Governadores no banco dos réus, boate Kiss e Pacote Anticrime foram alguns dos destaques da pauta criminal do STJ
Em 2021, processos contra governadores estiveram entre os principais destaques da pauta de direito penal do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em fevereiro, a Corte Especial recebeu, por unanimidade, a denúncia contra o então governador afastado do Rio de Janeiro Wilson Witzel por supostas irregularidades na contratação de hospitais de campanha e na compra de respiradores e medicamentos para o combate à Covid-19 (processo sob segredo judicial).
Em maio, após a condenação de Witzel por crime de responsabilidade no âmbito do Tribunal Especial Misto, o ministro Benedito Gonçalves – relator de inquéritos e ações penais que têm o ex-governador como investigado, denunciado ou réu – reconheceu a perda da competência do STJ para os processos e determinou a remessa dos autos para a 7ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro (processo sob segredo judicial).
O magistrado concluiu que não persiste nenhuma autoridade com foro por prerrogativa de função na corte superior, nem por continência, nem por conexão.
Mais governadores investigados
Além do governador cassado Wilson Witzel, em setembro, a Corte Especial tornou réu o chefe do governo do Amazonas, Wilson Lima. Ele é acusado de liderar organização criminosa que teria efetuado a compra superfaturada de respiradores destinados ao tratamento de vítimas da Covid-19 no estado.
O colegiado também recebeu denúncia contra o vice-governador do Amazonas, Carlos Alberto Filho, e outras 12 pessoas – entre elas, ex-secretários estaduais, servidores públicos e empresários.
Em seu voto, acompanhado de forma unânime, o relator da ação penal, ministro Francisco Falcão, entendeu não ser o caso de desmembramento do processo em relação aos réus que não têm prerrogativa de foro, pois a manutenção integral dos autos no STJ favorece a busca da verdade e evita a prolação de decisões conflitantes.
No mês seguinte, a Corte Especial referendou, por unanimidade, a decisão monocrática do ministro Mauro Campbell Marques determinando o afastamento, pelo prazo de 180 dias, do governador do Tocantins, no curso de duas investigações policiais complementares que apuram a formação de organização criminosa voltada para fraudes contra o plano de saúde dos servidores estaduais.
Além da suspensão do exercício da função do governador e de outros agentes públicos, o colegiado manteve as medidas de proibição de acesso dos investigados a determinados locais e o impedimento de contato com outras pessoas investigadas, também como forma de preservar a apuração dos fatos.
Operação Faroeste
Outra investigação de grandes proporções em análise na corte superior é a Operação Faroeste, que apura suposto esquema de venda de decisões judiciais para favorecer a grilagem de terras no Oeste baiano.
Em fevereiro, decisão unânime da Corte Especial prorrogou, por um ano, o afastamento de quatro desembargadores e dois juízes do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA).
Em junho, o relator, ministro Og Fernandes, revogou a prisão preventiva da desembargadora do TJBA Lígia Maria Ramos Cunha Lima, alvo da Faroeste. Ela, porém, ficou afastada do cargo e foi proibida de manter contato com outros investigados e de sair da comarca, além de ter que usar tornozeleira eletrônica.
Em setembro, ao rejeitar uma série de recursos interpostos por investigados na Operação Faroeste, a Corte Especial definiu que não há ilegalidade na convocação de juiz de primeiro grau para atuar em ação penal contra réu que ocupa o cargo de desembargador.
Um mês depois, o ministro relator da Faroeste no STJ, Og Fernandes, revogou a prisão preventiva decretada contra o empresário Adailton Maturino dos Santos, mas manteve a segregação cautelar do juiz do TJBA Sérgio Humberto de Quadros Sampaio.
Em dezembro, a Corte Especial prorrogou, pelo período de 12 meses, o afastamento de outra investigada, a promotora do Ministério Público baiano Ediene Santos Lousado.
Boate Kiss
Ainda entre os casos criminais de maior visibilidade, em novembro, a Sexta Turma anulou decisão de primeiro grau que ampliou o tempo de debates orais no tribunal do júri para o julgamento popular sobre o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS). O julgamento, realizado em Porto Alegre, terminou no dia 10 de dezembro, com a condenação dos quatro réus.
