A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) repudiou, em nota, a determinação de prisão do DJ Rennan da Penha, idealizador do \”Baile da Gaiola\”. Acusado de associação para o tráfico, o músico foi inocentado em primeira instância por insuficiência de provas, mas o Ministério Público recorreu e a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ-RJ) autorizou, há duas semanas, a expedição do mandado de prisão. Para a OAB, a decisão é \”teratológica\” — termo usado no Direito para definir uma medida absurda, monstruosa — e trata-se de uma tentativa de\”criminalização da arte popular\” .\”

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A teratologia do caso, ao emitir juízo de valor negativo em relação a alguém que demonstra afeto a pessoas que faleceram na falida guerra às drogas ou que possua atividade econômica lícita vinculada a um estilo musical marginalizado pela classe dominante da sociedade, salta aos olhos\”, afirma a instituição.

A OAB também acrescentou confiar no Poder Judiciário para que \”os direitos e garantias fundamentais do cidadão Rennan Santos da Silva\” sejam respeitados e para que as instâncias superiores reavaliem o caso.\”

Isto posto, por meio de sua Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito (CDEDD), a OAB/RJ manifesta preocupação e repúdio ao uso do sistema de justiça criminal contra setores marginalizados da sociedade com a finalidade de reproduzir uma ideologia dominante em detrimento da cultura popular.\”

A sentença foi muito criticada pela defesa e setores da sociedade civil, que a consideraram tecnicamente frágil. Uma manifestação foi marcada pelas redes sociais para a tarde desta quinta e o evento já tem mais de 10 mil interessados. O protesto, que inicialmente seria feito na frente do TJ-RJ, foi realocado para a porta do Circo Voador, na Lapa, a pedido da defesa de Rennan.\”

Não há qualquer prova de vínculo entre DJ Rennan e o crime, os desembargadores se basearam em um único depoimento de uma testemunha, um adolescente, por ocasião de sua apreensão em flagrante, que disse que ele seria um \’olheiro do tráfico\’, bem como em uma foto postada no Facebook durante o carnaval com uma arma de brinquedo. Por que toda atividade que é criada na periferia é taxada de criminosa ou ilegal pelo Estado? O Estado age mais uma vez de forma racista ao tentar criminalizar a cultura popular e o funk carioca\”, acusam os organizadores.

O que diz a sentença

No acórdão, o desembargador Antônio Carlos Nascimento Amado, da Terceira Câmara Criminal, afirma que o DJ Rennan da Penha atuava como \”olheiro\” do tráfico, além de organizar bailes e produzir músicas que enalteciam traficantes. E apolícia teria chegado ao seu nome a partir de declarações de uma testemunha.

A sentença também destaca que, em alertas sobre a entrada de policiais na comunidade, publicados por Rennan, não há \”qualquer chamada ou referência aos moradores para proteção dos seus veículos\”, e que os avisos também beneficiam o tráfico.

E que há registro nos autos de fotos publicadas pelo músico de possíveis pessoas mortas, com referências de afeto e saudades, sem explicação que não seja \”uma possível exaltação à morte durante a repressão ao tráfico\”.\”Consequentemente, levando em conta o depoimento do delegado e do adolescente, e a confirmação pela testemunha da existência de bailes funk na comunidade com venda de entorpecente, a confissão do próprio Rennan de que os organiza e recebe rendimentos através desta atividade, bem como a exibição das postagens em redes sociais nitidamente indicativas do seu envolvimento com o tráfico de drogas, vejo como suficiente a prova colhida de forma a permitir a procedência do pleito ministerial de reforma da sentença absolutória\”, afirma o desembargador.

Entenda o caso

Uma das testemunhas que acusam Rennan, um adolescente que confessou ter ligação com o tráfico, afirmou que o DJ é conhecido como \”DJ dos bandidos\”.

\”O adolescente disse que Rennan \’é conhecido como DJ dos bandidos, sendo responsável pela organização de bailes funks proibidos nas comunidades do Comando Vermelho, para atrair maior quantidade de pessoas e aumentar as vendas\’\”, diz o documento. Ainda de acordo com a testemunha, a atuação de Rennan nos bailes funks seria \”deliberadamente orientada ao incremento do tráfico de entorpecentes, em associação ao Comando Vermelho\”.

Outra testemunha, um delegado de polícia, afirmou que Rennan atuava \”na área de vigilância\” e destacou que sua atuação dentro da organização criminosa consistia em \”informar a movimentação dos policiais através de redes sociais e contatos no aplicativo \’Whatsapp\’\”. De acordo com esse relato, o teor das informações eram frases como \”o Caveirão está subindo pela Rua X\” ou \”a equipe está perto do ponto tal\”. Já um delegado da Polícia Civil testemunhou que constavam nos autos fotos do DJ ostentando armas \”de grosso calibre\”.

Dois policiais militares que atuavam na UPP da comunidade à época não citaram Rennan em seus depoimentos. Um deles disse que a UPP sempre recebia reclamações sobre drogas e armas nos bailes, mas não conseguia verificá-las porque era recebida a tiros e não era possível chegar ao local. O agente declarou não conhecer Rennan, nem ter informações de sua atuação na organização dos eventos.

