A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
Policiais militares realizavam
policiamento ostensivo em determinado bairro, momento em que avistaram João em
atitude por eles considerada suspeita.
Ao
ser abordado, João identificou-se como Pedro da Silva Albuquerque, que é o nome
de seu irmão. Ele fez isso porque possuía contra si um mandado de prisão
decorrente de uma condenação por tráfico de drogas.
O que João não sabia é que também
havia uma mandado de prisão contra seu irmão.
Quando os policiais descobriram e
falaram que havia um mandado de prisão contra Pedro, João conseguiu fugir e
saiu correndo pelos becos do bairro.
A equipe policial localizou a
residência de João e foi atendida pela sua companheira, uma adolescente de 16 anos.
Os policiais alegam que a adolescente autorizou que eles entrassem na casa.
Ao fazerem uma minuciosa revista
na residência encontraram, no interior de um dos quartos, uma caixa contendo
porções de maconha, em tese, preparadas para a venda, além de munições de arma
de uso permitido.
Posteriormente, os policiais
encontraram João escondido em um cemitério, dentro de uma cripta, tendo sido
preso.
A defesa argumentou que
houve ofensa à garantia da inviolabilidade de domicílio. A questão chegou até o
STJ. O tribunal concordou com a alegação?
SIM.
Inviolabilidade de domicílio
A CF/88
prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:
XI – a casa é asilo inviolável do
indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em
caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o
dia, por determinação judicial;
A inviolabilidade do domicílio é uma
das expressões do direito à intimidade do indivíduo.
Entendendo o inciso XI:
Só se pode
entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes
hipóteses:
Durante o DIA |
Durante a NOITE |
• Em caso de flagrante delito; • Em caso de desastre; • Para prestar socorro; • Para cumprir determinação judicial (ex: busca e |
• Em caso de flagrante delito; • Em caso de desastre; • Para prestar socorro.
|
Assim, guarde isso: não se pode
invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir ordem judicial.
Por se tratar de medida invasiva
e que restringe sobremaneira o direito fundamental à intimidade, o ingresso em
morada alheia deve se circunscrever apenas ao estritamente necessário para
cumprir a finalidade da diligência, conforme se extrai da exegese do art. 248
do CPP, segundo o qual, “Em casa habitada, a busca será feita de modo que não
moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência”.
Flagrante delito
Vimos acima que, havendo flagrante
delito, é possível ingressar na casa mesmo sem consentimento do morador, seja
de dia ou de noite.
Um
exemplo comum no cotidiano é o caso do tráfico de drogas. Diversos verbos do
art. 33 da Lei nº 11.343/2006 fazem com que este delito seja permanente:
Art. 33. Importar, exportar, remeter,
preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo
ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar:
Assim, se a casa do traficante funciona
como boca-de-fumo, onde ele armazena e vende drogas, a todo momento estará
ocorrendo o crime, considerando que ele está praticando os verbos “ter em
depósito” e “guardar”.
Diante disso, havendo suspeitas de que
existe droga em determinada casa, será possível que os policiais invadam a
residência mesmo sem ordem judicial e ainda que contra o consentimento do
morador?
SIM. No entanto, no caso concreto,
devem existir fundadas razões que indiquem que ali está sendo cometido um crime
(flagrante delito). Essas razões que motivaram a invasão forçada deverão ser
posteriormente expostas pela autoridade, sob pena de ela responder nos âmbitos
disciplinar, civil e penal. Além disso, os atos praticados poderão ser
anulados.
O STF possui uma tese fixada sobre o tema:
A entrada forçada em domicílio sem
mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em
fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que
dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos
praticados.
STF. Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min.
Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral – Tema 280) (Info
806).
O STJ também possui alguns julgados a
respeito do assunto:
A existência de denúncia anônima da
prática de tráfico de drogas somada à fuga do acusado ao avistar a polícia, por
si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no
domicílio do acusado sem o seu consentimento ou sem determinação judicial.
STJ. 5ª Turma. RHC
89.853-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/02/2020 (Info
666).
STJ. 6ª Turma. RHC
83.501-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 06/03/2018 (Info
623).
O ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização
judicial, em caso de flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja
fundadas razões (justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior
da residência.
A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente,
embora pudesse autorizar abordagem policial em via pública para averiguação,
não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio,
sem o seu consentimento e sem determinação judicial.
STJ. 6ª Turma. REsp 1574681-RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz,
julgado em 20/4/2017 (Info 606).
Abuso de autoridade
Veja o
novo crime inserido pela Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade):
Art. 22. Invadir ou adentrar,
clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel
alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem
determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro)
anos e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena, na forma
prevista no caput deste artigo, quem:
I – coage alguém, mediante violência ou
grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;
II – (VETADO);
III – cumpre mandado de busca e
apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco
horas).
§ 2º Não haverá crime se o ingresso for
para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a
necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de
desastre.
Vale
ressaltar, no entanto, que, para a configuração do delito, é indispensável a
presença do dolo acrescido de elemento subjetivo especial, nos termos do art.
1º, § 1º da Lei nº 13.869/2019:
Art. 1º (…)
§ 1º As condutas descritas nesta Lei
constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a
finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a
terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
STJ disse que se a polícia
entra na residência especificamente para efetuar uma prisão, ela não pode vasculhar
indistintamente o interior da casa porque isso seria uma “pescaria probatória”,
com desvio de finalidade
Admitir a entrada na residência especificamente para
efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu
interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória
(fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de
finalidade.
