Olá amigos do Dizer o Direito,

Vamos hoje tratar sobre o julgamento, pelo STF, da reclamação 4335/AC
que movimentou vertiginosamente o estudo do Direito Constitucional e do
Processo Civil no último mês.

Vejamos o que foi decidido e nossas conclusões a respeito do tema.

Lei n.° 8.072/90 vedava a
progressão para crimes hediondos e equiparados

A Lei nº 8.072/90, em sua redação original,
determinava que os condenados por crimes hediondos ou equiparados deveriam
cumprir a pena em regime integralmente fechado.

Em outras palavras, o art. 2º, §
1º da Lei n.°
8.072/90, proibia a progressão de regime em crimes hediondos e equiparados.

STF julga essa proibição
inconstitucional

Em 23/02/2006,
o STF, ao julgar um habeas corpus impetrado
em favor de um único preso, declarou inconstitucional esse § 1º do art. 2º da
Lei n.
° 8.072/90 (em sua redação original), que proibia a
progressão.

Foram apontadas duas razões principais,
além de outros argumentos:

• a norma violava o princípio
constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF), já que obrigava
o juiz a sempre condenar o réu ao regime integralmente fechado
independentemente do caso concreto e das circunstâncias pessoais do réu;

• a norma proibia a progressão de
regime de cumprimento de pena, o que inviabilizaria a ressocialização do preso.

A decisão foi tomada pelo Plenário do
STF, no entanto, como já dito, em um processo individual, o HC 82.959/SP, Rel.
Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006.

Efeitos da decisão proferida no HC
82.959/SP

Após a decisão do STF, deu-se início a um
intenso debate na doutrina e na jurisprudência acerca da sua amplitude.

A dúvida que surgiu foi a seguinte: a
decisão do STF, proferida no HC 82.959/SP, tinha eficácia vinculante e efeitos erga omnes? Os demais juízes e Tribunais
estavam obrigados a acatar a decisão tomada pelo Supremo no referido habeas corpus?

A resposta iria depender da corrente
adotada:

• Pela concepção tradicional
(clássica): NÃO.

• Pela teoria da abstrativização do
controle difuso: SIM.

Vamos entender melhor cada uma das posições.

Efeitos da declaração de
inconstitucionalidade conforme a TEORIA TRADICIONAL

Segundo o entendimento clássico,
a decisão do STF reconhecendo a inconstitucionalidade de uma lei ou ato
normativo irá variar de acordo com a espécie de controle exercido:

Controle concentrado

Controle difuso

Realizado pelo STF, de forma abstrata, nas hipóteses em que lei ou ato
normativo violar a CF/88.

Realizado por qualquer juiz ou
Tribunal (inclusive o STF), em um caso concreto.

Produz, como regra, os seguintes
efeitos:

• Ex tunc

• Erga omnes

• Vinculante

Produz, como regra, os
seguintes efeitos:

• Ex tunc

• Inter partes

Não vinculante

Desse modo, pela teoria
tradicional, em regra, a declaração de inconstitucionalidade no controle difuso
produz efeitos inter partes e não
vinculantes.

Após declarar a
inconstitucionalidade, o STF deverá comunicar essa decisão ao Senado e este
poderá suspender a execução, no todo ou em parte, da lei viciada (art. 52, X):

Art. 52. Compete
privativamente ao Senado Federal:

X – suspender a execução,
no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva
do Supremo Tribunal Federal;

Trata-se de uma decisão
discricionária do Senado. Caso ele resolva fazer isso, os efeitos da decisão de
inconstitucionalidade do STF que eram inter
partes
passam a ser erga omnes. A
resolução do Senado, portanto, amplia a eficácia do controle difuso realizado pelo
Supremo.

Efeitos da declaração segundo a
TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO

Em uma explicação bem simples, a
teoria da abstrativização do controle difuso preconiza que, se o Plenário do
STF decidir a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ou ato
normativo, ainda que em controle difuso, essa decisão terá os mesmos efeitos do
controle concentrado, ou seja, eficácia erga
omnes
e vinculante.

