EC 106/2020: institui regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da calamidade pública decorrente do coronavírus


Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje mais uma emenda
constitucional.

A EC 106/2020 institui regime
extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da
calamidade pública nacional decorrente de pandemia.

Antes de explicar a novidade, gostaria
de chamar atenção para duas peculiaridades da EC 106/2020:

1) Emenda constitucional
avulsa

Trata-se de uma emenda
constitucional que não
modifica o texto da Constituição Federal de 1988. É uma emenda constitucional
avulsa. Assim, a EC 106/2020 é uma norma constitucional não prevista no texto
da Constituição Federal de 1988. Integra, contudo, o bloco de
constitucionalidade. De forma bem simplificada, bloco de constitucionalidade
significa que a Constituição pode ser formada não apenas pelos dispositivos que
estão ali expressamente escritos, mas também por outras normas não presentes no
texto, como, por exemplo, a Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (promulgada pelo Decreto 6.949/2009).

Vale ressaltar que não consiste em algo
inédito. Isso porque a EC 91/2016, que disciplinou a “janela partidária”,
também utilizou a mesma sistemática.

2) Vigência temporária

A EC 106/2020 tem vigência
temporária.

O art. 11 da emenda prevê
expressamente que a EC 106/2020 “ficará automaticamente revogada na data
do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso
Nacional.”

Veja abaixo um resumo da nova
emenda:

Regime extraordinário fiscal,
financeiro e de contratações (art. 1º da EC)

Durante a vigência do estado de
calamidade pública nacional reconhecido pelo Congresso Nacional em razão da
pandemia do coronavírus, a União adotará regime extraordinário fiscal,
financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes.

Esse regime extraordinário
somente deverá ser adotado naquilo em que, em virtude da urgência, não for
possível ser cumprido com o regime regular.

Obs: a situação de calamidade
pública em razão da pandemia causada pelo coronavírus foi reconhecida pelo
Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 06/2020 e está prevista para
durar até 31/12/2020.

Vejamos abaixo em que consiste
esse regime extraordinário.

Processos simplificados de
contratação (art. 2º da EC)

O Poder Executivo federal, no
âmbito de suas competências, fica autorizado a adotar processos simplificados para a:

• contratação de pessoal, em
caráter temporário e emergencial; e para a

• contratação de obras, serviços
e compras.

Trata-se, portanto, de uma
exceção constitucional e temporária da regra da licitação e do concurso público.

Vale ressaltar, no entanto, que esse
processo simplificado de contratação deve assegurar, quando possível, competição e igualdade de
condições a todos os concorrentes.

Esses processos simplificados
somente poderão ser realizados com propósito exclusivo de enfrentamento do
contexto da calamidade e de seus efeitos sociais e econômicos, no seu período
de duração.

Critérios objetivos para
distribuição de equipamentos e insumos de saúde

Quando a União for realizar a distribuição,
para Estados e Municípios, dos equipamentos e insumos de saúde imprescindíveis
ao enfrentamento da calamidade, deverá adotar critérios objetivos, devidamente
publicados (art. 2º, parágrafo único).

A contratação temporária do
art. 37, IX não precisará cumprir a exigência do § 1º do art. 169 da CF (art. 2º
da EC)

Contratação temporária de
excepcional interesse público

A CF/88 instituiu o “princípio do
concurso público”, segundo o qual, em regra, a pessoa somente pode ser
investida em cargo ou emprego público após ser aprovada em concurso público
(art. 37, II).

Esse princípio, que na verdade é
uma regra, possui exceções que são estabelecidas no próprio texto
constitucional.

Assim, a CF/88 prevê situações em
que o indivíduo poderá ser admitido no serviço público mesmo sem concurso. Uma
dessas situações está prevista no art. 37, IX, da CF/88 (servidores temporários):

Art. 37 (…)

IX – a lei estabelecerá os casos de
contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de
excepcional interesse público;

Prévia dotação orçamentária e
autorização específica na LDO

O § 1º do art. 169 da CF/88 prevê
o seguinte:

Art. 169. (…)

§ 1º A concessão de qualquer vantagem
ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração
de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a
qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta,
inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser
feitas:

I – se houver prévia dotação
orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos
acréscimos dela decorrentes;

II – se houver autorização específica
na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as
sociedades de economia mista.

(…)

Assim, qualquer gasto público com
pessoal deve obrigatoriamente estar previsto na LDO.

Logo, a contratação por tempo
determinado de que trata o art. 37, IX, em regra, também precisa respeitar essa
exigência prevista no § 1º do art. 169 e estar prevista na LDO.

A EC 106/2020, contudo, excepciona essa regra e afirma que, durante
o regime extraordinário, fica “dispensada a observância do § 1º do art. 169 da
Constituição Federal na contratação de que trata o inciso IX do caput do art.
37 da Constituição Federal, limitada a dispensa às situações de que trata o
referido inciso, sem prejuízo da tutela dos órgãos de controle.”

