Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição


 

O caso concreto foi o seguinte:

Em julho de 1943, durante a II
Guerra Mundial, o barco pesqueiro Changri-lá afundou após ataque pelo submarino
alemão U-199, no mar territorial brasileiro, nas proximidades da Costa de Cabo
Frio.

Os netos de um dos tripulantes
ajuizaram ação de indenização por danos morais e materiais contra a República
Federal da Alemanha.

 

Onde essa
ação foi proposta?

Na Justiça Federal de 1ª instância da Seção Judiciária do
Rio de Janeiro. Isso com fundamento no art. 109, II, da CF/88:

Art. 109. Aos juízes federais compete
processar e julgar:

(…)

II – as causas entre
Estado estrangeiro
ou organismo internacional e
Município ou pessoa domiciliada ou residente no País;

 

Sentença

O juiz federal extinguiu o
processo sem resolução do mérito alegando a impossibilidade jurídica de pedido,
tendo em vista que não seria permitida a responsabilidade civil de um país
estrangeiro por ato de guerra.

 

A decisão do magistrado
está de acordo com a atual jurisprudência do STF e do STF sobre o tema?

NÃO. Em 2021, o STF, em
precedente inédito e extremamente relevante, decidiu que:

A imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro não alcança atos
de império ofensivos ao direito internacional da pessoa humana praticados no
território brasileiro, tais como aqueles que resultem na morte de civis em
período de guerra.

STF. Plenário. ARE 954858/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em
20/8/2021 (Repercussão Geral – Tema 944) (Info 1026).

 

Vamos entender com calma os
principais pontos da decisão.

 

Imunidade de jurisdição

Imunidade de jurisdição é a
impossibilidade de que Estados estrangeiros, organizações internacionais e
órgãos de Estados estrangeiros sejam julgados por outros Estados contra a sua
vontade (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito
internacional público e privado
. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 207).

No Brasil, a matéria é regida pelo
Direito costumeiro, tendo em vista que o país ainda não se vinculou à Convenção
das Nações Unidas sobre a Imunidade de Jurisdição dos Estados ou a tratado
congênere.

 

Teorias
sobre a imunidade de jurisdição

a) Teoria da imunidade absoluta
(“iguais não podem julgar iguais”)

Para esta teoria, o Estado estrangeiro
goza de imunidade total e absoluta, somente podendo ser julgado por outro
Estado caso renuncie a imunidade.

O Estado estrangeiro não poderia ser
julgado pelas autoridades de outro Estado contra a sua vontade porque não
haveria superioridade de um Estado sobre o outro. Logo, o Estado somente
poderia se submeter ao julgamento de outro se consentisse com isso. Baseia-se
no princípio de que “iguais não podem julgar iguais” (par in parem non habet jurisdictionem).

 

b) Teoria da imunidade relativa,
limitada ou restrita
(atos de império e atos de gestão)

Com o passar dos anos, as relações entre os Estados,
principalmente comerciais, foram se tornando mais frequentes e intensas. Esse
fato fez com que a teoria clássica, acima exposta, passasse a ser questionada.
Diante disso, foi idealizada a chamada teoria dos atos de império e atos de
gestão, que preconiza, em síntese, o seguinte:

Atos de império

(acta jure imperii)

Atos de gestão

(acta jure gestionis ou jure
privatorum
)

Atos que o Estado pratica no
exercício de sua soberania.

 

Atos que o Estado pratica como se
fosse um particular. Não têm relação direta com sua soberania.

Exs: negativa de visto, negativa de
asilo político.

Ex: contrato de luz/água, contrato de
compra e venda, contratação de empregados, acidente de veículo.

Quando o Estado estrangeiro pratica
atos de império, ele desfruta de imunidade de jurisdição.

Quando o Estado estrangeiro pratica
atos de gestão, ele NÃO goza de imunidade de jurisdição.