Assim, segundo essa concepção, se,
em abril/2006, um juiz criminal de Rio Branco (AC), por exemplo, decidisse que era
constitucional a proibição de progressão de regime em crime hediondo, o réu
prejudicado poderia formular uma reclamação diretamente ao STF, alegando que a
autoridade de sua decisão estaria sendo desrespeitada.

O STF iria conhecer essa
reclamação e julgá-la procedente, determinando que a decisão do juiz fosse
cassada (art. 102, I, “l”, da CF/88).

Para essa corrente, o art. 52, X,
da CF/88 sofreu uma mutação constitucional e, portanto, deve ser
reinterpretado.  Dessa forma, o papel do
Senado, atualmente, é apenas o de dar publicidade à decisão do STF. Em outras
palavras, a decisão do STF, mesmo em controle difuso, já é dotada de efeitos erga omnes e o Senado apenas confere publicidade
a isso.

Pode-se dizer que o STF acolheu a teoria da
abstrativização do controle difuso? O STF decidiu que houve mutação
constitucional do art. 52, X, da CF/88 e que o papel do Senado atualmente é
apenas o de dar publicidade da decisão?

NÃO. A resposta para essas perguntas
ainda é negativa. É isso que se extrai do resultado da Rcl 4335/AC, Rel. Min.
Gilmar Mendes, julgada em 20/3/2014.

A situação concreta discutida na referida
reclamação foi a seguinte:

Em abril de 2006, ou seja, após a
decisão do STF declarando inconstitucional o § 1º do art. 2º da Lei n.° 8.072/90 (HC 82959/SP), o
juiz da vara de execuções penais de Rio Branco (AC) indeferiu o pedido de
progressão de regime em favor de um condenado, argumentando que a Lei de Crimes
Hediondos proibia e que a decisão do STF no HC 82959/SP somente teria eficácia erga omnes se o Senado Federal
suspendesse a execução do dispositivo da Lei de Crimes Hediondos.

O réu, assistido pela Defensoria
Pública, formulou reclamação no STF alegando que o entendimento do juiz de 1ª
instância ofendeu a autoridade da decisão do STF no HC 82959/SP. Segundo
argumentou o condenado, o Supremo já havia definido que o dispositivo era
inconstitucional. Logo, ninguém mais poderia discordar, mesmo que a decisão
tenha sido tomada em sede de controle difuso.

Como o STF julgou essa reclamação?

Por maioria, a reclamação foi
conhecida e julgada procedente. É preciso, no entanto, ter calma e analisar o
voto de cada julgador.

Apenas dois Ministros (Gilmar
Mendes e Eros Grau) afirmaram expressamente que:

• as decisões do Plenário do STF
proferidas em controle difuso de constitucionalidade possuem efeitos erga omnes
e

• que o papel do Senado,
atualmente, é o de tão-somente dar publicidade ao que foi decidido, tendo
havido mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88.

Os demais Ministros refutaram textualmente
ou pelo menos não aderiram a tais conclusões. Assim, para a maioria do STF, a
decisão em controle difuso continua ainda produzindo, em regra, efeitos apenas inter partes e o papel do Senado é o de
amplificar essa eficácia.

SV 26-STF

Antes de prosseguirmos na explicação,
é importante abrir um parêntese e esclarecer que, em 2009, ou seja, após a
decisão no HC 82.959/SP e depois de a reclamação ter sido ajuizada (mas antes
de ser julgada), o STF editou uma Súmula Vinculante afirmando que era permitida
a progressão de regime em crimes hediondos. Trata-se da SV 26-STF.

Assim, quatro Ministros (Teori
Zavascki, Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello) votaram a favor da
reclamação, porém não pelo fato de a decisão do juiz do AC ter afrontado o HC
82.959/SP, mas sim em virtude de a decisão do magistrado ter ficado,
posteriormente, contrária à Súmula Vinculante 26, o que enseja expressamente reclamação
(art. 103-A, § 3º, da CF/88).

Em outros termos, a edição da SV
26 acabou “salvando” o conhecimento da reclamação. Se fosse apenas por causa do
HC 82.959/SP, a reclamação não seria admitida. Logo, a reclamação foi conhecida
pela maioria, mas com base na súmula (e não no HC).

