Conflito de atribuições entre MPF e MPE deve ser dirimido pelo CNMP


Conflito de competência

Quando dois órgãos jurisdicionais
divergem sobre quem deverá julgar uma causa, dizemos que existe, neste caso, um
conflito de competência.

Obs: o CPP denomina esse fenômeno
de “conflito de jurisdição” (arts. 113 a 117), expressão, contudo, bastante
criticada pela doutrina e jurisprudência porque a jurisdição no Brasil é uma
só, sendo exercida por qualquer juiz e Tribunal. O que se divide é a
competência, que cada juízo possui a sua.

Exemplo de conflito de
competência

Foi instaurado inquérito
policial, que estava “tramitando” na Justiça Estadual, com o objetivo de apurar
determinado crime.

Ao final do procedimento, o
Promotor de Justiça requereu a declinação da competência para a Justiça
Federal, entendendo que estava presente a hipótese do art. 109, IV, da CF/88.

O Juiz de Direito concordou com o
pedido e remeteu os autos para a Justiça Federal.

O Juiz Federal deu vista ao
Procurador da República, que entendeu em sentido contrário ao Promotor de
Justiça e afirmou que não havia interesse direto e específico da União que
justificasse o feito ser de competência federal.

O Juiz Federal concordou com o
Procurador da República e suscitou conflito de competência.

Este conflito deverá ser dirimido
pelo Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, I, “d”, da
CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal
de Justiça:

I – processar e julgar,
originariamente:

d) os conflitos de competência entre
quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, “o”, bem
como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos;

Conflito de atribuições

No exemplo acima, os membros do
Ministério Público discordaram entre si. No entanto, essa discordância não
ficou limitada a eles e foi também encampada pelos juízes. Logo, em última
análise, tivemos um conflito de competência, ou seja, um conflito negativo
entre dois órgãos jurisdicionais.

Algumas vezes, no entanto, os
membros do Ministério Público instauram investigações que tramitam no âmbito da
própria instituição. Neste caso, em regra, tais procedimentos não são levados
ao Poder Judiciário, salvo no momento em que irá ser oferecida a denúncia ou se
for necessária alguma medida que dependa de autorização judicial (ex:
interceptação telefônica).

A regra geral, no entanto, é que
os procedimentos de investigação conduzidos diretamente pelo MP tramitem
exclusivamente no âmbito interno da Instituição.

Ex: um Promotor de Justiça
instaurou, no MPE, procedimento de investigação para apurar crimes relacionados
com um cartel mantido por donos de postos de combustíveis. Ocorre que o
Procurador da República também deflagrou, no âmbito do MPF, um procedimento
investigatório para apurar exatamente o mesmo fato. Temos, então, dois membros
diferentes do Ministério Público investigando o mesmo fato. Vale ressaltar que
nenhum deles formulou qualquer pedido judicial, de sorte que o Poder Judiciário
não foi provocado e os procedimentos tramitam apenas internamente.

Neste caso, indaga-se: se dois
membros do Ministério Público divergem sobre quem deverá atuar em uma
investigação, como isso é chamado? Teremos aqui também um conflito de competência?

NÃO. Neste caso, teremos um
CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES.

“O conflito de atribuições não se
confunde com o conflito de competência. Cuidando-se de ato de natureza
jurisdicional, o conflito será de competência; tratando-se de controvérsia
entre órgãos do Ministério Público sobre ato que caiba a um deles praticar,
ter-se-á um conflito de atribuições.” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de
Processo Penal.
8ª ed., Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1239).

Obs: mais uma vez, chamo atenção
para o fato de que só existe conflito de atribuições se a divergência ficar
restrita aos membros do Ministério Público. Se os juízes encamparem as teses
dos membros do MP, aí eles estarão discordando entre si e teremos, no caso, um
“falso conflito de atribuições” (expressão cunhada por Guilherme de
Souza Nucci). Diz-se que há um falso conflito de atribuições porque, na
verdade, o que temos é um conflito entre dois juízes, ou seja, um conflito de
competência.

Conflito de atribuições pode se
dar tanto em matéria criminal como cível

Apesar de os exemplos acima
fornecidos envolverem a investigação de crimes, é importante esclarecer que o
conflito de atribuições poderá ocorrer também em apuração de infrações cíveis,
como o caso de improbidade, meio ambiente, consumidor e outros direitos difusos
e coletivos.

Ex: um Promotor de Justiça e um
Procurador da República divergem quanto à atribuição para a condução de
inquérito civil que investiga suposto superfaturamento na construção de
conjuntos habitacionais com recursos financeiros liberados pela Caixa Econômica
Federal e oriundos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A
Procuradoria da República no Paraná entendeu que esta atribuição seria do
Promotor de Justiça, mas o MPE discordou e considerou que a apuração seria do
MPF, já que envolvia recursos oriundos da CEF (STF ACO 924).