Vale ressaltar que essa dispensa
somente é válida para contratações cujo propósito exclusivo seja o
enfrentamento do contexto da calamidade e de seus efeitos sociais e econômicos,
no seu período de duração.

Dispensa das limitações legais
ao aumento de despesa e renúncia de receitas

Existem algumas limitações impostas
nas leis para a realização de medidas governamentais que:

• gerem aumento de despesa; ou

• concedam incentivos ou
benefícios tributários (renúncia de receita).

Durante o regime extraordinário,
as proposições legislativas e os atos do Poder Executivo que tenham o propósito
exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências sociais e econômicas ficam
dispensados da observância dessas limitações legais, desde que isso não
implique em despesas permanentes.

É o que prevê, com uma confusa
redação, o caput do art. 3º da EC 106/2020:

Art. 3º Desde que não impliquem
despesa permanente, as proposições legislativas e os atos do Poder Executivo
com propósito exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências sociais
e econômicas, com vigência e efeitos restritos à sua duração, ficam dispensados
da observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao
aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa e à
concessão ou à ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da
qual decorra renúncia de receita.

Permissão para que empresas
com débitos na previdência contratem com o poder público ou recebam benefícios
e incentivos

O § 3º do art. 195 da CF/88 prevê
que a pessoa jurídica que estiver em débito com a Previdência Social:


não pode celebrar contratos com o Poder Público (logo, também não pode participar
de licitações); e

• não pode receber benefícios ou
incentivos do Poder Público.

Confira a redação do texto
constitucional:

Art. 195 (…) § 3º A pessoa jurídica
em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não
poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos
fiscais ou creditícios.

A EC 106/2020 trouxe uma exceção
temporária para essa exigência e autorizou que, durante o período de calamidade
decorrente do coronavírus, as pessoas jurídicas com débitos na previdência possam
celebrar contratos com o poder público ou receber benefícios e incentivos:

Art. 3º (…)

Parágrafo único. Durante a vigência da calamidade pública nacional
de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, não se aplica o disposto no
§ 3º do art. 195 da Constituição Federal.

Em 2020 não será necessário
cumprir a “regra de ouro” do art. 167, III, da CF/88

O art. 167, III, da CF/88 proíbe
que o governo realize operações de crédito (operações que gerem endividamento) em
valores maiores do que as despesas de capital, salvo as exceções autorizadas
pelo Poder Legislativo por maioria absoluta. Confira o dispositivo:

Art. 167. São vedados:

(…)

III – a realização de operações de
créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as
autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade
precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta;

O que são operações de crédito?

Operação de crédito é o “compromisso
financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de
título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores
provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e
outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.”
(art. 29, III, da LC 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal).

O que são despesas de capital?

Despesas de capital são gastos
produtivos da Administração Pública, considerando que são feitos para aquisição
ou construção de bens de capital que contribuam para a formação de novos bens.
São, portanto, gastos que geram um crescimento do patrimônio público (VIEIRA,
Danilo. Direito Financeiro. 2ª ed., Salvador: Juspodivm, 2018, p. 131).

Assim, em palavras mais simples, o
art. 167, III, proíbe o governo de realizar operações de crédito (“contrair dívidas”)
que excedam o valor de suas despesas de capital.

Regra de ouro

A previsão do art. 167, III, da
CF/88 é conhecida pela doutrina como “regra de ouro” da responsabilidade fiscal.
Isso porque ela limita os gastos públicos evitando que o poder público se
endivide mais do que o valor que ele gasta com despesas produtivas (despesas de
capital). Nesse sentido: PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Constituição
Federal comentada
. São Paulo, p. 701.

Em 2020 não será necessário
cumprir a “regra de ouro”

O art. 4º da EC 106/2020 afirma que
no exercício financeiro (“ano civil”) da calamidade pública (2020) não será
necessário cumprir o inciso III do art. 167 da CF/88. Veja:

Art. 4º Será dispensada, durante a integralidade do exercício
financeiro em que vigore a calamidade pública nacional de que trata o art. 1º
desta Emenda Constitucional, a observância do inciso III do caput do art. 167
da Constituição Federal.

Parágrafo único. O Ministério da Economia publicará, a cada 30 (trinta)
dias, relatório com os valores e o custo das operações de crédito realizadas no
período de vigência do estado de calamidade pública nacional de que trata o
art. 1º desta Emenda Constitucional.

Assim, na prática, esse art. 4º autoriza
que o governo gaste mais com despesas de custeio, como despesas de pessoal
(exs: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas) e materiais de consumo (exs:
remédios, soros, EPIs, alimento etc), tendo em vista que são os gastos atualmente
necessários nesse período de pandemia.

