Servidor que recebe indevidamente valores da
Administração Pública em razão de interpretação errônea da lei (Tema 531): “erro
de direito”

Servidor público recebe valores
por força de decisão administrativa; posteriormente, essa decisão é revogada
porque ela foi baseada em uma interpretação equivocada da lei; o servidor será obrigado
a devolver as quantias recebidas?

NÃO.

É incabível a restituição ao erário dos valores recebidos de
boa-fé pelo servidor público em decorrência de errônea ou inadequada
interpretação da lei por parte da Administração Pública.

Quando a Administração Pública interpreta erroneamente uma lei,
resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa de
que os valores recebidos são legais e definitivos, impedindo, assim, que ocorra
desconto, ante a boa-fé do servidor público.

Em virtude do princípio da legítima confiança, o servidor
público, em regra, tem a justa expectativa de que são legais os valores pagos
pela Administração Pública, porque jungida à legalidade estrita.

Assim, diante da ausência da comprovação da má-fé no recebimento
dos valores pagos indevidamente por erro de direito da Administração, não se
pode efetuar qualquer desconto na remuneração do servidor público, a título de
reposição ao erário.

STJ. 1ª Seção. REsp 1.244.182-PB, Rel. Min. Benedito Gonçalves,
julgado em 10/10/2012 (Recurso Repetitivo – Tema 531).

 

Exemplo:

É aprovada uma lei criando gratificação
para os servidores de determinado órgão público.

A Administração Pública passa a
pagar a gratificação a todos os servidores daquele órgão.

Ocorre que, posteriormente, constata-se
que a interpretação foi equivocada e que a gratificação só é devida aos
servidores que estejam nas atividades de efetiva fiscalização (“atividades em
campo”), não sendo aplicada aos servidores que estejam desempenhando funções meramente
administrativas.

Diante disso, o poder público deverá
suspender os novos pagamentos, mas não poderá cobrar dos servidores a devolução
dos valores já pagos, considerando que o pagamento foi feito em razão de errônea
interpretação da lei por parte da Administração Pública (erro de direito), não
havendo má-fé dos servidores que receberam.

 

Posição da AGU e do TCU

O Tema 531/STJ está em conformidade com
a Súmula 34 da Advocacia Geral da União – AGU:

Súmula 34-AGU: Não estão sujeitos à repetição os valores
recebidos de boa-fé pelo servidor público, em decorrência de errônea ou
inadequada interpretação da lei por parte da Administração Pública.

 

Vale a pena conhecer também o
entendimento do TCU, que é parecido com o do STJ, apesar de um pouco mais
rigoroso ao exigir que o erro seja escusável:

Súmula 249 do TCU: É dispensada a reposição de importâncias
indevidamente percebidas, de boa-fé, por servidores ativos e inativos, e
pensionistas, em virtude de erro escusável de interpretação de lei por parte do
órgão/entidade, ou por parte de autoridade legalmente investida em função de
orientação e supervisão, à vista da presunção de legalidade do ato
administrativo e do caráter alimentar das parcelas salariais.

 

Servidor que recebe indevidamente valores da
Administração Pública em razão de erro administrativo (Tema 1009): “erro de
fato”

Servidor público recebe valores da
Administração Pública; posteriormente, constata-se que o pagamento foi indevido
e que ocorreu em razão de um erro operacional da Administração; em regra, o
servidor será obrigado a devolver as quantias recebidas?

O pagamento indevido feito ao servidor público e que
decorreu de erro administrativo está sujeito à devolução, salvo se o servidor, no
caso concreto, comprovar a sua boa-fé objetiva.

Os pagamentos indevidos aos servidores públicos
decorrentes de erro administrativo (operacional ou de cálculo), não embasado em
interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, estão sujeitos à
devolução, ressalvadas as hipóteses em que o servidor, diante do caso concreto,
comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era
possível constatar o pagamento indevido.

STJ. 1ª
Seção. REsp 1.769.306/AL, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 10/03/2021
(Recurso Repetitivo – Tema 1009) (Info 688).

 

Possibilidade encontra-se
prevista na lei

A possibilidade de exigir do servidor a devolução das quantias
pagas encontra-se prevista no art. 46, caput, da Lei nº 8.112/90:

Art. 46. As reposições e indenizações
ao erário, atualizadas até 30 de junho de 1994, serão previamente comunicadas
ao servidor ativo, aposentado ou ao pensionista, para pagamento, no prazo
máximo de trinta dias, podendo ser parceladas, a pedido do interessado.