Caso haja um conflito de
atribuições entre membros do Ministério Público, quem irá decidir qual dos dois
órgãos irá atuar?

Depende. Podemos identificar
quatro situações diferentes:

SITUAÇÃO 1

Se o conflito se dá entre Promotores de
Justiça do Ministério Público de um mesmo Estado (ex: Promotor de Justiça de
Iranduba/AM e Promotor de Justiça de Manaus/AM):


Neste caso, a divergência será
dirimida pelo respectivo Procurador-Geral de Justiça. Veja:

Lei nº 8.625/93

Art. 10. Compete ao Procurador-Geral
de Justiça:

X – dirimir conflitos de atribuições
entre membros do Ministério Público, designando quem deva oficiar no feito;

SITUAÇÃO 2

Se o conflito se dá entre Procuradores
da República (ex: um Procurador da República que oficia em Manaus/AM e um
Procurador da República que atua em Boa Vista/RR)
:


Nesta hipótese, o conflito será
resolvido pela Câmara
de Coordenação e Revisão
(órgão colegiado do MPF), havendo possibilidade
de recurso para o Procurador-Geral da República. Confira:

LC 75/93

Art. 62. Compete às Câmaras de
Coordenação e Revisão:

VII – decidir os conflitos de
atribuições entre os órgãos do Ministério Público Federal.

Art. 49. São atribuições do
Procurador-Geral da República, como Chefe do Ministério Público Federal:

VIII – decidir, em grau de recurso, os
conflitos de atribuições entre órgãos do Ministério Público Federal;

SITUAÇÃO 3

Se o conflito se dá entre integrantes de
ramos diferentes do Ministério Público da União (ex: um Procurador da República
e um Procurador do Trabalho)
:


O conflito será resolvido pelo Procurador-Geral da República:

LC 75/93

Art. 26. São atribuições do
Procurador-Geral da República, como Chefe do Ministério Público da União:

VII – dirimir conflitos de atribuição entre
integrantes de ramos diferentes do Ministério Público da União;

SITUAÇÃO 4

Se o conflito se dá entre Promotores de
Justiça de Estados diferentes (ex: Promotor de Justiça do Amazonas e Promotor
de Justiça do Acre)? Se o conflito se dá entre um Promotor de Justiça e um
Procurador da República (ex: Promotor de Justiça do Amazonas e Procurador da
República que oficia em Manaus/AM)?

Posição adotada até 2016: STF

Afirmava que este conflito de
atribuições deveria ser dirimido pelo próprio STF.

O Ministério Público é um órgão.
Seus membros também são órgãos. Um Promotor de Justiça é um órgão estadual. Um
Procurador da República é um órgão da União.

Se dois Promotores de Justiça de
Estados diferentes estavam divergindo sobre a atuação em uma causa, o que nós
tínhamos era uma divergência entre dois órgãos de Estados diferentes.

Se um Promotor de Justiça e um
Procurador da República discordavam sobre quem deveria atuar no caso, o que nós
tínhamos era uma dissonância entre um órgão estadual e um órgão federal.

Logo, nestas duas situações, quem
deveria resolver este conflito seria o STF, conforme previsto no art. 102, I, “f”,
da CF/88:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal
Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar,
originariamente:

f) as causas e os conflitos entre a
União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros,
inclusive as respectivas entidades da administração indireta;

Posição adotada de 2016 até junho
de 2020: PGR

Neste período, o STF passou a
decidir que a competência para dirimir estes conflitos de atribuição seria do Procurador-Geral da República:

Compete
ao PGR, na condição de órgão nacional do Ministério Público, dirimir conflitos
de atribuições entre membros do MPF e de Ministérios Públicos estaduais.

STF.
Plenário. ACO 924/PR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19/5/2016 (Info 826).

Posição atual: CNMP

O STF mudou novamente de posição
e agora entende que:

Compete ao CNMP dirimir conflitos
de atribuições entre membros do MPF e de Ministérios Públicos estaduais.

STF. Plenário. ACO 843/SP, Rel. para
acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 05/06/2020.

Essa nova posição representa o
acolhimento, pelo STF, de uma tese institucional defendida pelos Ministérios
Públicos estaduais que não concordavam com o entendimento de que a competência
para dirimir esse conflito seria do PGR.

A nova posição foi capitaneada
pelo Min. Alexandre de Moraes, que apresentou os seguintes argumentos:

“Discordo, entretanto, do
encaminhamento do conflito de atribuição para o Procurador-Geral da República,
enquanto autoridade competente, pois é parte interessada na solução da demanda
administrativa, uma vez que acumula a Chefia do Ministério Público da União com
a chefia de um de

seus ramos, o Ministério Público
Federal, nos termos da LC 75/1993.

