Imagine a seguinte situação
hipotética:

João, médico oftalmologista,
pediu para ingressar na Unimed (cooperativa de médicos).

A Unimed negou
o pedido afirmando que, para ingressar na cooperativa, ele precisaria primeiramente
ser aprovado em um processo seletivo técnico.

Inconformado, João
ajuizou ação de obrigação de fazer contra a Unimed pedindo para que fosse
reconhecido seu direito de ingressar na cooperativa independentemente de
processo seletivo.

O autor
argumentou que essa exigência seria abusiva porque não prevista na Lei nº 5.764/71
(Lei das Cooperativas).

A Unimed
contestou a demanda sustentando que essa exigência de processo seletivo técnico
está prevista no art. 3º, IV, do estatuto social da cooperativa e que tem por
objetivo garantir a possibilidade técnica da prestação dos serviços.

O juiz julgou o
pedido procedente, reconhecendo a abusividade da previsão contida no Estatuto
porque não teria fundamento na lei.

O TJ/SP manteve
a sentença afirmando, inclusive, que o entendimento é pacífico naquela Corte conforme
enunciado interno do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

Enunciado X: A exigência de aprovação em processo seletivo ou de
realização de curso de cooperativismo como condição de ingresso em cooperativa
não tem base legal e viola o princípio das portas abertas.

 

O STJ
concordou com o entendimento do TJ/SP? A exigência feita pela Unimed é indevida?

NÃO.

A cooperativa
de trabalho médico (no caso, a Unimed) pode sim limitar, por meio de processo
seletivo público, o ingresso de novos associados ao fundamento de preservação
da possibilidade técnica de prestação de serviços.

Vamos entender.

 

O que é
uma cooperativa?

Cooperativas
são sociedades de pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens
ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem
objetivo de lucro.

 

A
admissão de associados pode ser restringida?

SIM. A admissão
dos associados poderá ser restrita, a critério do órgão normativo respectivo,
às pessoas que exerçam determinada atividade ou profissão ou estejam vinculadas
a determinada entidade. Ex: na cooperativa de médicos somente podem ingressar
os profissionais regularmente habilitados como médicos.

 

Como
funcionam as cooperativas de trabalho?

Nas
cooperativas de trabalho, como a de médicos, a produção (ou o oferecimento de
serviço) é realizada em conjunto pelos associados, sob a proteção da própria
cooperativa.

Assim, a
cooperativa coloca à disposição do mercado a força de trabalho, cujo produto da
venda – após a dedução de despesas – é distribuído, por equidade, aos
associados, ou seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado
(número de consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).

Essas
cooperativas têm como finalidade melhorar os salários e as condições de
trabalho pessoal de seus associados, dispensando, mediante ajuda mútua, a
intervenção de um patrão ou empresário, procurando sempre o justo preço, já que
a entidade não busca o lucro: a sobra apurada em suas operações é distribuída
em função do montante operacional de cada associado.

 

O que faz
uma cooperativa de trabalho médico?

A cooperativa de trabalho, como a
de médicos, coloca à disposição do mercado a força de trabalho.

O produto arrecadado com a
prestação desses serviços é utilizado para pagamento das despesas da própria
cooperativa e, em seguida, é distribuído, por equidade, entre os associados, ou
seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado (número de
consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).

Conforme explica a doutrina especializada:

“8.1. A
realidade brasileira ostenta um expressivo conjunto de cooperativas de
serviços, constituídas por médicos, que celebram contratos para que
beneficiários contratuais recebam assistência médica por parte de cooperados.

8.2. Têm elas dupla
qualificação. São cooperativas, constituídas conforme o Código Civil e a Lei nº
5.764 de 1971 e, igualmente, operadoras de planos de saúde, como tais definidas
pela Lei nº 9.656, a lei dos planos de saúde.

8.3. As
cooperativas de serviços médicos foram criadas na década de 1970, como
movimento classista contra a massificação e o aviltamento financeiro
decorrentes da estatização forçada da atividade médica e surgimento de empresas
que compravam trabalho médico e revendiam com lucro.