 

Trata-se de disposição legal
expressa, plenamente válida, embora com interpretação dada pela jurisprudência
com alguns temperamentos, especialmente em observância aos princípios gerais do
direito, como boa-fé.

 

Diferença em relação à
interpretação errônea

Diferentemente dos casos de
errônea ou má aplicação de lei, onde o elemento objetivo é, por si, suficiente
para levar à conclusão de que o beneficiário recebeu o valor de boa-fé,
assegurando-lhe o direito da não devolução do valor recebido indevidamente, na
hipótese de erro material ou operacional deve-se analisar caso a caso, de modo
a averiguar se o servidor tinha condições de compreender a ilicitude no
recebimento dos valores, de modo a se lhe exigir comportamento diverso, diante
do seu dever de lealdade para com a Administração Pública.

Impossibilitar a devolução dos valores recebidos
indevidamente por erro perceptível da Administração Pública, sem a análise do
caso concreto da boa-fé objetiva, permitiria o enriquecimento sem causa por
parte do servidor, em flagrante violação do art. 884 do Código Civil:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa,
se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente
auferido, feita a atualização dos valores monetários.

 

Por tudo isso, não há que se
confundir erro na interpretação de lei com erro operacional, de modo que àquele
não se estende o entendimento fixado no Recurso Especial Repetitivo nº 1.244.182/PB
(Tema 531), sem a observância da boa-fé objetiva do servidor público, o que
possibilita a restituição ao Erário dos valores pagos indevidamente decorrente
de erro de cálculo ou operacional da Administração Pública.

 

· Interpretação
errônea da lei (Tema 531): o elemento objetivo, ou seja, as circunstâncias
fáticas já permitem concluir que o servidor público agiu de boa-fé. Existe,
portanto, uma presunção de que o servidor estava de boa-fé. Se até a Administração
Pública equivocou-se na intepretação da lei, não é razoável que esse erro de
direito fosse questionado pelo servidor.

· Erro
administrativo (Tema 1009): em princípio, a devolução é devida. Mas, o servidor
pode demonstrar, no caso concreto, que não tinha condições de perceber a
ilicitude no recebimento dos valores.

 

Exemplo 1:

João é servidor público e ocupava
função de confiança pela qual recebia uma gratificação de R$ 5 mil.

O servidor deixou a função e, portanto,
a gratificação não mais tem sido paga a ele há alguns meses.

Ocorre que houve uma falha no sistema
que gera a folha de pagamentos e, em razão disso, a ordem de pagamento da gratificação
foi reinserida.

Assim, João recebeu R$ 5 mil a
mais no mês. Ao examinar o seu contracheque, verificou que ali constava
novamente a gratificação pelo exercício da função que já havia deixado.

Neste caso, houve um pagamento indevido
decorrente de erro administrativo (da espécie erro operacional). Ressalte-se
que não se trata de interpretação errônea ou equivocada da lei pela
Administração. Foi uma falha operacional.

O servidor público terá que devolver
os valores recebidos porque, no caso concreto, era plenamente possível que ele
tivesse constatado o pagamento indevido.

 

Exemplo 2:

Pedro é servidor público há
muitos anos.

Ficou reconhecido que Pedro deveria
ter recebido valores da Administração Pública e que não foram pagos no período
certo. Diante disso, foi realizado um acordo e Pedro recebe todos os meses parcelas
desse acordo até que a dívida esteja totalmente satisfeita.

Ocorre que o valor recebido mensalmente
varia, considerando que é pago com base em cálculos que levam em consideração a
correção monetária e juros aplicáveis.

Assim, todos os meses, o
departamento de pessoal calcula os juros e efetua o pagamento dessas verbas atrasadas.

Constatou-se, contudo, que,
durante 1 ano, o departamento de pessoal pagou, mensalmente, R$ 150,00 a mais ao
servidor porque os juros foram calculados incorretamente. Houve, portanto, um
erro administrativo (da espécie erro de cálculo).

Neste caso, o servidor público poderá
facilmente demonstrar a sua boa-fé objetiva a fim de não ter que devolver os
valores recebidos. Isso porque ele não tinha como constatar que os cálculos –
que são complexos e não aparecem no contracheque – estavam sendo feitos de forma
equivocada.