(…)

(…) constitucionalmente, o
Ministério Público abrange duas grandes Instituições, sem que haja qualquer
relação de hierarquia e subordinação entre elas (STF, RE 593.727/MG – Red.
p/Acórdão Min. GILMAR MENDES): (a) Ministério Público da União, que compreende
os ramos: Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios;
(b) Ministério Público dos Estados.

Não há, portanto, hierarquia
entre o Ministério Público da União ou qualquer de seus ramos específicos e os
Ministérios Públicos estaduais (…)

Com tal premissa, não parece ser
mais adequado que, presente conflito de atribuição entre integrantes do
Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal, o impasse acabe
sendo resolvido monocraticamente por quem exerce a chefia de um deles, no caso
o Procurador-Geral da República.

(…)

A interpretação sistemática da
Constituição Federal, após a edição da EC 45/2004, aponta como mais razoável e
compatível com a própria estrutura orgânica da Instituição reconhecer no
Conselho Nacional do Ministério Público a necessária atribuição para solucionar
os conflitos de atribuição entre seus diversos ramos, pois,
constitucionalmente, tem a missão precípua de realizar o controle de atuação
administrativa e financeira do Ministério Público.

Assim, no âmbito interno e
administrativo, não tendo vinculação direta com qualquer dos ramos dos
Ministérios Públicos dos entes federativos, mas sendo por eles composto, o CNMP
possui isenção suficiente para definir, segundo as normas em que se estrutura a
instituição, qual agente do Ministério Público tem aptidão para a condução de
determinado inquérito civil, inclusive porque, nos termos do § 2º do art.
130-A, é sua competência o controle da atuação administrativa do Ministério
Público e do

cumprimento dos deveres
funcionais de seus membros, cabendo-lhe, inclusive, zelar pela autonomia
funcional e administrativa do Ministério Público, bem como pela legalidade dos
atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da
União e dos Estados, entre eles, aqueles atos que deram ensejo ao conflito de
atribuições.

A interpretação sistemática dos
preceitos constitucionais da Instituição, portanto, aponta a competência do
Conselho Nacional do Ministério Público para dirimir essa modalidade de
conflito de atribuição com fundamento no artigo 130-A, § 2º, e incisos I e II,
da Constituição Federal.

Com amparo nesses preceitos
constitucionais, estaria o referido órgão colegiado, ao dirimir o conflito de
atribuição, exercendo o controle da atuação administrativa do Ministério
Público e, ao mesmo tempo, zelando pela autonomia funcional e independência da
instituição.

A solução de conflitos de
atribuições entre ramos diversos dos Ministérios Públicos pelo CNMP é a mais
adequada, pois reforça o mandamento constitucional que lhe atribuiu o controle
da legalidade das ações administrativas dos membros e órgãos dos diversos ramos
ministeriais, sem ingressar ou ferir a independência funcional.”

Entendimento vale tanto para
conflitos entre MPE e MPF como também para conflitos entre Promotores de
Estados diferentes

Vale ressaltar que o caso
apreciado pelo STF dizia respeito a um conflito de atribuições entre um
Procurador da República e um Promotor de Justiça. No entanto, pelos debates
entre os Ministros, percebe-se que a solução adotada vale também para os
conflitos envolvendo Promotores de Justiça de Estados-membros diferentes.

Se dois Promotores de Justiça de
Estados diferentes divergirem quanto à atuação em um caso, este conflito de
atribuições será dirimido pelo CNMP.

Resumindo:

QUEM
DECIDE O CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES ENTRE MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO?

SITUAÇÃO

QUEM IRÁ DIRIMIR

MPE
do Estado 1 x MPE do Estado 1

Procurador-Geral
de Justiça do Estado 1

MPF
x MPF

CCR,
com recurso ao PGR

MPU
(ramo 1) x MPU (ramo 2)

Procurador-Geral
da República

MPE x MPF

CNMP

MPE do Estado 1 x MPE do Estado 2

CNMP

Inexistência de vinculação para o
Poder Judiciário

Vale, por fim, uma observação. O
Poder Judiciário não fica vinculado à decisão do CNMP.

Assim, suponhamos que, em um
conflito de atribuições, o CNMP afirme que a atribuição para investigar e
denunciar o réu é do Procurador da República.

Diante disso, o Procurador da
República oferece denúncia na Justiça Federal. O Juiz Federal estará livre para
reapreciar o tema e poderá entender que a competência não é da Justiça Federal,
declinando a competência para a Justiça Estadual. Caso o Juiz de Direito
concorde, seguirá no processamento do feito. Se discordar, deverá suscitar conflito
de competência a ser dirimido pelo STJ (art. 105, I, “d”, da CF/88).

O certo é que a decisão do CNMP produz
efeitos vinculantes apenas interna
corporis
, sendo uma decisão de cunho administrativo, não vinculando os
juízos que irão apreciar a causa.

Artigo Original em Dizer o Direito

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.