Inviolabilidade de domicílio
A CF/88
prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:
XI – a casa é asilo inviolável do
indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em
caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o
dia, por determinação judicial;
A inviolabilidade do domicílio é uma
das expressões do direito à intimidade do indivíduo.
Entendendo o inciso XI:
Só se pode
entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes
hipóteses:
Durante o DIA |
Durante a NOITE |
• Em caso de flagrante delito; • Em caso de desastre; • Para prestar socorro; • Para cumprir determinação judicial (ex: busca e |
• Em caso de flagrante delito; • Em caso de desastre; • Para prestar socorro.
|
Assim, guarde isso: não se pode
invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir ordem judicial.
O que é considerado
“dia”?
Não há uma unanimidade.
Há os que defendem o critério
físico-astronômico, ou seja, dia é o período de tempo que fica entre o
crepúsculo e a aurora.
Outros sustentam um critério
cronológico: dia vai das 6h às 18h.
Existem, ainda, os que sustentam
aplicar o parâmetro previsto no CPC, que fala que os atos processuais serão
realizados em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas.
O mais seguro é só cumprir a
determinação judicial após as 6h e até as 18h.
O que se entender por
“casa”?
O conceito é amplo e abrange:
a) a casa, incluindo toda a sua
estrutura, como o quintal, a garagem, o porão, a quadra etc.
b) os compartimentos de natureza
profissional, desde que fechado o acesso ao público em geral, como escritórios,
gabinetes, consultórios etc.
c) os aposentos de habitação
coletiva, ainda que de ocupação temporária, como quartos de hotel, motel,
pensão, pousada etc.
Veículo é considerado casa?
Em regra, não. Assim, o veículo,
em regra, pode ser examinado mesmo sem mandado judicial.
Exceção: quando o veículo é
utilizado para a habitação do indivíduo, como ocorre com trailers, cabines de caminhão, barcos etc.
Flagrante delito
Vimos acima que, havendo flagrante
delito, é possível ingressar na casa mesmo sem consentimento do morador, seja
de dia ou de noite.
Um
exemplo comum no cotidiano é o caso do tráfico de drogas. Diversos verbos do
art. 33 da Lei nº 11.343/2006 fazem com que este delito seja permanente:
Art. 33. Importar, exportar, remeter,
preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo
ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar:
Assim, se a casa do traficante funciona
como boca-de-fumo, onde ele armazena e vende drogas, a todo momento estará
ocorrendo o crime, considerando que ele está praticando os verbos “ter em
depósito” e “guardar”.
Diante disso, havendo suspeitas de que
existe droga em determinada casa, será possível que os policiais invadam a
residência mesmo sem ordem judicial e ainda que contra o consentimento do
morador?
SIM. No entanto, no caso concreto,
devem existir fundadas razões que indiquem que ali está sendo cometido um crime
(flagrante delito). Essas razões que motivaram a invasão forçada deverão ser
posteriormente expostas pela autoridade, sob pena de ela responder nos âmbitos
disciplinar, civil e penal. Além disso, os atos praticados poderão ser
anulados.
O STF possui uma tese fixada sobre o tema:
A entrada forçada em domicílio sem
mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em
fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que
dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos
praticados.
STF. Plenário. RE
603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral
– Tema 280) (Info 806).
O STJ também possui alguns julgados a
respeito do assunto:
A existência de denúncia anônima da
prática de tráfico de drogas somada à fuga do acusado ao avistar a polícia, por
si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no
domicílio do acusado sem o seu consentimento ou sem determinação judicial.
STJ. 5ª Turma. RHC
89.853-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/02/2020 (Info
666).
STJ. 6ª Turma. RHC
83.501-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 06/03/2018 (Info
623).
O ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização
judicial, em caso de flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja
fundadas razões (justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior
da residência.
A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo
agente, embora pudesse autorizar abordagem policial em via pública para
averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em
seu domicílio, sem o seu consentimento e sem determinação judicial.
STJ. 6ª Turma. REsp 1574681-RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz,
julgado em 20/4/2017 (Info 606).
Abuso de autoridade
Veja o
novo crime inserido pela Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade):
Art. 22. Invadir ou adentrar,
clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel
alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem
determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro)
anos e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena, na forma
prevista no caput deste artigo, quem:
I – coage alguém, mediante violência ou
grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;
II – (VETADO);
III – cumpre mandado de busca e
apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco
horas).
§ 2º Não haverá crime se o ingresso for
para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a
necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de
desastre.