STJ. 6ª Turma. HC 663.055-MT, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
julgado em 22/03/2022 (Info 731).
Segundo Alexandre Morais da Rosa:
“Fishing
Expedition ou Pescaria Probatória é a procura especulativa, no ambiente
físico ou digital, sem ‘causa provável’, alvo definido, finalidade tangível ou
para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes
de atribuir responsabilidade penal a alguém. [É] a prática relativamente comum
de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das
garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim,
violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais. O termo se
refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe,
antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados,
muito menos a quantidade” (ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal
Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais,
2021, p. 389-390).
Sobre o desvio de finalidade no Direito Administrativo,
Celso Antonio Bandeira de Mello ensina:
“Em rigor, o
princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É
mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à
aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do
objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei
como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar
a lei; é desvirtuá-la;
é burlar a lei
sob pretexto de cumpri-la. Daí por que os atos incursos neste vício —
denominado ‘desvio de poder’ ou ‘desvio de finalidade’ — são nulos. Quem
desatende ao fim legal desatende à própria lei” (BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antonio, Curso de Direito Administrativo, 27 ed., São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 106).
O agente responsável pela
diligência deve sempre se ater aos limites da medida. Assim, a medida deve
estar vinculada à justa causa para a qual excepcionalmente se admitiu a
restrição do direito fundamental à intimidade. Obviamente, é possível o
encontro fortuito de provas. O que não se admite é que o interior da casa seja
vasculhado indistintamente.
No caso dos autos, o ingresso em
domicílio foi amparado na possível prática de crime de falsa identidade, na
existência de mandado de prisão e na suposta autorização da esposa do acusado
para a realização das buscas.
A despeito disso, o interior da
casa foi indistintamente vasculhado, tendo havido desvio de finalidade.
O STJ apontou também outras
irregularidades no ingresso.
O crime de falsa identidade
não justificava a entrada na residência
O primeiro fundamento – crime de
falsa identidade – não justificava a entrada na casa do réu, porque, no momento
em que ingressaram no lar, os militares ainda não sabiam que o acusado havia
fornecido anteriormente à guarnição os dados pessoais do seu irmão, o que
somente depois veio a ser constatado. Não existia, portanto, situação fática,
conhecida pelos policiais, a legitimar o ingresso domiciliar para efetuar-se a
prisão do paciente por flagrante do crime de falsa identidade, porquanto nem
sequer tinham os agentes públicos conhecimento da ocorrência de tal delito na
ocasião.
O art. 293 do CPP foi
descumprido e não se tinha certeza se o foragido estava na casa
No caso concreto, não foi cumprido o art. 293 do CPP, que
diz:
Art. 293. Se o executor do mandado verificar, com
segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será
intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido
imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à
força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor,
depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as
saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as
portas e efetuará a prisão.
Parágrafo único. O morador que se recusar a entregar o réu
oculto em sua casa será levado à presença da autoridade, para que se proceda
contra ele como for de direito.
Além disso, não se sabia – com
segurança – se o réu estava na casa, visto que não fugiu da guarnição para
dentro do imóvel com acompanhamento imediato em seu encalço; na verdade, o
acusado tomou rumo ignorado, com notícia de que provavelmente estaria escondido
dentro do cemitério, mas os agentes foram até a residência dele “colher mais
informações”.
Desvio de finalidade
Mesmo se admitida a possibilidade
de ingresso no domicílio para captura do acusado – em cumprimento ao mandado de
prisão ou até por eventual flagrante do crime de falsa identidade -, a partir
das premissas teóricas acima fundadas, nota-se, com clareza, a ocorrência de
desvirtuamento da finalidade no cumprimento do ato. Isso porque os objetos ilícitos
foram apreendidos no chão de um dos quartos, dentro de uma caixa de papelão, a
evidenciar que não houve mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo réu
– certamente portador de dimensões físicas muito superiores às do referido
recipiente -, mas sim verdadeira pescaria probatória dentro do lar, totalmente
desvinculada da finalidade de apenas capturar o paciente.
Não é crível que a
adolescente tenha autorizado o ingresso
Por fim, quanto ao último
fundamento, as regras de experiência e o senso comum, somados às peculiaridades
do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes
policiais de que a esposa do paciente – adolescente de apenas 16 anos de idade
– teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso no domicílio do casal,
franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de
prova incriminatória em desfavor de seu cônjuge.
Ademais, não se demonstrou
preocupação em documentar esse suposto consentimento, quer por escrito, quer
por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo.
Conclusão
A descoberta a posteriori de uma
situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em
violação da norma constitucional que consagra direito fundamental à
inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a
prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela derivados,
porque decorrentes diretamente dessa diligência policial.
É preciso ressalvar, contudo, que
a condenação pelo crime do art. 307 do CP (falsa identidade) não é atingida
pela declaração de ilicitude das provas colhidas a partir da invasão de
domicílio, eis que a prática do delito, ao que consta, foi anterior ao ingresso
dos agentes no lar do acusado.
Em suma, o que decidiu o
STJ:
Reconheceu a ilicitude das provas
obtidas a partir da violação do domicílio do acusado, bem como de todas as que
delas decorreram, e, por conseguinte, absolvê-lo das imputações relativas aos
crimes do art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) e do art. 14 da
Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).