É possível que o juiz imponha, sob pena de multa, que a parte exiba um documento que supostamente está em seu poder e que foi requerido pela parte contrária?


 

Imagine a seguinte situação
hipotética:

João teve seu nome inscrito no
cadastro de inadimplentes por indicação do Banco “X”, que informou ao SERASA
que ele estaria devendo determinada quantia à instituição financeira.

Quando soube da inscrição, João
solicitou do banco, extrajudicialmente, acesso ao contrato que gerou o suposto
débito.

A instituição financeira,
contudo, não apresentou o contrato.

Diante disso, João propôs “ação
autônoma de exibição de documentos” em face do Banco. Na demanda, o autor pediu
a exibição do suposto contrato que originou a dívida.

Afirmou que desconhece a dívida,
e necessita do teor do contrato que deu origem ao débito para tomar as
providências cabíveis.

Apresentado o documento (suposto
contrato), o autor definirá se ajuizará ou não ação de conhecimento. Trata-se,
portanto, de ação autônoma de exibição, sendo medida adequada para o objetivo
buscado.

 

Modalidades do pedido de
exibição

Vale ressaltar que o pedido de
exibição de documentos ou coisas pode ser formulado por intermédio de três
instrumentos processuais distintos:

a) ação autônoma, como no exemplo
acima;

b) ação de produção antecipada da
prova;

c) como incidente processual, ou
seja, quando o documento/coisa for necessário para ser exibido em um processo
que já está em curso.

 

A controvérsia debatida no
processo foi a seguinte: é possível que o juiz imponha, sob pena de multa, que a
parte exiba um documento que supostamente está em seu poder e que foi requerido
pela parte contrária? Em nosso exemplo, o juiz pode exigir que o banco, no
prazo de xx dias, forneça o contrato, sob pena de multa diária de yyy reais?

O STJ respondeu sim, mas desde
que cumpridos os seguintes requisitos:

a) existam nos autos provas que
indiquem ser provável a existência da relação jurídica entre as partes;

b) existam nos autos provas que
indique ser provável a existência do documento ou coisa que se pretende seja
exibido;

c) essas provas da existência da
relação jurídica e da existência do documento ou coisa sejam apuradas em
contraditório prévio;

d) antes de impor a multa, o
magistrado tente conseguir o documento ou coisa por intermédio de busca e
apreensão ou de outra medida coercitiva (a multa é subsidiária).

Vamos entender os argumentos
invocados pelo STJ.

 

Exibição de documento ou coisa

Algumas vezes para que uma lide
seja resolvida, é necessário um documento ou coisa que está em poder de alguém.
Nesses casos, a parte pode pedir ao juiz que determine a essa pessoa a
apresentação desse documento ou coisa.

O procedimento que disciplina
essa apresentação está previsto nos arts. 396 a 404 do CPC/2015.

Confira o que diz o art. 396:

Art. 396. O juiz pode ordenar que a
parte exiba documento ou coisa que se encontre em seu poder.

O art. 397 prevê como a parte deverá formular esse pedido:

Art. 397. O pedido formulado pela
parte conterá:

I – a descrição, tão completa quanto
possível, do documento ou da coisa, ou das categorias de documentos ou de
coisas buscados;    (Redação dada pela Lei
nº 14.195, de 2021)

II – a finalidade da prova, com
indicação dos fatos que se relacionam com o documento ou com a coisa, ou com
suas categorias;    (Redação dada pela
Lei nº 14.195, de 2021)

III – as circunstâncias em que se
funda o requerente para afirmar que o documento ou a coisa existe, ainda que a
referência seja a categoria de documentos ou de coisas, e se acha em poder da
parte contrária.
    (Redação dada pela
Lei nº 14.195, de 2021)

 

Com quem está o documento
ou coisa?

Vale ressaltar que o documento ou
coisa pode estar em poder de alguém que é parte no processo ou em poder de um
terceiro. Isso é importante para definir quem será o destinatário da ordem
emitida pelo juiz. Além disso, o procedimento de exibição irá mudar.

No art. 400, o CPC trata sobre a hipótese na qual a parte contrária está com o
documento ou coisa, é intimada para apresentá-lo, mas não o faz. Esse artigo
prevê as consequências disso. Confira:

Art. 400. Ao decidir o pedido, o juiz
admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a
parte pretendia provar se:

I – o requerido não efetuar a exibição
nem fizer nenhuma declaração no prazo do art. 398;

II – a recusa for havida por
ilegítima.

Parágrafo único. Sendo necessário, o
juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias
para que o documento seja exibido.

 

No art. 403, por sua vez, o Código trata sobre a situação na
qual o documento ou coisa está em poder de um terceiro, ou seja, de alguém que
não é parte no processo. Assim, o juiz intima esse terceiro para apresentar o
documento ou coisa. Veja o que o CPC diz para o caso de esse terceiro não cumprir
a determinação judicial:

Art. 403.  Se o terceiro, sem justo motivo, se recusar a
efetuar a exibição, o juiz ordenar-lhe-á que proceda ao respectivo depósito em
cartório ou em outro lugar designado, no prazo de 5 (cinco) dias, impondo ao
requerente que o ressarça pelas despesas que tiver.

Parágrafo único. Se o terceiro
descumprir a ordem, o juiz expedirá mandado de apreensão, requisitando, se
necessário, força policial, sem prejuízo da responsabilidade por crime de
desobediência, pagamento
de multa
e outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou
sub-rogatórias necessárias para assegurar a efetivação da decisão.

 

Se você comparar os dois
dispositivos, verá que a possibilidade de o juiz impor multa somente foi prevista para o terceiro (no
art. 403), não sendo expressamente consignada no art. 400, que trata sobre as
consequências de a parte não ter exibido o documento ou coisa.