Vale
ressaltar, no entanto, que, para a configuração do delito, é indispensável a
presença do dolo acrescido de elemento subjetivo especial, nos termos do art.
1º, § 1º da Lei nº 13.869/2019:
Art. 1º (…)
§ 1º As condutas descritas nesta Lei
constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a
finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a
terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
Imagine agora a seguinte
situação hipotética:
Os policiais se deslocaram para o
bairro Bom Jesus para verificar “denúncias anônimas”, recebidas pelo “disque
denúncia”, de que estaria sendo praticado tráfico de drogas.
Ao chegarem no local, encontraram
João na frente de uma casa.
Os policiais fizeram busca
pessoal em João, mas não encontraram substância entorpecente.
Em seguida, os policiais
perguntaram onde ficava a casa de João, tendo ele indicado.
Os policiais alegaram que João
autorizou a entrada na residência para fins de busca e apreensão e que, ao
revistarem o local, encontram grande quantidade de drogas escondida no armário.
João foi preso em flagrante e
denunciado por tráfico de drogas.
Em seu interrogatório judicial, o
réu negou veementemente que tenha autorizado a entrada dos policiais.
Essa apreensão foi lícita?
NÃO. O STJ entendeu que a busca
foi ilícita, assim como todas as provas dela derivadas. Isso porque não houve
comprovação de consentimento válido para o ingresso no domicílio do réu.
Na hipótese de suspeita de
flagrância delitiva, qual a exigência, em termos de standard probatório*, para
que policiais ingressem no domicílio do suspeito sem mandado judicial?
Para garantir a devida proteção
da garantia constitucional à inviolabilidade do domicílio, os policiais deverão
adotar as seguintes providências:
1) Autorização assinada pelo
morador e por testemunhas
Os policiais deverão obter a
autorização assinada pelo morador afirmando que permite a entrada, indicando,
ainda, o nome de testemunhas que atestem que o morador consentiu com a entrada
e que acompanhem a busca realizada. Isso deve ser registrado em auto
circunstanciado.
Tal providência, aliás, já é determinada pelo art. 245, §
7º, do CPP, que prevê:
Art. 245. As buscas domiciliares serão executadas de
dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de
penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a
quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta.
(…)
§ 7º Finda a diligência, os executores
lavrarão auto circunstanciado, assinando-o com duas testemunhas presenciais,
sem prejuízo do disposto no § 4º.
Embora esse dispositivo se refira
ao cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar, por óbvio ele também
deve se aplicar para qualquer forma de busca e apreensão efetuada pelo Estado
em domicílios de suspeitos, com ou sem mandado judicial.
2) A diligência deverá ser
integralmente registrada em vídeo e áudio
Além disso, será de fundamental
importância que se registre, em vídeo e áudio, toda a diligência, especialmente
nas situações em que, por ausência justificada do formulário ou por
impossibilidade qualquer de sua assinatura, seja indispensável comprovar o
livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar.
A prova da legalidade e da voluntariedade do
consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de
dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que
autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas
do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e
preservada a prova enquanto durar o processo.
STJ. 6ª Turma. HC 598.051/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz,
julgado em 02/03/2021 (Info 687).
Principais conclusões do
STJ:
1) Na hipótese de suspeita de
crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para
ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de
fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente
justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de
flagrante delito.
2) O tráfico ilícito de
entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente,
nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se
encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência,
quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se
possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria
droga) será destruída ou ocultada.
3) O consentimento do morador,
para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão
de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer
tipo de constrangimento ou coação.
4) A prova da legalidade e da
voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe,
em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa
que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas
do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e
preservada tal prova enquanto durar o processo.
5) A violação a essas regras e
condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta
na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais
provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual
responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a
diligência.
Prazo de 1 ano para
adaptações
O Min. Relator propôs e a 6ª
Turma concordou com a fixação do prazo de 1 (um) ano para permitir o
aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para
a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a evitar situações de
ilicitude, que, entre outros efeitos, poderá implicar responsabilidade
administrativa, civil e/ou penal do agente estatal, à luz da legislação vigente
(art. 22 da Lei 13.869/2019), sem prejuízo do eventual reconhecimento, no exame
de casos a serem julgados, da ilegalidade de diligências pretéritas.
* O que são standards de
prova?
Standards de prova “são critérios
que estabelecem o grau de confirmação probatória necessário para que o julgador
considere um enunciado fático como provado” (BADARÓ, Gustavo H. Epistemologia
judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019, p. 236).