 

Posição do STF

Vale ressaltar que o STF não
distingue muito bem as duas situações na sua jurisprudência. Veja alguns julgados
da Corte sobre o tema:

 

Servidor que recebe indevidamente
valores da administração pública em razão de interpretação errônea da lei (julgados
do STF)

As
quantias percebidas pelos servidores em razão de decisão administrativa
dispensam a restituição quando:

a)
auferidas de boa-fé;

b) há
ocorrência de errônea interpretação da Lei pela Administração;

c) ínsito
o caráter alimentício das parcelas percebidas, e

d)
constatar-se o pagamento por iniciativa da Administração Pública, sem
ingerência dos servidores beneficiados.

STF. 1ª Turma.
MS 31244 AgR-segundo, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 22/05/2020.

 

O STF
firmou entendimento no sentido de que, atendidos os pressupostos estabelecidos
pelo TCU e pela jurisprudência da Corte – boa-fé do servidor; ausência de
influência, pelo servidor, na concessão da vantagem; existência de dúvida
plausível sobre a interpretação, validade ou incidência da norma infringida;
interpretação razoável, embora errônea, da lei pela Administração – descabe a
restituição de valores percebidos indevidamente.

STF. 2ª Turma. MS 34243
AgR, Rel.
Edson Fachin, julgado em 07/03/2017.

 

Servidor que recebe indevidamente
valores da administração pública em razão de erro operacional (julgado do STF)

(…) 3.
Servidor Público Estadual. Verba recebida a maior. Pagamento espontâneo do Ente
Público decorrente de erro operacional. Servidor de boa-fé. Impossibilidade de
restituição. Precedentes. 4. Ausência de argumentos capazes de infirmar a
decisão agravada. (…)

STF. 2ª Turma.
ARE 1203420 AgR, Rel. Gilmar Mendes, julgado em 16/08/2019.

 

 

Herdeiro de servidor que recebe valores da Administração
Pública decorrente de erro operacional

Imagine a seguinte situação
hipotética:

Maria era servidora pública
aposentada e recebia todos os meses seus proventos na conta bancária.

Determinado dia, Maria faleceu e
seus dois filhos informaram ao departamento de pessoal do Estado a morte da
mãe.

Com o falecimento da servidora, o
correto seria que cessasse o pagamento dos proventos, já que os filhos não
tinham direito à pensão por morte, considerando que eram maiores e capazes.

Ocorre que, por uma falha no
programa de computador do órgão público, os proventos continuaram a ser
depositados na conta bancária da falecida, o que perdurou por três meses.

Os filhos de Maria tinham o
cartão e a senha da conta bancária e, à medida que os valores iam sendo
depositados, eles sacavam as quantias.

A Administração, enfim, percebeu
o erro, cessou os novos pagamentos e cobrou dos filhos a restituição dos três
meses pagos.

 

O
pleito da Administração Pública deverá ser atendido? Os herdeiros da servidora
deverão devolver o dinheiro?

SIM.

Os herdeiros devem restituir os proventos que, por erro
operacional da Administração Pública, continuaram sendo depositados em conta de
servidor público após o seu falecimento.

STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp 1.387.971-DF, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, julgado em 15/3/2016 (Info 579).

 

Vale ressaltar que, neste caso,
nem se analisa se o herdeiro estava ou não de boa-fé. A boa-fé aqui não importa.
Isso porque:

1) Os valores pagos já não mais
possuem caráter alimentar

Os salários ou proventos do
servidor possuem natureza alimentar somente em relação ao próprio servidor. Se
ele já morreu, tais valores são considerados como herança e herança não é
remuneração nem aposentadoria. Logo, não é uma verba alimentícia.

Pelo princípio da saisine, com a
morte, houve a transferência imediata da titularidade da conta bancária da
falecida aos seus herdeiros e os valores que foram nela depositados (por erro)
não tinham mais qualquer destinação alimentar. Logo, por não se estar diante de
verbas de natureza alimentar, não é nem mesmo necessário analisar se os
herdeiros estavam ou não de boa-fé ao sacar o dinheiro.

 

2) O herdeiro não possui nenhum
direito sobre as verbas

O herdeiro é obrigado a devolver
porque ele não tem qualquer razão jurídica para ficar com aquele dinheiro em
prejuízo da Administração Pública.

Não havia nenhuma relação
jurídica entre o herdeiro e o Estado.

O fundamento aqui para que ocorra a devolução está baseado
no princípio da proibição do enriquecimento sem causa, previsto no art. 884 do
CC:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa,
se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente
auferido, feita a atualização dos valores monetários.

 

 

Artigo Original em Dizer o Direito

Posts Similares

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.