Considerando o rigor formal do procedimento do júri e em razão da falta de consenso entre as partes, o relator do habeas corpus no STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, avaliou não ser possível ao magistrado de primeira instância fixar prazos diversos daqueles definidos pela legislação.
“Não obstante, nada impede que, no início da sessão de julgamento, mediante acordo entre as partes, seja realizada uma adequação do tempo dos debates, que melhor se ajuste às peculiaridades do caso em questão”, ponderou o relator ao votar pela concessão do habeas corpus, no que foi acompanhado por unanimidade.
No mesmo mês, o ministro Schietti negou o pedido da defesa do ex-produtor Luciano Augusto Bonilha Leão – um dos réus no julgamento do caso da boate Kiss – para que mais advogados pudessem atuar simultaneamente no plenário, durante a sessão do tribunal do júri. Segundo o relator, as limitações estabelecidas pelo juiz que preside o júri foram necessárias devido às restrições de espaço físico e em razão da pandemia de Covid-19.
Massacre do Carandiru
Em outro processo de grande repercussão no direito penal, em agosto, a Quinta Turma negou o recurso da defesa, por unanimidade, ficando mantida a decisão monocrática do ministro Joel Ilan Paciornik que restabeleceu a condenação de policiais militares acusados pelo massacre do Carandiru (processo sob segredo judicial).
No agravo regimental contra a decisão do relator, a defesa dos policiais alegou que o julgamento monocrático, dando provimento a recurso do Ministério Público para modificar a conclusão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), teria promovido o reexame de provas do processo – o que não é admitido pela Súmula 7 do STJ.
Em seu voto, o ministro Paciornik assinalou que a jurisprudência da corte admite a anulação do julgamento do tribunal do júri apenas quando a decisão dos jurados for absolutamente divorciada das provas dos autos. De acordo com o magistrado, se os jurados optam por uma das versões apresentadas – e essa versão tem amparo nas provas –, deve ser preservada a decisão do tribunal popular.
Para chegar a essa compreensão, acrescentou o relator, “bastou a leitura dos atos decisórios, razão pela qual o provimento do recurso especial não esbarra no óbice da Súmula 7 do STJ”.
Desastre ambiental de Brumadinho
No mês de outubro, a Sexta Turma reconheceu a competência da Justiça Federal de Minas Gerais para julgar a ação penal contra Fábio Schvartsman, ex-presidente da Vale, em razão da tragédia de Brumadinho (MG), ocorrida em 2019. Como consequência, o colegiado anulou decisão da Justiça mineira que havia recebido a denúncia contra o ex-dirigente da mineradora por homicídio e vários crimes ambientais.
Por unanimidade, os ministros entenderam que o interesse da União no caso tem relação, entre outros fatores, com as atribuições da Agência Nacional de Mineração (ANM) e com os possíveis danos a sítios arqueológicos causados pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão.
O relator, desembargador convocado Olindo Menezes, considerou aplicável a Súmula 122 do STJ, segundo a qual compete à Justiça Federal o julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não incidindo a regra do artigo 78, inciso II, alínea “a”, do Código de Processo Penal (CPP).
Pacote Anticrime
Durante o ano, a seção de direito penal do STJ uniformizou a interpretação de dispositivos da Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote ou Lei Anticrime – diploma legal que completará dois anos de vigência em janeiro de 2022.
Em fevereiro, por maioria de votos, a Terceira Seção decidiu que, com a entrada em vigor da Lei Anticrime, não é mais possível a conversão da prisão em flagrante em preventiva sem provocação do Ministério Público, da autoridade policial, do assistente ou do querelante, mesmo nas situações em que não é realizada a audiência de custódia.
De acordo com o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, a Lei 13.964/2019, ao suprimir a expressão “de ofício” que havia no artigo 282, parágrafo 2º, e no artigo 311 do CPP, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem prévia solicitação das partes legitimadas – não sendo mais possível, portanto, a atuação de ofício do juiz no tocante à privação cautelar da liberdade.
