Olá amigos do Dizer o Direito,
Vamos hoje tratar de um julgado do STJ
que pode ser transformado em uma excelente questão discursiva ou mesmo prática
de sentença.
Imagine
a seguinte situação:
O Ministério Público Federal iniciou
uma investigação com vistas a apurar crime de racismo, praticado por intermédio
de mensagens trocadas em uma rede social na internet contra negros e judeus.
A requerimento do MPF, o Juiz Federal de
uma vara de São Paulo decretou a quebra do sigilo telemático de alguns perfis do
Orkut®, sendo obtidos os dados dos usuários que postaram as mensagens criminosas.
Tendo em mãos o IP (protocolo de internet)
dos investigados, o MPF percebeu que apenas alguns residiam em São Paulo e que os
demais haviam enviado as mensagens de outros Estados do país, como por exemplo,
o Ceará. Diante disso, o Parquet requereu o desmembramento da investigação,
remetendo-se aos outros juízos federais a apuração quanto aos demais
investigados que não haviam mandado as mensagens de São Paulo.
O Juiz deferiu o desmembramento, fundamentando
a sua decisão no art. 70 do CPP:
Art. 70. A competência será, de regra,
determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa,
pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.
Em outras palavras, o magistrado afirmou
que, quanto às mensagens enviadas pelo investigado do Estado de São Paulo, a
Justiça Federal paulista seria competente. No entanto, quanto às mensagens encaminhadas
pelo investigado que morava no Ceará, seria competente uma das varas federais
localizadas naquele Estado.
Desse modo, o Juízo Federal de São
Paulo decidiu que deveria haver o desmembramento das investigações, razão pela
qual determinou a remessa de cópias dos autos a outras treze Seções Judiciárias,
de acordo com a origem da conexão de cada investigado.
Chegando o procedimento na Seção
Judiciária do Ceará, o Juiz Federal não concordou com o desmembramento e
devolveu os autos ao Juízo Federal de São Paulo, alegando que havia conexão
entre as mensagens enviadas pelo investigado do Ceará e aquelas remetidas pelos
investigados paulistas. Logo, as investigações deveriam continuar a tramitar no
Juízo Federal de São Paulo, que havia se tornado prevento.
Ao receber de volta os autos, o Juízo Federal
da Seção Judiciária de São Paulo suscitou conflito de competência.
Vamos
analisar os fatos acima narrados:
Por
que estes crimes estão sendo apurados pela Justiça Federal?
A divulgação de mensagens racistas pela
internet é competência da Justiça Federal com base no art. 109, V, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete
processar e julgar:
V – os crimes previstos em tratado ou
convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha
ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
Para que o delito seja de competência
da Justiça Federal com base neste inciso são necessários três requisitos:
a) Previsão do fato como crime no
Brasil;
b) Compromisso de combater este crime
assumido pelo Brasil em tratado ou convenção internacional; e
c) Relação de internacionalidade.
A relação de internacionalidade ocorre
quando:
• iniciada a execução do crime no
Brasil, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro;
• iniciada a execução do crime no
estrangeiro, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no Brasil.
No caso, o racismo é previsto como
crime no Brasil e se trata de um delito que o Brasil se comprometeu a reprimir com
base em tratados internacionais. Além disso, a divulgação das mensagens
racistas, apesar de ter ocorrido no Brasil, foi feita em rede social da
internet (Orkut), de forma que seu conteúdo ficará disponível para ser visualizado
por qualquer pessoa, em qualquer computador do mundo. Desse modo, estão preenchidos
os três requisitos acima listados.
Qual
dos dois Juízes está certo, segundo o STJ?
O Juiz Federal do Ceará.
Houve trocas de mensagens entre os
investigados, ou seja, uma espécie de conversa racista. Cada um enviando
mensagens racistas do seu computador, em Estados diferentes. 
Cada mensagem racista enviada por cada um
dos investigados constitui um crime diferente de racismo. Logo, esta troca de
mensagens entre os investigados não consiste em um crime único, mas sim em
vários delitos de racismo.
Desse modo, em tese, cada um desses crimes
de racismo poderia ser julgado na Seção Judiciária onde o investigado mandou a
mensagem. No Ceará poderia ser processado o agente que mandou as mensagens de
lá. Em São Paulo, o usuário que enviou o textos do Estado paulista e assim por
diante.
Aliás, em regra, a competência para processar
e julgar o crime de racismo praticado pela internet é do local de onde partiram
as mensagens com base justamente no art. 70 do CPP, tendo em vista que, quando
o usuário da rede social posta a manifestação racista, ele, com esta conduta,
já consuma o crime.
No entanto, o STJ, mesmo reconhecendo
isso, afirmou que, entre as condutas criminosas praticadas, existe conexão.
O
que é conexão no processo penal?
No processo penal, a conexão ocorre
quando dois ou mais crimes possuem uma relação entre si que faz com que seja
recomendável que sejam julgados pelo mesmo juiz ou Tribunal.
Quais os fundamentos que justificam a
conexão?
• Economia processual (é possível que
sejam aproveitadas as mesmas provas);
• Melhor julgamento da causa
(permite-se que o julgador tenha uma visão mais completa dos fatos);
• Evitar decisões contraditórias.
Os
