Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em 04/04/2014, João foi até uma
agência do INSS e requereu a sua aposentadoria por invalidez.
O pedido foi indeferido (negado) administrativamente
porque o perito do INSS entendeu que o segurado não estaria incapaz.
Diante disso, João ajuizou ação
contra a autarquia pedindo a concessão do benefício.
Ocorre que João precisava se
sustentar e, assim, mesmo com muitas dores ele se sacrificou e continuou
trabalhando como empregado de um supermercado enquanto aguardava o julgamento
do processo.
Na Justiça, foi realizada perícia
e o médico concluiu de forma diferente do que havia dito o perito do INSS: João
possui realmente incapacidade total e permanente.
Em 05/05/2015, o juiz julgou o
pedido procedente, condenando o INSS a:
a) implementar a aposentadoria
por invalidez em favor do segurado;
b) pagar as prestações
retroativas da aposentadoria desde a data de entrada do requerimento administrativo
(DER). Em outras palavras, condenou a autarquia a pagar os meses de
aposentadoria por invalidez desde 04/04/2014.
Recurso do INSS
O INSS recorreu contra a sentença
questionando unicamente o pagamento das prestações retroativas.
A autarquia argumentou o
seguinte:
– no período de 04/04/2014 (DER) até
05/05/2015 (concessão judicial da aposentadoria por invalidez), o segurado
continuou trabalhando;
– ocorre que
a Lei nº 8.213/91 proíbe que o segurado receba benefício por incapacidade
(auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez) de forma concomitante com
salário. Os dispositivos invocados da Lei foram os seguintes:
Art. 42. A aposentadoria por
invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida
ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado
incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe
garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.
Art. 46. O aposentado por invalidez
que retornar voluntariamente à atividade terá sua aposentadoria automaticamente
cancelada, a partir da data do retorno.
Art. 59. O auxílio-doença será devido
ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência
exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua
atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.
– desse modo, o INSS argumentou que,
com no período 04/04/2014 a 05/05/2015, o segurado ainda estava trabalhando e
recebeu salário, ele não tem direito às parcelas de auxílio-doença ou
aposentadoria por invalidez relativas a esse interregno. O juiz deveria ter
feito esse desconto;
– as parcelas do benefício deveriam
ser pagas somente a partir da data em que ele deixou de trabalhar.
A tese do INSS foi acolhida
pelo STJ?
NÃO.
O segurado que, considerado
incapaz em termos previdenciários, tem que trabalhar para manter seu sustento
enquanto aguarda a definição sobre a concessão do benefício por incapacidade,
não pode ser penalizado com o não recebimento do benefício nesse período.
Vamos entender com calma.
Segurado que recebe benefício por incapacidade, em regra, não pode
trabalhar; essa premissa está correta
O auxílio-doença e a
aposentadoria por invalidez possuem uma função substitutiva da renda auferida
pelo segurado. Em outras palavras, eles existem para substituir a remuneração
do trabalhador. Como ele não tem condições de trabalhar, receberá um benefício
previdenciário no lugar.
O pressuposto para a concessão do
auxílio-doença e da aposentadoria por invalidez é a incapacidade do segurado.
Dito de outro modo, esses benefícios só são concedidos porque se está
considerando que o segurado não tem condições de trabalhar. No auxílio-doença
essa incapacidade é temporária. Na aposentadoria por invalidez, é uma incapacidade
permanente.
Ora, se o
segurado está incapacitado e, por isso, a Previdência concede a ele o
benefício, não é correto que ele volte a trabalhar depois de já estar recebendo
o auxílio-doença ou a aposentadoria por invalidez. Se fizer isso, ou seja, se
voltar a trabalhar, isso significa que está apto e, portanto, o benefício é
automaticamente cancelado, conforme determina o art. 46 e o art. 60, §§ 6º e 7º
da Lei nº 8.213/91:
Art. 46. O aposentado por invalidez
que retornar voluntariamente à atividade terá sua aposentadoria automaticamente
cancelada, a partir da data do retorno.
Art. 60 (…)
§ 6º O segurado que durante o gozo do
auxílio-doença vier a exercer atividade que lhe garanta subsistência poderá ter
o benefício cancelado a partir do retorno à atividade.