 

Esta é a teoria que prevalece
atualmente na jurisprudência, conforme explicou o Min. Edson Fachin:

A promulgação da Constituição da República de 1988
representou marco na alteração da jurisprudência do STF de modo a abarcar a
divisão de feitos do Estado soberano em atos de gestão e de império, sendo os
primeiros passíveis de cognoscibilidade pelo Poder Judiciário brasileiro.

Superou-se, assim, a máxima do par in parem non habet judicium, que remonta à formação dos Estados
Modernos, vedando o julgamento de iguais por iguais, e se passou a relativizar,
numa compreensão cosmopolita mais adequada ao presente, a imunidade a partir da
distinção entre atos de império (acta
jure imperii
) e atos de gestão (acta
jure gestionis ou jure privatorum
), atribuindo-se imunidade apenas àqueles,
por derivarem diretamente da soberania.

De todo modo, a imunidade executória remanesceu absoluta
em todos os atos do Estado soberano em território estrangeiro, à luz da
Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas (Dec. 56.435/1965).

 

Distinção existente no caso concreto: ilicitude do ato e
ofensa aos direitos humanos

No caso concreto, o Min. Relator Edson Fachin propôs o
reconhecimento da derrotabilidade da regra imunizante de
jurisdição em relação a atos de império praticados por Estado soberano e que
representem “atos ofensivos ao direito internacional da pessoa humana
praticados no território brasileiro, tais como aqueles que resultem na morte de
civis em período de guerra”.

A frase pode parecer confusa, mas ficará bem clara.

Inicialmente, vale a pena esclarecer em que consiste a
expressão “derrotabilidade”:

“A derrotabilidade das normas é
fenômeno relacionado à não aplicação, total ou parcial, de certa norma
jurídica, apesar de exteriorizados os pressupostos a partir dos quais se
deveria aplicá-la em condições ‘normais’.

(…)

Num breve resumo,
a teoria da derrotabilidade normativa parte da premissa se gundo a qual as
normas jurídicas se baseiam em raciocínios cujas justificativas podem  ser ‘derrotadas’ diante da exteriorização de
circunstâncias anormais e que não foram consideradas na formulação normativa.

(…)

A ‘derrotabilidade” tem a ver com os
raciocínios lógicos que, diante da ocorrência de situações não consideradas,
superam as conclusões anteriormente obtidas.

(…)

Como sintetizado por ANDRÉ RUFINO,
afirmar ‘que uma norma jurídica é ‘derrotável’ equivale a dizer que ela está
sujeita a exceções (implícitas) que não podem ser exaustivamente identificadas
previamente, de forma que não é possível antecipar quais as circunstâncias que
serão determinantes e suficientes para sua aplicação” (2009, p. 117). (…)” (BERNARDES,
Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional.
Tomo I. 9ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 269-272).

 

Veja como o tema já foi cobrado em prova:

þ
(Analista TRE/PI 2016 CEBRASPE) A derrotabilidade de uma norma constitucional
ocorrerá caso uma norma Jurídica deixe de ser aplicada em determinado caso
concreto, permanecendo, contudo, no ordenamento jurídico para regular outras
relações jurídicas. (certo).

 

Assim, o Min. Fachin afirmou que, embora, em regra,
existe imunidade de jurisdição no caso de atos de império praticados por Estado
estrangeiro, existe uma espécie de “exceção”: os atos que impliquem violação a
direitos humanos. Desse modo, os atos ilícitos praticados por Estados
estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de
jurisdição.

 

Caracterização do ato praticado como violador de direitos
humanos

Em julho de 1943, quando o navio
pesqueiro “Changri-lá” foi afundado, o Brasil participava oficialmente da
Segunda Guerra Mundial, atuando contra os alemães. Assim, a resposta
tradicional a ser dada seria afirmar que esse ato da Alemanha não poderia se
submeter à jurisdição brasileira por se tratar – aparentemente – de um ato de
império.

No entanto, há algumas
ponderações a serem feitas em relação a essa conclusão.

O ato praticado pela Alemanha,
ainda que num contexto de guerra, deve ser considerado ilegítimo.