Programação orçamentária
específica e prestação de contas avaliada separadamente

Art. 5º As autorizações de despesas
relacionadas ao enfrentamento da calamidade pública nacional de que trata o
art. 1º desta Emenda Constitucional e de seus efeitos sociais e econômicos
deverão:

I – constar de programações
orçamentárias específicas ou contar com marcadores que as identifiquem; e

II – ser separadamente avaliadas na
prestação de contas do Presidente da República e evidenciadas, até 30 (trinta)
dias após o encerramento de cada bimestre, no relatório a que se refere o § 3º
do art. 165 da Constituição Federal.

Parágrafo único. Decreto do Presidente
da República, editado até 15 (quinze) dias após a entrada em vigor desta Emenda
Constitucional, disporá sobre a forma de identificação das autorizações de que
trata o caput deste artigo, incluídas as anteriores à vigência desta Emenda
Constitucional.

Recursos das operações de crédito
poderão ser utilizados para pagamento dos juros e encargos

Durante a vigência da calamidade
pública nacional, os recursos decorrentes de operações de crédito realizadas
para o refinanciamento da dívida mobiliária poderão ser utilizados também para
o pagamento de seus juros e encargos (art. 6º da EC).

Autorização para o Banco Central
comprar e vender títulos de emissão do Tesouro e outros ativos

Art. 7º O Banco Central do Brasil,
limitado ao enfrentamento da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º
desta Emenda Constitucional, e com vigência e efeitos restritos ao período de
sua duração, fica autorizado a comprar e a vender:

I – títulos de emissão do Tesouro
Nacional, nos mercados secundários local e internacional; e

II – os ativos, em mercados
secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de
pagamentos, desde que, no momento da compra, tenham classificação em categoria
de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida
por pelo menos 1 (uma) das 3 (três) maiores agências internacionais de
classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado
financeiro acreditada pelo Banco Central do Brasil.

§ 1º Respeitadas as condições
previstas no inciso II do caput deste artigo, será dada preferência à aquisição
de títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas.

§ 2º O Banco Central do Brasil fará
publicar diariamente as operações realizadas, de forma individualizada, com
todas as respectivas informações, inclusive as condições financeiras e
econômicas das operações, como taxas de juros pactuadas, valores envolvidos e
prazos.

§ 3º O Presidente do Banco Central do
Brasil prestará contas ao Congresso Nacional, a cada 30 (trinta) dias, do
conjunto das operações previstas neste artigo, sem prejuízo do previsto no § 2º
deste artigo.

§ 4º A alienação de ativos adquiridos
pelo Banco Central do Brasil, na forma deste artigo, poderá dar-se em data
posterior à vigência do estado de calamidade pública nacional de que trata o
art. 1º desta Emenda Constitucional, se assim justificar o interesse público.

Art. 8º Durante a vigência desta
Emenda Constitucional, o Banco Central do Brasil editará regulamentação sobre
exigências de contrapartidas ao comprar ativos de instituições financeiras em
conformidade com a previsão do inciso II do caput do art. 7º desta Emenda
Constitucional, em especial a vedação de:

I – pagar juros sobre o capital
próprio e dividendos acima do mínimo obrigatório estabelecido em lei ou no
estatuto social vigente na data de entrada em vigor desta Emenda
Constitucional;

II – aumentar a remuneração, fixa ou
variável, de diretores e membros do conselho de administração, no caso das
sociedades anônimas, e dos administradores, no caso de sociedades limitadas.

Parágrafo único. A remuneração
variável referida no inciso II do caput deste artigo inclui bônus, participação
nos lucros e quaisquer parcelas de remuneração diferidas e outros incentivos
remuneratórios associados ao desempenho.

Congresso Nacional pode
sustar decisões do Executivo que descumprirem a EC 106/2020

Art. 9º Em caso de irregularidade ou
de descumprimento dos limites desta Emenda Constitucional, o Congresso Nacional
poderá sustar, por decreto legislativo, qualquer decisão de órgão ou entidade
do Poder Executivo relacionada às medidas autorizadas por esta Emenda
Constitucional.

Confirmação dos atos já
praticados anteriormente pelo Executivo e que sejam compatíveis com a EC
106/2020

Art. 10. Ficam convalidados os atos de
gestão praticados a partir de 20 de março de 2020, desde que compatíveis com o
teor desta Emenda Constitucional.

Vigência temporária

A EC 106/2020 entrou em vigor na data
de sua publicação (08/05/2020) e ficará automaticamente revogada na data do
encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso
Nacional.

A situação de calamidade pública
em razão da pandemia causada pelo coronavírus reconhecida pelo Congresso Nacional
(Decreto Legislativo 06/2020) está prevista para durar até 31/12/2020.

Artigo Original em Dizer o Direito

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