Hoje é um dia histórico para esta Instituição, a Justiça mais antiga do Brasil. Revive a Justiça Militar da União sua trajetória de 206 anos que se confunde com a historiografia pátria, ao lado do quase bicentenário Instituto dos Advogados Brasileiros, que tenho a honra de integrar, e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, órgão de classe que orgulhosamente estive inscrita até minha assunção como magistrada neste Tribunal.
É histórico porque neste Forum especializado, pela palavra, decidiu-se a vida de muitos brasileiros e brasileiras e os destinos do país, edificando-se julgados que contribuiram para a grandeza da Justiça e do Estado de Direito.
O que nos une neste ato é a assinatura do “Projeto Memórias”, que promoverá a digitalização de mais de 20 milhões de páginas de um acervo processual que remonta aos episódios mais significativos do Império, República Velha e República Nova; e o “Projeto Vozes da Defesa”, por meio do qual será transposto para mídia digital os áudios das sustentações orais dos grandes advogados que lutaram pela liberdade no Brasil como Sobral Pinto, Heleno Cláudio Fragoso, Paulo Brossard, Arnoldo Wald e Técio Lins e Silva, dentre outros nomes respeitáveis.
Não é casual que somente a Justiça Militar Federal detenha acervo tão precioso, afinal, aqui foi palco de decisões memoráveis, tal qual a prolatada pelo então Supremo Tribunal Militar quando reformou sentença condenatória proferida contra João Mangabeira pelo Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo, concedendo-lhe a liberdade, em 1937, no habeas corpus nº 8417, ou ainda, quando deferiu medida liminar em sede deste mesmo writ; primeira Corte a fazê-lo, servindo tal decisão de precedente para o Supremo Tribunal Federal.
Outros exemplos poderiam ser citados como o caso da incomunicabilidade dos presos, proibidos de manter contato com os advogados sob a égide da Lei de Segurança Nacional, e que teve na Representação nº 985, correta e precursora solução, ao observar os princípios da ampla defesa e do contraditório.
Do mesmo modo, assegurou o STM na década de 1970 que a greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse objetivos de melhoria salarial não se traduzia, segundo o R.C nº 5385-6, em crime contra a segurança nacional. Igualmente, no R.C nº 38.628 assentou esta Corte Militar que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora expressa em linguagem censurável, não constituía delito contra a segurança do Estado, garantindo a liberdade de imprensa e o direito de expressão.
Mas nada se compara ao Acórdão exarado nos autos da Apelação nº 41.264, em 19 de outubro de 1977, no qual este Tribunal, por unanimidade, externou em longo voto “seu repúdio, sua revolta e sua condenação às torturas e sevícias aplicadas aos presos e acusados de práticas de crimes, por constituírem um eloquente atestado de afronta e desrespeito à dignidade da criatura humana”, segundo seus próprios termos, único órgão do Poder Judiciário a fazê-lo.
Está-se diante de uma jurisprudência dignificante que, ao sobrepor-se às pressões políticas, deixou significativo legado ao democratismo estatal.
Mas eu vou além, nenhum outro Tribunal respeitou e respeita tanto os advogados como o STM.
Nem se diga que a Defensoria Pública atuou pela primeira vez neste foro, eu relembro o sequestro do Dr. Heleno Cláudio Fragoso na cidade do Rio de Janeiro, em companhia de seus colegas Dr. Jorge Tavares e Dr. Augusto Sussekind Moraes Rego, submetidos à incomunicabilidade durante dois dias, que mereceu protesto veemente por parte deste Superior Tribunal que chegou mesmo a ameaçar suspender seus julgamentos até o reaparecimento dos advogados.
Por tudo isso, afirmo com convicção que esta Corte deslegitimou o autoritarismo e exaltou a democracia e os Direitos Humanos, ao lado dos grandes bacharéis do Brasil, a quem, nós juízes, hoje, homenageamos.
Homenageamos a advocacia que jamais olvidou a ética ou postergou a coragem. Estóicos na resistência, os advogados cumprem com galhardia seu papel na luta em defesa do Homem e da Humanidade.
A saga dos advogados não feita de exaltações épicas ou vitorias gloriosas, mas de embates cotidianos e derrotas positivas.
E quando o historiador do futuro passar em revista este acervo documental da Justiça Militar da União, isentos da áurea passional, estou certa de que um capítulo especial estará reservado aos homens do Direito e à Corte Castrense, se lhes reconhecendo a preservação dos valores jurídicos tão caros à civilização. Concluídos os trabalhos, não tenho dúvidas de que a Justiça Militar, ainda tão desconhecida, inclusive por grandes autoridades do Direito e do Poder Judiciário Nacional, se aproximará da sociedade civil, e dela receberá a crítica justa e o reconhecimento devido.
Alfim resta-me agradecer. Agradeço ao IAB, água lustral dos advogados pátrios, instituição jurídica mais antiga das Américas, que reuniu e reúne em seus quadros os maiores vultos da advocacia como Ruy Barbosa, Afonso Arinos, Clóvis Bevilácqua, Miguel Seabra Fagundes, Fernando Fragoso e tantos outros, na pessoa de seu Presidente Técio Lins e Silva a quem externo minha admiração e reverência, bem como a de toda a Corte.
Um empreendimento da grandeza que ora nos propomos exige um aporte vultuoso de recursos, e o STM resolveu buscá-los por intermédio da Lei de Incentivo à Cultura, tendo o IAB emprestado a respeitabilidade de seu nome como proponente.
Agradeço ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na pessoa de seu Presidente Marcus Vinícius Furtado Coêlho por esta importante parceira. Vossa Excelência esteja seguro, e também o Presidente Romero Mafra, do reconhecimento desta Justiça Especializada acerca do valoroso e insubstituível mister desempenhado pela OAB Federal e suas seccionais, em prol da liberdade e da construção da cidadania.
Ao meu amigo Cezar Brito, nosso eterno Bastonário, quem me inspirou, mais do que isto, quem me instigou, a realizar este Projeto, o meu muito obrigada.
Ao Seu José Hebert de Rezende Filho, memória viva deste Tribunal, à Dra. Sonja Christian Wriedt, à Dra Juvani Lima Borges, ao Cel. Otavio Dornelles Claret da Silva e à todos aqueles servidores que com sua dedicação e amor à esta Justiça tem protagonizado a realização de um ideal comum, faço público o meu reconhecimento
Ao digitalizar o acervo processual e degravar as sessões jurisdicionais do STM em mídia digital, com sua consequente disponibilização ao público, o STM, o IAB e a OAB concretizam a preservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro, asseguram o acesso à informação e prestigiam o conhecimento.
E neste cenário histórico, a posteridade contribuirá para a reformulação de juízos, destituídos de preconceitos, porque corrigidos e aperfeiçoados por novos instrumentos científicos.
Muito Obrigada!
Ministra Maria Elizabeth Rocha – Presidente do Superior Tribunal Militar