Veja um quadro-resumo do
resultado do julgamento:

A
reclamação deveria ser conhecida, pois houve ofensa à decisão do HC 82.959

A
reclamação deveria ser conhecida porque houve ofensa à SV 26-STF

A reclamação NÃO deveria ser conhecida porque o
HC 82.959 tem eficácia inter partes

• Gilmar Mendes

• Eros Grau (aposentado)

• Teori Zavascki

• Luis Roberto Barroso

• Rosa Weber

• Celso de Mello

• Sepúlveda Pertence (aposentado)

• Joaquim Barbosa

• Ricardo Lewandowski

• Marco Aurélio

Obs1: apesar de eu achar difícil
acontecer, o quadro acima poderá, em tese, mudar. Isso porque os Ministros Luiz
Fux e Dias Toffoli não votaram considerando que os Ministros que os antecederam
já haviam votado. A Min. Cármem Lúcia também não votou, mas porque estava no
exterior em viagem oficial.

Obs2: os Ministros que votaram pelo
não-conhecimento da reclamação entendiam que o HC 82.959/SP não tinha eficácia erga omnes e não poderia ser deferida a
reclamação porque a súmula foi posterior à decisão atacada. No entanto, defendiam
que o STF deveria conceder habeas corpus
de ofício em favor do reclamante, determinando ao juiz que superasse o obstáculo
legal e analisasse a progressão.

Principais argumentos do Min.
Gilmar Mendes

– O principal (e acho que
atualmente único) expoente da teoria da abstrativização do controle difuso no
STF é o Min. Gilmar Mendes.

– Para ele, de acordo com a
doutrina tradicional, a suspensão da execução pelo Senado do ato declarado
inconstitucional pelo STF é um ato político que empresta eficácia erga omnes às
decisões definitivas sobre inconstitucionalidade proferidas em caso concreto.
No entanto, ele afirma que essa concepção está ultrapassada e não mais se
coaduna com a atual ordem constitucional.

– É preciso uma reinterpretação
dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade.
Reputou ser legítimo entender que, hoje em dia, o papel do Senado é o de
conferir simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle
incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa
decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa
para que apenas publique a decisão no Diário do Congresso.

Principais argumentos do Min. Teori
Zavascki

– Para o Min. Teori Zavascki (e a
maioria dos demais membros do STF), o art. 52, X, da CF/88 não sofreu mutação
constitucional e o Senado continua tendo o poder de conferir eficácia erga
omnes às decisões do STF que, em controle difuso, declaram a
inconstitucionalidade de lei.

– O Ministro lembrou, contudo,
que existem outras decisões do STF, proferidas em controle difuso, e que gozam
de força expansiva, mesmo sem o art. 52, X, da CF/88. É como se o Ministro
dissesse: o art. 52, X, da CF/88 continua válido, mas há decisões do Supremo
que ganham eficácia erga omnes mesmo sem a atuação do Senado.

– O direito brasileiro tem
seguido em direção a um sistema de valorização dos precedentes judiciais
emanados dos tribunais superiores, aos quais se atribui, cada vez com mais
intensidade, força persuasiva e expansiva em relação aos demais processos
análogos. Nesse ponto, o Brasil está acompanhando um movimento semelhante ao
que também ocorre em diversos outros países que adotam o sistema da civil law e
que vêm se aproximando, paulatinamente, do que se poderia denominar de cultura
do stare decisis, própria do sistema da common law.

– O Ministro citou diversos
exemplos dessa força expansiva das decisões proferidas, mesmo em processos
individuais, sem que haja a suspensão da lei pelo Senado. Confira:

– Ex1: em 1994, o CPC foi
alterado para se permitir que o Relator possa decidir monocraticamente o
recurso quando o tema estiver previsto em súmula ou na jurisprudência dominante
do respectivo tribunal ou dos tribunais superiores.

– Ex2: em 2001, o art. 475, §
3.º, do CPC, dispensou o reexame necessário das sentenças que adotam
jurisprudência do plenário do STF ou súmula do tribunal superior competente.

– Ex3: no mesmo ano, o art. 741,
parágrafo único, do CPC passou a atribuir a decisões do STF sobre a
inconstitucionalidade de normas, mesmo em controle difuso, a eficácia de inibir
a execução de sentenças a elas contrárias.