“A prisão preventiva não é uma consequência natural da prisão em flagrante; logo, é uma situação nova que deve respeitar o disposto, em especial, nos artigos 311 e 312 do CPP”, explicou Sebastião Reis Júnior.
Em março, a Terceira Seção, por maioria de votos, definiu que a exigência de representação no crime de estelionato não retroage a ações iniciadas antes do Pacote Anticrime (HC 610.201).
Em seu voto, o ministro relator, Ribeiro Dantas, lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou no sentido de ser inaplicável a retroatividade do parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal às hipóteses em que o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019.
No mês de maio, em julgamento sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.084), a seção de direito penal estabeleceu critérios para a progressão penal de condenados com reincidência genérica, à luz das novidades trazidas pela Lei Anticrime.
Por unanimidade, o colegiado acompanhou o voto do relator do repetitivo, ministro Rogerio Schietti Cruz, para assentar que, diante da ausência de previsão legal de parâmetros para a progressão de regime prisional dos condenados por crime hediondo ou equiparado que sejam reincidentes genéricos, deve ser aplicado retroativamente para eles o mesmo percentual de cumprimento de pena exigido dos sentenciados primários: 40%.
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Ainda no âmbito do Pacote Anticrime, a disciplina acrescentada ao CPP por meio da inclusão dos artigos 158-A a 158-F serviu de fundamento para a Sexta Turma estabelecer que a quebra da cadeia de custódia não implica, de maneira obrigatória, a inadmissibilidade ou a nulidade da prova colhida.
Por maioria de votos, prevaleceu o entendimento do ministro Rogerio Schietti Cruz de que, nessas hipóteses, eventuais irregularidades devem ser observadas pelo juízo ao lado dos demais elementos produzidos na instrução criminal, a fim de decidir se a prova questionada continua sendo confiável. Só após essa confrontação é que o magistrado, caso não encontre sustentação na prova cuja cadeia de custódia foi violada, pode retirá-la dos autos ou declará-la nula.
Execução penal
Outra frente de interpretação do STJ no direito penal, ao longo de 2021, consistiu nas decisões em matéria de cumprimento da pena. Em decisão colegiada inédita do tribunal, no mês de junho, a Quinta Turma confirmou decisão monocrática do ministro Reynaldo Soares da Fonseca que concedeu habeas corpus para que seja contado em dobro todo o período em que um homem esteve preso em situação degradante no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, no Complexo Penitenciário de Bangu (RJ).
A unidade prisional objeto do recurso em habeas corpus sofreu diversas inspeções realizadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a partir de denúncia feita pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Essa foi a primeira vez que uma turma criminal do STJ se valeu do princípio da fraternidade para decidir pelo cômputo da pena de maneira mais benéfica ao condenado que é mantido preso em local desumano.
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Além das condições degradantes, interfere na contagem da pena o período de recolhimento domiciliar com tornozeleira eletrônica. Esse foi o posicionamento unânime adotado pela Terceira Seção, em abril, ao definir que é possível a aplicação do benefício da detração (artigo 42 do Código Penal) para o desconto da pena no caso de cumprimento da medida cautelar de recolhimento domiciliar cumulada com monitoração eletrônica.
“Interpretar a legislação que regula a detração de forma que favoreça o sentenciado harmoniza-se com o princípio da humanidade, que impõe ao juiz da execução penal a especial percepção da pessoa presa como sujeito de direitos”, afirmou em seu voto a ministra relatora, Laurita Vaz.
Sob a sistemática dos recursos repetitivos, a seção de direito penal fixou a tese de que o não pagamento da multa, na hipótese de condenação cumulativa com pena privativa de liberdade, não impede a extinção da punibilidade para o condenado que comprovar a impossibilidade de fazê-lo.
Na decisão, unânime, o colegiado revisou o entendimento firmado anteriormente no Tema 931. Para o relator do repetitivo, ministro Rogerio Schietti Cruz, essa nova interpretação significa para o condenado sem condições financeiras “a reconquista de sua posição como indivíduo aos olhos do Estado”, permitindo-lhe reconstruir sua vida “sob as balizas de um patamar civilizatório mínimo”.
