transações de moedas digitais em todo o planeta, a exemplo do bitcoin. E se essa tecnologia pudesse ser utilizada pelo Poder Judiciário, polícias civis dos estados, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Defensoria Pública e Ministérios Públicos na guarda de provas de crimes e na tramitação online dos processos judiciais até o seu julgamento?

Essa é uma possibilidade, que, num futuro não muito distante, pode ser usada pelo Estado Brasileiro. Assim diz o delegado da Polícia Civil de Goiás e especialista em crimes cibernéticos Vytautas Fabiano Silva Zumas.  O assunto foi tema da palestra do delegado no “Simpósio sobre Crimes Cibernéticos no Contexto da Justiça Militar da União (JMU)”, organizado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados da Justiça Militar da União (Enajum), nesta terça-feira (3). O evento, contextualizado na expansão dos crimes cibernéticos no cenário contemporâneo, está sendo feito na modalidade presencial, na sede da Escola, em Brasília (DF).

Segundo Zumas, a tecnologia guarda em seus protocolos diversas vantagens, que muito bem poderia diminuir sensivelmente com os problemas e desafios hoje enfrentados por órgãos de segurança pública e do Poder Judiciário que mal conseguem custodiar e compartilhas provas criminais. Some-se a isso os crimes e casos cometidos usando a rede mundial de computadores.

As vantagens, segundo o especialista, são as mesmas utilizadas na custódia das moedas digitais, como a integridade, a rastreabilidade, a autenticidade, a incorruptibilidade e a verificabilidade. Mais que isso, a tecnologia blockchain, que é uma técnica de registro de informações entre maquinas em rede, tem base de dados onde as informações são armazenadas de  forma segura e compartilhada. “Um ataque a uma das máquinas de armazenamento ou em várias delas, não comprometeria as informações guardadas, porque todas as outras dispõem das mesmas informações”.

Além disso, o blockchain, criada em 2009 para minerar a moeda digital bitcoin, pode ser uma ferramenta ímpar  ao ser aplicada na cadeia de custódia, fundamentalmente pela sua automação do processo, base de dados distribuídas em vários pontos, rastreabilidade e a joia da coroa, que seria a  interoperabilidade entre os participantes.

“Hoje se a Polícia Civil não digitalizar um documento não consegue subir uma simples prova no sistema eletrônico do Poder Judiciário. Com o blockchain isso acabaria. Tudo será automatizado e disponibilizado aos participantes em questão de segundos, com muita transparência e segurança nos registros”.

Para o delegado de Goiás, o sistema blockchain pode solucionar vários problemas dentro do sistema de segurança pública e de justiça. Perguntado se o Conselho Nacional de Justiça ou outro órgão do Poder Judiciário tem a intenção de implantar a nova tecnologia, Vytautas Fabiano Silva Zumas disse que desconhecia. “Até porque o assunto é novíssimo. Para sua implantação há muitos desafios, principalmente o desejo e o comprometimento de cada participante. Mas, diferentemente da mineração da moeda bitcoin, a implantação do blockchain no Estado brasileiro não seria cara. Não tenho cifras, mas um simples computador  de uma repartição pode ser capaz de fazer a mineração”, diz.

Provas nos crimes cibernéticos

Logo pela manhã, o evento foi aberto pelo promotor de Justiça do Distrito Federal, Flavio Milhomem, especialista em crimes cibernéticos. Segundo o promotor, as provas de crimes digitais nunca podem estar sozinhas e sem amparo dentro de um processo criminal. Elas têm que estar dentro de um contexto probatório, entre tantas, colhidas durante a investigação. “Isso é muito relevante nas investigações de cibercrimes. Um print fora de contexto é praticamente imprestável”.

Milhomem explicou que há crimes cibernéticos próprios e impróprios. O primeiro são aqueles que já nascem “digitalizados”, que necessitam de uma tecnologia para ocorrer, como o “phishing”, uma espécie de malwere que induz a vítima a cair em golpes.  Os crimes digitais impróprios, por outro lado, são aqueles que já existem no mundo do crime, mas podem ser aplicados usando a web como canal, a exemplo de um estelionato, da perseguição ou stalking, do sigilo funcional e da denúncia caluniosa.

