Imagine a seguinte situação
hipotética:

Carlos foi denunciado pelo
Ministério Público pela prática de um crime.

A ação penal foi distribuída para
a 5ª Vara Criminal, que tem Mário como Juiz titular.

Na audiência, Carlos compareceu
assistido por Ronaldo como seu advogado.

Ronaldo apresentou arguição de suspeição em face Mário alegando
que eles (advogado e juiz) são inimigos. A defesa pediu o reconhecimento da
suspeição prevista no art. 145, I, do CPC, aplicável no processo penal por
força do art. 3º do CPP:

CPC/Art. 145. Há suspeição do juiz:

I – amigo íntimo ou inimigo de
qualquer das partes ou de seus advogados;

 

CPP/Art. 3º A lei processual penal
admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento
dos princípios gerais de direito.

 

A defesa comprovou que, em outros
processos, o magistrado excepto já foi reconhecido como suspeito para julgar
processos que envolvam o referido advogado.

A despeito disso, o juiz excepto não
aceitou a suspeição (art. 97 do CPP).

O Tribunal de Justiça, por sua vez, não reconheceu a
suspeição no caso concreto sob o argumento de que a constituição de Ronaldo
como advogado do réu foi uma manobra processual da defesa para afastar o juiz Mário
da presidência da ação penal. Logo, deveria ser aplicada a parte final do art.
256 do CPP:

Art. 256. A suspeição não poderá ser
declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la.

 

O Tribunal afirmou, ainda, que:

• não havia procuração conferida
pelo réu ao advogado para atuar na causa;

• o advogado já atuou em outros
casos envolvendo o magistrado e não arguiu sua suspeição.

A defesa interpôs recurso
especial.

 

Para o STJ, o Tribunal de
Justiça agiu corretamente neste caso?

NÃO.

 

Dimensão dúplice do art.
256 do CPP

O art. 256 do CPP tem dimensão
dúplice, sendo fundamento na boa-fé objetiva e tendo como objetivo gerar uma economia
comportamental.

No que se refere ao primeiro
aspecto (boa-fé objetiva), o art. 256 do CPP impõe às partes processuais a
observância de um standard comportamental mínimo, de forte carga moral.

No que tange ao segundo ponto
(economia comportamental), esse dispositivo busca desestimular comportamentos
aproveitadores, pois a parte mal-intencionada saberá de antemão que não
conseguirá afastar da causa, com eventuais ofensas, um juiz cujo perfil lhe
desagrade.

 

Art. 256 do CPP não pode
ser aplicado a partir de meras conjecturas

A despeito da sua relevância, é
certo que o art. 256 do CPP não pode ser aplicado com base em argumentos
genéricos, intuições, conjecturas ou desconfianças.

Para a aplicação do art. 256 do
CPP, é necessário que se decline precisamente o porquê de enxergar, na conduta
do excipiente, a criação dolosa de uma hipótese de suspeição.

No caso concreto, o TJ afirmou
que “a impressão que se tem é que o advogado excipiente ingressou nos autos com
o objetivo de dar causa à suspeição”.

Para o STJ, essa argumentação não
foi suficiente. Nada de concreto foi dito pelo Tribunal de Justiça a respeito
da base fática de incidência do art. 256 do CPP. Não disse o TJ, por exemplo,
que o advogado teria provocado o magistrado e o insultado a fim de gerar a
suspeição – até porque a inimizade entre eles remonta pelo menos ao ano de
2005, 13 anos antes de ajuizada esta exceção. Também não se colhe do acórdão
recorrido a indicação de nenhuma conduta eivada de má-fé ou dolo, praticada
pelo causídico, para buscar o afastamento do juiz.

Na verdade, o único fato
efetivamente imputado pelo Tribunal ao defensor foi sua suposta habilitação
tardia na causa, como se esse fato tivesse alguma relação com o art. 256 do
CPP. A lei não estabelece nenhum marco temporal final para o ingresso de
representantes processuais, que podem se habilitar no processo a qualquer
tempo, inclusive nas instâncias superiores.