§ 7º Na hipótese do § 6º, caso o
segurado, durante o gozo do auxílio-doença, venha a exercer atividade diversa
daquela que gerou o benefício, deverá ser verificada a incapacidade para cada
uma das atividades exercidas.
Situação é diferente se o
segurado requereu administrativamente o benefício e lhe foi negado: ele é
obrigado a trabalhar enquanto aguarda o desfecho na via judicial
No caso de João, a situação é
diferente da proibição legal:
• João requereu o benefício, que
lhe foi indeferido, e acabou trabalhando enquanto não obteve seu direito na via
judicial;
• A lei trata da situação em que
o benefício é concedido, o segurado já está recebendo um benefício que
substitui sua antiga fonte de renda e, mesmo assim, ele resolve voltar a
trabalhar.
No caso de João houve uma falha
na função substitutiva da renda, considerando que o benefício por incapacidade
foi negado.
O segurado estava incapacidade e,
mesmo assim, por falha administrativa do INSS, não lhe foi garantido o sustento.
Logo, não é exigível que o segurado fique sem qualquer fonte de renda enquanto
aguarda o resultado do processo judicial.
Por culpa do INSS, resultado do
equivocado indeferimento do benefício, o segurando teve de trabalhar,
incapacitado, para o provimento de suas necessidades básicas. Isso é chamado
pela doutrina e jurisprudência de “sobre-esforço”.
Vedação ao enriquecimento
sem causa
A tese defendida pelo INSS ofende
o princípio da vedação do enriquecimento sem causa.
Isso porque, por culpa da
autarquia (indeferimento equivocado do benefício), o segurado foi privado do
auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez. O INSS, mesmo assim, deseja economizar
esse período em que já deveria estar pagando o benefício.
É indevido o desconto, em benefícios por incapacidade, de período
no qual houve exercício de atividade remunerada, ou recolhimento de contribuições,
no curso de demanda judicial contra o indeferimento administrativo, sob pena de
prestigiar o enriquecimento da autarquia, que deu causa à lide.
STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.393.909/SP, Rel. Min. Gurgel de
Faria, julgado em 9/5/2019.
Segurado está de boa-fé
O segurado que trabalha enquanto
espera a concessão de benefício por incapacidade, está atuando de boa-fé. Enquanto
a função substitutiva da renda do trabalho não for materializada pelo efetivo
pagamento do auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez, é legítimo que o
segurado exerça atividade remunerada para sua subsistência independentemente do
exame da compatibilidade dessa atividade com a incapacidade laboral.
O STJ fixou a seguinte tese
sobre o tema:
No período
entre o indeferimento administrativo e a efetiva implantação de auxílio-doença
ou de aposentadoria por invalidez, mediante decisão judicial, o segurado do
RPGS tem direito ao recebimento conjunto das rendas do trabalho exercido, ainda
que incompatível com sua incapacidade laboral, e do respectivo benefício
previdenciário pago retroativamente.
STJ. 1ª
Seção. REsp 1.788.700-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 24/06/2020
(Recurso Repetitivo – Tema 1013) (Info 675).
Esse era o entendimento que já
prevalecia tanto no STJ como na TNU:
Súmula 72-TNU: É possível o recebimento de benefício por
incapacidade durante período em que houve exercício de atividade remunerada
quando comprovado que o segurado estava incapaz para as atividades habituais na
época em que trabalhou.
Por favor, peço novamente para
que não confunda:
a) o segurado está recebendo
benefício por incapacidade regularmente e passa a exercer atividade remunerada
incompatível com sua incapacidade: o benefício é automaticamente cancelado.
Segurado não tem direito.
b) o segurado requereu o
benefício e foi negado. Ele ingressa com pedido judicial. Enquanto aguarda o
desfecho do processo ele continua ou retorna ao trabalho: caso a sentença
judicial seja favorável, ele terá direito ao pagamento retroativo do benefício
mesmo que seja concomitante com o período trabalhado. Segurado não violou a lei,
não podendo ser penalizado com o não recebimento do benefício nesse período.
Última dica: fique atento com a
expressão “sobre-esforço”.