Ações policiais
O ano de 2021 também foi marcado pela definição de entendimentos sobre os limites legais das diligências policiais. Em outubro, por unanimidade, a Sexta Turma concluiu que a polícia pode entrar em quarto de hotel para apurar suspeita de tráfico de drogas, mesmo sem autorização judicial ou consentimento do hóspede, caso existam indícios suficientes de que o local é utilizado para a prática do delito.
De acordo com o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a jurisprudência do STF assevera que o quarto de hotel, por ser espaço privado, é qualificado como casa – desde que ocupado. Assim, o espaço também está protegido pelo princípio constitucional da inviolabilidade domiciliar, salvo a presença de razões concretas que indiquem que a conduta criminosa está sendo praticada no local, ou está prestes a acontecer.
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No mês de junho, em outro precedente envolvendo situação semelhante, a Sexta Turma considerou ilegal a entrada forçada de policiais – sem investigação prévia e mandado judicial – em uma casa para a apuração de crime de tráfico de entorpecentes.
Audiência de custódia
Entre os destaques criminais no STJ em 2021, houve também um conflito de competência em que a Terceira Seção assentou, por unanimidade, ser possível a realização de audiência de custódia em comarca diversa do local da prisão. A relatoria foi da ministra Laurita Vaz, que, ao proferir seu voto, levou em consideração os princípios da razoabilidade e da celeridade processual.
A relatora lembrou que, de fato, conforme a jurisprudência do tribunal, a audiência de custódia deve ser realizada na localidade em que ocorreu a prisão. Entretanto, salientou que, no caso analisado, o investigado – preso no Paraná – já havia sido conduzido à comarca do juízo que determinou a busca e apreensão, em Santa Catarina.
Uso de aplicativos na citação
Em março, a Quinta Turma decidiu que, assim como no processo civil, é possível admitir, na esfera penal, a utilização de aplicativo de mensagens – como o WhatsApp – para o ato de citação, desde que sejam adotados todos os cuidados para comprovar a identidade do destinatário. Essa autenticação deve ocorrer por três meios principais: o número do telefone, a confirmação escrita e a foto do citando.
O acórdão unânime foi relatado pelo ministro Ribeiro Dantas. Segundo o magistrado, não é possível “fechar os olhos para a realidade”, excluindo, de forma peremptória, a possibilidade do emprego de aplicativo no decorrer da prática de comunicação processual penal.
Segundo o relator, ao permitir a troca de arquivos de texto e de imagens, a tecnologia possibilita ao oficial de Justiça aferir a autenticidade da identidade do destinatário de forma quase tão precisa quanto presencialmente.
Excesso de habeas corpus
Um importante desafio atual enfrentado pela jurisdição penal do STJ reside no elevado número de habeas corpus, o que motivou os ministros da Sexta Turma a manifestarem publicamente a sua preocupação com o problema durante sessão de julgamentos realizada em outubro.
Na ocasião, o ministro Rogerio Schietti revelou que, de janeiro a agosto deste ano, os colegiados criminais do Tribunal da Cidadania foram destinatários de cerca de 7.500 processos relativos a HCs e RHCs por julgador. No mesmo período, o número de decisões monocráticas e colegiadas foi de, aproximadamente, 12 mil por ministro.
A ministra Laurita Vaz classificou esse cenário como “desproporcionalidade que salta aos olhos” e reforçou a necessidade de análise prioritária dos feitos que, efetivamente, exigem mais urgência em sua apreciação.
O ministro Sebastião Reis Júnior ressaltou que a elevada carga de processos e os seus impactos na atividade jurisdicional devem ser objeto de reflexão, não só no Poder Judiciário, mas também no Ministério Público e na advocacia. “Precisamos verificar em que pontos estamos errando e o que podemos fazer para melhorar a situação que estamos passando. Todas as instituições precisam reconhecer a sua parcela de responsabilidade”, resumiu o magistrado.
O ministro Antonio Saldanha Palheiro também enfatizou que a realidade enfrentada pelo STJ impõe a necessidade de uma administração criteriosa dos julgamentos, com a definição de preferência para os casos urgentes.