No caso, o único fato
efetivamente imputado pelo Tribunal ao defensor foi sua suposta habilitação
tardia na causa, como se esse fato tivesse alguma relação com o art. 256 do
CPP. Ora, a lei não estabelece nenhum marco temporal final para o ingresso de
representantes processuais, que podem se habilitar no processo a qualquer
tempo, inclusive nas instâncias superiores. No presente caso, o que o aresto
impugnado narra é simplesmente o acréscimo de um advogado à defesa do réu,
quando o feito ainda tramitava em primeiro grau de jurisdição, em seus estágios
iniciais.

Se a simples habilitação do
advogado nos autos fosse suficiente para atrair a aplicação do art. 256 do CPP,
até mesmo seu direito fundamental à liberdade profissional (art. 5º, XIII, da
CF/88) ficaria prejudicado, porque somente poderia exercer sua atividade
advocatícia em processos fora da competência territorial do juízo excepto. Isso
ofende, igualmente, a prerrogativa fundamental da advocacia contida no art. 7º,
I, da Lei nº 8.906/94, que assegura ao advogado o direito de “exercer, com
liberdade, a profissão em todo o território nacional”.

O que a legislação determina é o
completo oposto: com o reconhecimento da suspeição, é o juiz quem se remove da
causa, nos termos do art. 99 do CPP, não cabendo atribuir ao advogado – sem lei
autorizadora – a obrigação de afastar-se preventivamente dos processos
conduzidos pelo magistrado suspeito, que seria o resultado prático decorrente
da interpretação conferida pelo Tribunal de origem ao art. 256 do CPP.

 

Designação apud acta

Também não deve ser aceita a
argumentação de que não havia procuração.

O art. 266 do CPP permite a constituição de defensor pelo
réu em audiência, mesmo sem a apresentação de instrumento da mandato:

Art. 266.  A constituição de defensor independerá de
instrumento de mandato, se o acusado o indicar por ocasião do interrogatório.

 

Trata-se da conhecida designação apud
acta
, peculiaridade do processo penal que privilegia a instrumentalidade
das formas e a ampla defesa, facilitando o exercício da atividade advocatícia
pela remoção de entraves burocráticos, diante da inequívoca manifestação de
vontade da parte em constituir seu representante.

O art. 266 do CPP excepciona,
assim, a regra geral de outorga de poderes ao advogado por escrito.

O STJ já validou, por diversas
vezes, a aplicabilidade atual do art. 266 do CPP, que resistiu ao teste do
tempo e passou incólume pelas diversas reformas do CPP, sem revogação tácita ou
expressa de seu teor.

 

O fato de o advogado ter
atuado em outras causas com o juiz não impede a arguição de suspeição neste

O fato de o advogado não ter
suscitado a suspeição do magistrado em outros processos não é fundamento
bastante para, por si só, permitir que o Judiciário feche os olhos a tão grave
vício de parcialidade.

Fora das estritas hipóteses
legais de superação da suspeição – excepcionalíssimas por natureza -, não é
dado ao julgador criar formas de convalidação dessa deficiência na validade
processual.

Se há alguma contradição na
atuação do advogado ao não suscitar a suspeição enquanto representava outros
clientes em outros processos, essa é uma questão a ser dirimida entre o
causídico e seus representados, ou entre ele e a OAB, do ponto da eficiência de
seu desempenho profissional. Por isso, seria possível pensar, em tese, numa
eventual responsabilidade civil ou disciplinar do advogado por alguma
deficiência no trabalho que prestou em outros processos, caso algum de seus
clientes tenha sofrido prejuízo por um suposto lapso profissional.

 

Em suma:

 

DOD Plus

É possível aplicar, no
processo penal, as hipóteses de suspeição previstas no art. 145 do CPC?

SIM. A jurisprudência do STJ
reconhece que as hipóteses de suspeição previstas no art. 254 do CPP são exemplificativas,
e, por isso, admite a aplicação do art. 145, IV, do Código de Processo Civil (STJ.
5ª Turma. AgRg no HC n. 699.936/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,
julgado em 8/3/2022).

Cuidado para não confundir:

• Rol de impedimentos (art. 252):
taxativo.

• Rol de suspeições (art. 254):
exemplificativo.

Artigo Original em Dizer o Direito

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