A conversão do conteúdo das interceptações telefônicas em formato escolhido pela defesa não é ônus atribuído ao Estado


 

Imagine a seguinte situação adaptada:

A Polícia Federal instaurou
inquérito policial para investigar suposta organização criminosa que praticava
crimes contra a administração pública.

Durante as investigações foram
realizadas, com autorização judicial, interceptações telefônicas.

Depois que a operação foi
deflagrada, disponibilizou-se à defesa dos investigados os arquivos digitais com
os áudios das interceptações.

A defesa de João, um dos
investigados, alegou e requereu o seguinte:

– a Polícia Federal utiliza nas
interceptações um software que realiza a organização e indexação dos dados
recebidos das operadoras de telefonia. Estas, por sua vez, utilizam para a
coordenação e implementação das medidas o software Vigia, que contém os dados
originais de como as interceptações telefônicas e telemáticas foram
efetivamente realizadas;

– para que se possa realizar uma
auditoria (e detectar a necessidade de uma perícia no material) necessário que
seja apresentado o material original, diretamente do sistema Vigia, já que o
sistema dos órgãos investigativos, por ser uma cópia, é impossível de ser
periciado;

– daí é indispensável o acesso ao
original – que permita a realização de perícias – a fim de atestar a
regularidade das informações;

– portanto, requer o acesso aos
arquivos originais no sistema Vigia.

 

O juízo indeferiu o pedido da
defesa, que impetrou habeas corpus.

O TRF também negou o pleito,
razão pela qual a defesa interpôs recurso ordinário ao STJ.

 

O STJ concordou com o
pedido da defesa?

NÃO.

Conforme já explicado acima, a defesa
pediu para ter acesso aos arquivos do sistema Vigia, utilizado pelas companhias
de telefonia para viabilizar os procedimentos de interceptação telefônica
autorizados pela Justiça no curso de investigações criminais.

O pedido se funda em alegada
quebra de cadeia de custódia da prova, cuja comprovação, segundo a defesa,
depende de acesso aos dados armazenados pelas operadoras de telefonia no
mencionado sistema.

A Lei nº 9.296/96, que
regulamenta as interceptações telefônicas, não faz qualquer exigência no
sentido de que as conversas devam ser integralmente transcritas, bastando que
se confira às partes acesso aos diálogos interceptados. Assim, de acordo com a
jurisprudência consolidada do STJ, não há necessidade de degravação dos
diálogos objeto de interceptação telefônica em sua integralidade (STJ. 6ª
Turma. AgRg no REsp 1533480/RR, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado
em 19/11/2015).

Para o STJ, os elementos de prova
estão disponíveis para a defesa, de maneira que não se pode falar em vício por
ser um formato de arquivo preferível a outro. A disponibilização dos arquivos
com os diálogos interceptados supre a demanda da defesa quanto ao acesso do
conteúdo das interceptações, em observância às garantias constitucionais no
âmbito do processo penal democrático, não sendo viável a imposição de ônus ao
Estado quanto à conversão dos arquivos digitais contendo os elementos de prova
para o formato mais conveniente para a defesa.

A análise das nulidades no
processo penal envolve, por um lado, a observância da regularidade formal, mas
também a necessidade de preservação dos atos processuais, ainda que tenham sido
realizados de maneira diversa da estabelecida na norma, sob pena de se
privilegiar o formalismo em detrimento da substância dos atos.

Por isso, o reconhecimento do
vício depende de demonstração concreta do prejuízo suportado pela parte, o que
não ocorreu no caso sob exame.

A alegação de quebra de cadeia de
custódia é feita de forma genérica e, portanto, não traz elementos que permitam
vislumbrar qualquer ocorrência que comprometa a idoneidade das provas. Assim, os
argumentos não se mostram suficientes para se concluir pela presença de
qualquer mácula nas provas obtidas mediante o procedimento autorizado de
interceptação telefônica.

Deve-se registrar, ainda, que a
autenticidade das mídias é a regra, uma vez que os agentes investigadores
possuem fé pública. Dessa forma, não cabe ao Poder Público demonstrar a
autenticidade das interceptações, mas sim à parte impugnar sua veracidade, com
fundamento em elementos concretos. Nesse contexto, não tendo o impetrante
demonstrado eventual dúvida acerca da autenticidade das mídias em momento
oportuno, não há se falar em disponibilização dos Sistemas “Guardião” ou “Vigia”,
para tal finalidade.

Por tudo isso, não é viável o
reconhecimento do vício indicado, pois, a teor do art. 563 do CPP, mesmo os
vícios capazes de ensejar nulidade absoluta não dispensam a demonstração de
efetivo prejuízo, em atenção ao princípio do pas de nullité sans grief.

 

Em suma:

A conversão do conteúdo das
interceptações telefônicas em formato escolhido pela defesa não é ônus
atribuído ao Estado.

STJ. 5ª
Turma. AgRg no RHC 155.813-PE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em
15/02/2022 (Info 731).

Artigo Original em Dizer o Direito

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