– Ex4: em 2004, foi prevista a
possibilidade de o STF editar súmulas de efeitos vinculantes.

– Ex5: ainda em 2004, foi
inserida a previsão na CF da repercussão geral nos recursos extraordinários.

– Esse panorama ilustra a
inequívoca força ultra partes que o sistema normativo brasileiro atualmente
atribui aos precedentes dos tribunais superiores e, especialmente, do STF.

– Vale ressaltar, no entanto, que
mesmo essas decisões do STF tendo força expansiva, não é possível dizer que
todas as vezes em que elas forem descumpridas será permitido o ajuizamento de
reclamação perante a Corte Suprema.

– Não há dúvida de que o descumprimento
de qualquer dessas decisões importará ofensa à autoridade das decisões do STF,
o que, numa interpretação literal e radical do art. 102, I, “l”, da
Constituição, permitiria a qualquer prejudicado, propor reclamação na Corte.
Ocorre que o mais prudente é conferir uma interpretação estrita a essa
competência, restringindo o cabimento das reclamações.

– A admissão incondicional de
reclamação para qualquer caso de descumprimento de decisão do STF transformará
este Tribunal em uma Corte executiva, suprimindo instâncias locais e atraindo
competências próprias das instâncias ordinárias.

– Em outras palavras, não se pode
dizer que a força expansiva das decisões do STF seja sinônimo perfeito de
efeitos erga omnes e vinculantes. A reclamação cabe na hipótese de
descumprimento de decisões do STF que gozem de eficácia vinculante e erga
omnes, mas não será admitida em caso de violação a decisões que tenham “apenas”
força expansiva.

– Assim, deve-se reconhecer que
existem inúmeras decisões do STF com força expansiva. No entanto, caso uma
delas seja descumprida, a reclamação somente será admitida quando for ajuizada
por quem tenha sido parte na relação processual em que foi proferida a decisão
cuja eficácia se busca preservar.

– A legitimação ativa mais ampla
da reclamação somente será cabível nas hipóteses em que a lei ou a CF/88
expressamente prever como sendo de efeitos vinculantes e erga omnes. É o caso,
por exemplo, das súmulas vinculantes.

– Logo, voltando ao caso
concreto, em princípio, a reclamação não deveria ser conhecida. Contudo, há uma
peculiaridade: enquanto esta reclamação aguardava para ser julgada, foi editada
a SV 26, que possui eficácia vinculante e que está em confronto com o que
decidiu o juiz de 1ª instância. Dessa feita, a presente reclamação foi
conhecida, não porque houve afronta ao HC 82.959/SP, mas sim por conta da
violação à SV 26.

Algumas
conclusões:

1) O STF não adota a teoria da
abstrativização do controle difuso.

2) As decisões do Plenário do STF
proferidas em controle difuso de constitucionalidade possuem FORÇA EXPANSIVA (nas palavras do
Min. Teori Zavascki), mas não se pode afirmar que possuam, em regra, eficácia erga omnes.

3) Para a maioria dos Ministros não
houve mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88. O papel do Senado não é o
de apenas dar publicidade da decisão de inconstitucionalidade proferida em controle
difuso. A resolução do Senado continua conferindo eficácia erga omnes à declaração de inconstitucionalidade prolatada no
controle concreto.

4) Se um juiz ou Tribunal desrespeita o
que foi decidido pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade, a pessoa
prejudicada não poderá se valer da reclamação para questionar esse
descumprimento, salvo se ela foi parte no processo originário que foi julgado
pelo Supremo.

5) A legitimação ativa mais ampla da
reclamação somente será cabível nas hipóteses em que a lei ou a CF/88
expressamente prever como sendo de efeitos vinculantes e erga omnes. É o caso, por exemplo, das súmulas vinculantes.

Tema polêmico

Devo alertar que o tema acima não
é pacífico
e que algumas afirmações são decorrentes de minhas
conclusões sobre os debates ocorridos durante o julgamento, havendo,
certamente, opiniões em sentido contrário.

Márcio André Lopes Cavalcante

Professor

Artigo Original em Dizer o Direito

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