O
fato ocorreu durante a Segunda Guerra. Logo, ele deve ser analisado segundo as
regras e os costumes internacionais que regem os conflitos armados, ou seja, de
acordo com o direito internacional humanitário.

Naquele período (1943), já se
encontrava em vigor o regime instituído pela Convenção da Haia, de 1907, que
conferiu especial proteção, durante a guerra, a pessoas que não são
combatentes.

“A existência e a liberdade dos
habitantes pacíficos do território inimigo devem ser respeitadas. Assim, os
habitantes que não tomam parte na luta e se mostram inofensivos não devem
sofrer qualquer arbitrariedade.” (ACCIOLY, Hildebrando e SILVA, G. E. do
Nascimento e. Manual de direito internacional público. 14ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2000. p. 457).

Desse modo, o ato praticado pelo
submarino alemão contra o navio pesqueiro, que ocasionou a morte de cidadãos
brasileiros não combatentes, representou violação aos princípios gerais do
direito internacional humanitário.

Ademais, existem regras
específicas de proteção dos barcos de pesca em casos de conflitos marítimos.
Tais regras, que são normas de direitos humanos, também foram violadas.

O próprio Estatuto do Tribunal
Militar Internacional de Nuremberg, em seu artigo 6, “b”, reconhece como
“crimes de guerra” as violações das leis e costumes de guerra, entre as quais,
o assassinato de civis, inclusive aqueles em alto mar.

O ato praticado viola, por fim, o
direito humano à vida, incluído no artigo 6 do Pacto sobre Direitos Civis e
Políticos nos seguintes termos: “O direito à vida é inerente à pessoa humana.
Esse direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente
privado de sua vida.”

 

Exclusão da imunidade
estatal por ato ilícito violador dos direitos humanos

Estabelecida, portanto, a
premissa de que o ato praticado foi violador dos direitos humanos, cabe agora
analisar se ele é protegido, ou não, pela imunidade da jurisdição estatal.

Vale ressaltar que a imunidade de
jurisdição não é uma regra absoluta, tanto que a própria Alemanha já aderiu a
Tratados em que renunciou a sua imunidade.

Negar o direito dos familiares de
que eles busquem a indenização ou exigir que procurem a jurisdição estrangeira
é reservar-lhe a anomia, o não-direito, o “estado de exceção”.

A imunidade estatal, neste caso,
instaura essa zona de indiferença do Direito dentro do próprio Direito.

Os direitos humanos – à vida, à verdade e ao acesso à
justiça –, tal como determina o art. 4º, V, da Constituição, são
preponderantes. Assim, os seres humanos devem preponderar em relação à
soberania dos Estados. Nesse sentido, a própria Constituição Federal afirma
que, nas relações internacionais que o Brasil mantiver, deverá ser dada a
prevalência aos direitos humanos:

Art. 4º A República Federativa do Brasil
rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

(…)

II – prevalência dos direitos humanos;

 

Tese fixada pelo STF:

Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação
a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição.

STF. Plenário. ARE 954858/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em
20/8/2021 (Repercussão Geral – Tema 944) (Info 1026).

 

STJ teve que mudar seu
entendimento e acompanhar o STF

O STJ perfilhava o entendimento
de que a República Federal da Alemanha não se submetia à jurisdição nacional
para responder à ação de indenização por danos morais e materiais, decorrentes
de ofensiva militar realizada durante a Segunda Guerra Mundial, em razão de a
imunidade acta iure imperii revestir-se de caráter absoluto (RO 60/RJ,
relator Ministro Luis Felipe Salomão, relator para acórdão Ministro Marco
Buzzi, Segunda Seção, julgado em 09/12/2015, DJe 19/02/2016).

Ocorre que, diante da decisão do STF, o STJ foi obrigado a
superar seu antigo posicionamento. Houve, portanto, um overruling e o
atual entendimento do STJ é o seguinte:

Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros
em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição.

STJ. 4ª
Turma. RO 109-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 07/06/2022 (Info
740).

Artigo Original em Dizer o Direito

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