 

Assim, pelo texto expresso
do CPC, a imposição de astreintes somente seria possível em caso de exibição de
documento ou coisa imposta contra terceiro (não contra a parte). Qual seria a
razão disso?

A justificativa aparente para isso seria o fato de que o
art. 400 já prevê uma consequência grave caso a parte contrária não apresente o
documento ou coisa. Que consequência é essa? A presunção de veracidade. Confira
novamente a redação do dispositivo:

Art. 400. Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os
fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar se
:

I – o requerido não efetuar a exibição
nem fizer nenhuma declaração no prazo do art. 398;

II – a recusa for havida por
ilegítima.

 

Ocorre que isso não é
suficiente e a parte também deve pagar astreintes caso não apresente o
documento ou coisa

Um dos argumentos acolhidos pelo
STJ foi o de que, se a parte entender que irá ser prejudicada com o documento
ou coisa, ela não o exibirá mesmo com o risco da presunção de veracidade dos
fatos.

A parte irá avaliar o seguinte:

– se eu apresentar o documento ou
coisa, há uma certeza de que irei perder (porque o documento ou coisa prova o
direito da outra parte);

– se eu não apresentar o
documento ou coisa, há um mero risco de que irei perder.

 

Assim, entre o mero risco de
sucumbência (no caso de recusa de exibição) e a certeza da derrota (no caso de
exibição do documento essencial para o desfecho do litígio), a parte tenderia a
assumir a primeira postura, recusando-se a exibir o documento pretendido.

 

Ampla defesa e dever de
cooperação

Um segundo argumento está no fato
de que, sob a ótica da ampla defesa e do dever de cooperação, a cominação de
astreintes deve ser cabível porque se aumenta a probabilidade de sucesso da
ordem de exibição.

 

Obrigar a parte a apresentar
o documento ou coisa não seria uma violação ao direito à não autoincriminação?

NÃO. Isso porque o direito de não
produzir prova contra si mesmo se restringe à não autoincriminação em matéria
penal, prevalecendo no âmbito do direito privado garantia da ampla defesa
conjugada com o dever de cooperação das partes com a instrução probatória.

 

Medidas coercitivas
abrangem também multa

Outro argumento a favor da tese está na redação do parágrafo
único do art. 400, que estabelece:

Art. 400 (…)

Parágrafo único. Sendo necessário, o
juiz pode adotar medidas
indutivas, coercitivas,
mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido.

 

A partir de uma interpretação que
busque a efetividade dos provimentos jurisdicionais, é preciso entender que a expressão
“medidas coercitivas” seja considerada com um gênero, que abrange a multa
pecuniária, pois essa interpretação confere maior eficácia à ordem de exibição.

 

Previsão da multa no art.
403 foi um excesso de zelo do legislador

O art. 400, ao não falar em
multa, não estabeleceu um “silêncio eloquente”, mas sim uma previsão implícita
de multa cominatória, contida no gênero “medidas coercitivas”.

Por outro lado, o que houve no
parágrafo único do art. 403 foi um excesso de zelo do legislador ao ressaltar expressamente
a possibilidade de incidência de multa em desfavor de um terceiro estranho à
relação processual, já que, em relação às partes, a aplicação dessa medida
coercitiva é natural.

 

Não há enriquecimento sem causa

Por fim, não se justifica a
impossibilidade de aplicação das astreintes sob o fundamento de que haveria
estímulo ao enriquecimento sem causa, pois, se a recusa da parte em exibir o
documento for reputada ilegítima (art. 399 do CPC), basta a sua apresentação
para que a multa não incida.

 

Tese fixada:

 

É importante esclarecer que essa
tese não se aplica pedidos de exibição regidos pelo CPC/1973, aos quais
continuam aplicáveis os Temas 47, 149 e 705/STJ.

 

Superação da Súmula 372 do
STJ

Em 11/11/2009 (DJe 30/03/2009), o
STJ aprovou o seguinte enunciado:

Súmula 372-STJ: Na ação de exibição de documentos, não cabe a
aplicação de multa cominatória.

 

Esse entendimento era baseado no
CPC/1973 que, ao tratar sobre a ação de exibição de documentos proposta contra
a parte contrária, afirmava que, em caso de descumprimento da ordem judicial de
exibição, a única consequência para isso era a presunção de veracidade dos
fatos que se pretendia provar. Confira a redação do CPC revogado:

Art.
359. Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por
meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar:

I
– se o requerido não efetuar a exibição, nem fizer qualquer declaração no prazo
do art. 357;

II
– se a recusa for havida por ilegítima.

 

No
que tange à exibição contra terceiro, a consequência prevista era a apreensão
do documento, sem prejuízo da responsabilidade por crime de desobediência,
conforme o disposto no art. 362 do CPC/1973.

Logo,
não havia a previsão de imposição de multa nem contra a parte contrária nem
contra terceiro.

Desse
modo, o fundamento da Súmula 372 do STJ era a ausência de previsão legal.

Ocorre que o
CPC/2015 previu a possibilidade de imposição da multa, previsão essa contida no
parágrafo único do art. 400 (medidas coercitivas) e no parágrafo único do art.
403 (pagamento de multa):

Art.
400 (…)

Parágrafo
único. Sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias
para que o documento seja exibido.

 

Art.
403 (…)

Parágrafo
único. Se o terceiro descumprir a ordem, o juiz expedirá mandado de apreensão,
requisitando, se necessário, força policial, sem prejuízo da responsabilidade
por crime de desobediência, pagamento de multa e outras medidas indutivas, coercitivas,
mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar a efetivação da
decisão.

 

Logo,
o entendimento constante da Súmula 372 do STJ está superado.

Artigo Original em Dizer o Direito

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