No aspecto de investigação e de tramitação processual, o promotor explicou que usa um check list, no seu trabalho diário,  antes de analisar qualquer prova digital, em especial na análise de hardwares. “É um erro da autoridade pública, durante uma busca e apreensão de um computador, por exemplo, já ir desligando o equipamento, pois provas temporárias importantes, como os cookies e outras informações podem ser perdidas para sempre. Ademais, há outra vertente que podem interferir, inclusive na integridade. No local há algum aparelho magnético?  Se isso não foi verificado e anotado pelo técnico, pode inclusive resultar em anulação de provas ou, no mínimo, de contestação  à defesa”, diz.    

O promotor também diferenciou a web, a deep web e dark web. A primeira é aquela que o público comum acessa sem qualquer restrição, como para ler uma matéria de um jornal ou passar um e-mail. Já na deep web os dados correm sob controle de acesso, como as informações da Receita Federal ou de um banco e, finalmente, a dark web, que é aquela “sem controle”, onde os IPs são usados de forma aleatória por hackers e onde são cometidos grande parte de crimes de difícil rastreamento como pornografia infantil, tráfico de drogas e terrorismo. “Mas a polícia e os Estados têm ferramentas para investigar os crimes da dark web  e chegar aos seus autores, usando também da tecnologia avançada, como a engenharia reversa durante as  perícias ou o uso de ferramentas finas como o famoso “Tor”, poderoso robô israelense usado para sondar criminosos na dark web. Esta rede obscura, em conjunto com a deep web, representa mais de 96% do tráfego diário na grande Internet.

Competência territorial e o cibercrime sem fronteira

Para além dos enormes desafios que o Poder Judiciário encontra hoje no país, com um número cada vez mais extenso de processos judiciais para analisar e decidir, o cibercrime, que vem crescendo de forma exponencial nos últimos anos, em especial durante a pandemia da Covid-19, tem adicionado uma dose a mais de sufoco: encontrar e definir a competência para processar e julgar crimes cibernéticos.  O tema foi tratado e discutido pela juíza federal da Justiça Militar da União Mariana Queiroz Aquino e pelo procurador do estado do Rio de Janeiro Marcos Antônio dos Santos Rodrigues.

Um crime de calúnia contra uma pessoa moradora de Recife, cometido por acusados residentes nas cidades de São Paulo, Porto Alegre e Campo Grande, qual o juízo competente para apreciar o caso? E aqueles em que há várias vítimas, em cidades distintas, e que a ação dos algozes também ocorreu em diversas cidades e estados?

São questões ainda não pacificadas pelos tribunais superiores e que causam muitas controvérsias e conflitos. A juíza diz que o Código de Processo Penal Militar (CPPM) é claro em definir que o juízo competente é aquele em que ocorre a última ação criminosa. Mas fez questão de lembrar: e quando há ocorrência de crimes militares no ciberespaço, onde essa última ação criminosa pode também ocorrer em diversos lugares simultâneos?

A magistrada levantou diversas jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para exemplificar o tamanho do desafio a ser enfrentado pelo Poder Judiciário nos dias atuais. Uma das decisões do STJ diz respeito a um blog jornalístico que veiculou ofensa por difamação. A decisão da Corte foi de que o juízo competente fosse aquele do local do provedor do Blog e não o da cidade de residência da vítima ou dos autores do Blog. Em outra decisão, aquele STJ decidiu que uma ofensa de racismo, cometido via rede social, deveria ocorrer na sede do juízo onde houve a ação, ou seja, na cidade onde morava o autor. Como se percebe até mesmo a jurisprudência ainda não está amadurecida o suficiente para apaziguar a matéria.

As mesmas dificuldades tem enfrentado a Justiça Militar da União. Jurisprudência do STM decidiu que uma mulher, civil, que foi atendida por um dentista da Base Aérea de Fortaleza (CE), e que depois mandou e-mail ao comandante do quartel queixando-se do profissional, mas proferindo diversos xingamentos, tivesse a ação penal apreciada pela Justiça Militar, porque o conhecimento da ofensa se deu dentro das instalações da Base Aérea. Da mesma forma decidiu a Corte que  um militar que tirou foto de uma tenente, em Fortaleza, fazendo chacota da oficial que usava tênis com o uniforme camuflado, mesmo com a grande repercussão negativa em vários grupos de Whatsapp espalhados em várias cidade do país, deveria ocorrer no juízo militar da capital cearense.  

Para a juíza Mariana Aquino, outra saída não há, senão os operadores do direito se debruçarem sobre a matéria, estudarem exaustivamente, se especializarem, analisarem e discutirem os casos para que se possa chegar a um bom termo.

 

 

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