casos de conexão estão previstos em Lei?
SIM. Encontram-se elencados, de forma
taxativa, no art. 76 do CPP:
Art. 76.  A competência será determinada pela conexão:
I – se, ocorrendo duas ou mais
infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas
reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar,
ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II – se, no mesmo caso, houverem sido
umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir
impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
III – quando a prova de uma infração ou
de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra
infração.
Qual
espécie de conexão existe neste caso concreto?
Conexão “instrumental, probatória ou
processual”, prevista no art. 76, III, do CPP:
Art. 76.  A competência será determinada pela conexão:
III – quando a prova de uma infração ou
de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra
infração.
Por
que existe esta conexão probatória?
A circunstância na qual os crimes foram
praticados (troca de mensagens em comunidade virtual) significa que houve o estabelecimento
de uma relação de confiança entre os agentes, o que pode facilitar a identificação
da autoria e a reunião de maiores provas.
Como os agentes conversam entre si
sobre assuntos de interesse comum, possuindo uma afinidade de pensamentos sobre
os temas, é bem provável que tenha sido criada uma relação de cumplicidade que
poderá auxiliar nas investigações para que se descubram todos os envolvidos,
inclusive aqueles que se escondem através de nomes fictícios.
Qual
é a consequência processual pelo fato dos crimes serem conexos?
Em regra, os crimes conexos devem ser processados
e julgados conjuntamente, consoante prevê o art. 79 do CPP. A isso se dá o nome
de simultaneus processos.
Esta
reunião de processos para julgamento conjunto não viola o princípio do juiz
natural?
NÃO. Súmula 704-STF: Não viola as
garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração
por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de
função de um dos denunciados.
Os
crimes conexos serão sempre reunidos para serem julgados conjuntamente?
NÃO. O CPP prevê
situações em que os processos não serão reunidos, devendo ser julgados de forma
separada. A doutrina afirma que existem casos em que a separação é obrigatória por
força de lei (ex: incisos I e II do art. 79 do CPP) e outros em que a separação
é facultativa, ficando a cargo da avaliação do juiz (art. 80 do CPP).
Um exemplo de separação
obrigatória ocorre quando um dos crimes conexos já foi julgado. Neste caso, não
haverá reunião dos processos (art. 82 do CPP). É como afirma a Súmula 235 do
STJ:
A conexão não determina a reunião dos processos,
se um deles já foi julgado.
No
caso concreto, não havia nenhuma hipótese de separação obrigatória e o juiz
entendeu que era conveniente a reunião dos processos para julgamento conjunto. Qual
juízo será competente para apreciar os feitos conjuntamente?
O juízo da vara federal de São Paulo,
por ser este prevento.
A competência, na presente situação, deve
ser fixada pela prevenção, ou seja, será competente o Juízo que primeiro conheceu
dos fatos (Juízo Federal da 9ª Vara Criminal da Seção Judiciária de São Paulo/SP).
O critério da prevenção é fixado pelo art. 78, II, c, do CPP:
Art. 78. Na determinação da competência
por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras:
I – no concurso entre a competência do
júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri;
II
– no concurso de jurisdições da mesma categoria:
a) preponderará a do lugar da infração,
à qual for cominada a pena mais grave; (obs:
todos os crimes eram racismo).
b) prevalecerá a do lugar em que houver
ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem de igual
gravidade; (obs: não era possível saber,
ainda, o número de infrações praticadas)
c)
firmar-se-á a competência pela prevenção
, nos outros casos;
III – no concurso de jurisdições de
diversas categorias, predominará a de maior graduação;
IV – no concurso entre a jurisdição
comum e a especial, prevalecerá esta.
Ressalte-se que a presente solução já
havia sido dada pelo STJ em outro caso semelhante:

(…) 1. Cuidando-se de crime de
racismo por meio da rede mundial de computadores, a consumação do delito ocorre
no local de onde foram enviadas as manifestações racistas.
2.  
Na hipótese, é certo que as supostas condutas delitivas foram praticadas
por diferentes pessoas a partir de localidades diversas; todavia, contaram com
o mesmo modus operandi, qual seja,
troca e postagem de mensagens de cunho racista e discriminatório contra
diversas minorias (negros, homossexuais e judeus) na mesma comunidade virtual
do mesmo site de relacionamento.
3. Dessa forma, interligadas as
condutas, tendo a prova até então colhida sido obtida a partir de único núcleo,
inafastável a existência de conexão probatória a atrair a incidência dos arts.
76, III, e 78, II, ambos do CPP, que disciplinam a competência por conexão e
prevenção.
4.  
Revela-se útil e prioritária a colheita unificada da prova, sob pena de
inviabilizar e tornar infrutífera as medidas cautelares indispensáveis à perfeita
caracterização do delito, com a identificação de todos os participantes da
referida comunidade virtual. (…)
(CC
102454/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, julgado em
25/03/2009, DJe 15/04/2009)

Artigo Original em Dizer o Direito

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