Versão da defesa

As testemunhas de defesa, um ativista e um empresário do DJ, argumentaram que alertas sobre a movimentação policial são comuns entre moradores de comunidades, na tentativa de se proteger de possíveis tiroteios ou de danos aos carros causados pela entrada do caveirão em ruas estreitas. O empresário ressaltou que as músicas tocadas pelo DJ nos bailes retratam a realidade das favelas e não enaltecem os criminosos.

Ao ser interrogado, o próprio Rennan declarou que \”não tem tempo disponível nem necessidade financeira de exercer a atividade de \’olheiro\’\”, pois realiza em média 15 (quinze) bailes por semana\”. Ele negou que financiasse os bailes ou que já houvesse recebido dinheiro do tráfico, explicando que quem custeia os eventos são os comerciantes da região, que instalam barracas para venda de bebida e reúnem dinheiro para pagar os músicos e o equipamento de som. Sobre a foto com a arma, alegou que havia sido tirada no carnaval e que a réplica era feita de madeira e fita isolante.

Na primeira instância, o músico acabou inocentado das acusações por insuficiência de provas.\”Na ausência de comprovação de se tratar efetivamente arma de fogo, constituindo as demais publicações manifestações da cultura cotidiana de quem reside um comunidade onde há tráfico de drogas, esses elementos são insuficientes à sustentação de um decreto condenatório\”, afirma a sentença.


Confira, na íntegra, a nota da OAB-RJ

NOTA DE REPÚDIO À CRIMINALIZAÇÃO DA ARTE POPULAR

O controle das classes sociais subalternas e marginalizadas pelo Estado brasileiro é realizado por intermédio de processo de criminalização cujo critério determinante é a posição de classe do “autor” e de sua cor de pele.

Nos idos do Século 20, dos batuques de candomblé e pernadas de capoeira da Pequena África, da zona do Cais do Porto até a Cidade Nova, tendo como capital a Praça Onze, verificou-se a repressão penal do samba e, de modo geral, das festas populares como o Carnaval, que passou a ser cada vez mais controlado e disciplinado pelo Estado, das ruas para o desfile em cortejo na Avenida.

À medida que a indústria cultural transformou o samba em mercadoria a ser consumida pelas classes médias e altas, o funk surgiu como manifestação cultural popular marginal no Rio de Janeiro, ao lado do rap, de maior expressão em São Paulo.

O funk é uma espécie de crônica do dia a dia dos moradores dos morros e favelas cariocas, com especial destaque para o “proibidão”, que sofre criminalização por suposta “apologia ao crime”.

Nos idos de 2013, o governo estadual na gestão Sérgio Cabral editou a Resolução 13, que impedia a realização de bailes funks nas comunidades “pacificadas”, pois dava a última palavra sobre o evento para o comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Em seguida, a resolução foi revogada e devolveu-se aos órgãos competentes a aferição do cumprimento das normas gerais para a realização de eventos, como, por exemplo, o Corpo de Bombeiros.


Recentemente, o Decreto Municipal 43.219/2017, que condicionava a realização de evento à aprovação do gabinete do prefeito Marcelo Crivella, foi declarado inconstitucional por configurar censura prévia e violação à liberdade de expressão e de crença, sobretudo nas áreas culturais e religiosas de matrizes africanas. No referido ano, foi apresentado projeto de lei, de relatoria do senador Romário, que pretende criminalizar o funk como “crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família”.

Na última quarta-feira, dia 20, após o DJ Rennan da Penha, criador do “Baile da Gaiola” – que já reuniu dezenas de milhares de pessoas em seus eventos – ser absolvido em primeira instância por ausência de provas suficientes para sustentar um decreto condenatório, uma vez que se tratava de “manifestações da cultura cotidiana de quem reside numa comunidade onde há tráfico de drogas”, a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça julgou procedente o apelo ministerial para condená-lo a seis anos e oito meses de prisão em regime inicialmente fechado pelo crime de associação ao tráfico, sob o argumento de que “chamam a atenção fotos de possíveis pessoas mortas com referência de afeto e saudades”, bem como “a confissão do próprio Rennan de que organiza os bailes funk e recebe rendimentos através dessa atividade (…)”. A decisão considerou suficiente a prova colhida, de forma a permitir a procedência do pleito ministerial de reforma da sentença absolutória.


A teratologia do caso, ao emitir juízo de valor negativo em relação a alguém que demonstra afeto a pessoas que faleceram na falida guerra às drogas ou que possua atividade econômica lícita vinculada a um estilo musical marginalizado pela classe dominante da sociedade salta aos olhos.

Isto posto, por meio de sua Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito (CDEDD), a OAB/RJ manifesta preocupação e repúdio ao uso do sistema de justiça criminal contra setores marginalizados da sociedade com a finalidade de reproduzir uma ideologia dominante em detrimento da cultura popular. No uso de suas atribuições regimentais, em conformidade com os anseios da sociedade civil, que está atenta e preocupada com o caso, a Ordem declara que confia no Poder Judiciário no sentido de que os direitos e garantias fundamentais do cidadão Renan Santos da Silva serão respeitados e o caso será reavaliado oportunamente nas cortes superiores, como já indicado pela defesa técnica, a qual impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça.\”

Fonte: O Globo

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