8.4. Os sócios
dessas cooperativas oferecem, coletivamente, na forma de convênios, a preços
acessíveis, suas clínicas privadas, aos interessados, num atendimento que
sobrepuja, em qualidade, o dispensado nas filas previdenciárias e nos
ambulatórios das medicinas de grupo. Daí o sucesso crescente do empreendimento
que, salvo alguns percalços, espraia-se hoje por toda a geografia brasileira,
assumindo a feição de autêntica instituição nacional.” (ROSE, Marco Túlio de.
Cooperativas Médicas, Saúde Suplementar e Colisão (Cap. X). In: Comentários à
Legislação das Sociedades Cooperativas: Tomo II. KRUEGER, G.; MIRANDA, A. B.
(Coord.), Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, págs. 284/285)

 

Princípio cooperativista da
adesão livre (princípio da livre adesão voluntária)

O princípio cooperativista da
adesão livre desdobra-se em dois outros:

a) o princípio da voluntariedade,
em que ninguém deve ser coagido a ingressar em uma sociedade cooperativa, de
modo que o pedido de ingresso deve partir da vontade livre e desembaraçada do
proponente; e

b) o princípio da porta aberta,
o qual prega que a adesão deve ser aberta a todas as pessoas que aceitem as
responsabilidades próprias da filiação e tenham a possibilidade de usufruir as
utilidades da cooperativa.

 

Desse modo, o ingresso nas
cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela
sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições
estabelecidas no estatuto.

Em regra, não há limitação quanto
ao número de associados.

Exceção: podem ser impostas
restrições se houver impossibilidade técnica de prestação de serviços.

Veja os dispositivos da Lei nº 5.764/71 que tratam sobre o
tema:

Art. 4º As cooperativas são sociedades
de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas
a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se
das demais sociedades pelas seguintes características:

I – adesão voluntária, com número
ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de
serviços;

(…)

 

Art. 29. O ingresso nas cooperativas é
livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela sociedade,
desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas
no estatuto, ressalvado o disposto no artigo 4º, item I, desta Lei.

 

Princípio da porta aberta

Por força do princípio da porta
aberta, consectário do princípio da livre adesão, não podem existir restrições
arbitrárias e discriminatórias à livre entrada de novo membro na cooperativa,
devendo a regra limitativa da impossibilidade técnica de prestação de serviços
ser interpretada segundo a natureza da sociedade cooperativa, sobretudo porque
a cooperativa não visa o lucro, além de ser um empreendimento que possibilita o
acesso ao mercado de trabalhadores com pequena economia, promovendo, portanto,
a inclusão social.

A proibição imotivada de novos cooperados é proibido pela
lei porque o incentivo ao cooperativismo é de interesse público, tal como
preconizado pelo art. 174, § 2º da Constituição Federal:

Art. 174 (…)

§ 2º A lei apoiará e estimulará o
cooperativismo e outras formas de associativismo.

 

Logo, não atingida a capacidade
máxima de prestação de serviços pela cooperativa, que deverá ser aferida por
critérios técnicos e verossímeis, pois isso a impediria de cumprir sua
finalidade de colocar suas atividades à disposição de seus componentes, é
vedada a recusa de admissão de novos associados qualificados (STJ. 4ª Turma. REsp
nº 661.292/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 8/6/2010).

Em outras palavras, a recusa de
ingresso de profissional na cooperativa de trabalho médico não pode se dar sem
haver estudos técnicos de viabilidade, somente em razão de presunções acerca da
suficiência numérica de associados na região exercendo a mesma especialidade.

A simples inconveniência para cooperados
que já compõem o quadro associativo (eventual diminuição de lucros para eles) não
caracteriza motivo técnico suficiente para impedir o ingresso de novos
cooperados (STJ. 3ª Turma. REsp nº 1.479.561/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, DJe 28/11/2014).

 

Princípio da porta aberta
não é absoluto

O princípio da porta aberta
(livre adesão) não é absoluto, devendo a cooperativa de trabalho médico, que
também é uma operadora de plano de saúde, velar por sua qualidade de atendimento
e situação financeira estrutural, até porque pode ser condenada solidariamente
por atos danosos de cooperados a usuários do sistema (a exemplo de erros
médicos), o que impossibilitaria a sua viabilidade de prestação de serviços.

Dessa forma, se for atingida a
capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa, aferível por
critérios objetivos e verossímeis, é possível a recusa de novos associados já
que o número acima do tolerado impediria a cooperativa de cumprir as suas
finalidades.

 

Licitude do processo
seletivo público

Com base, portanto, nessas
premissas, deve-se considerar que é lícita a previsão contida no estatuto
social da cooperativa médica impondo a realização de processo seletivo público
e de caráter impessoal.

Nesta seleção poderão ser
exigidos conteúdos a respeito de ética médica, cooperativismo e gestão em saúde
como requisitos de admissão de profissionais médicos para compor os quadros da
entidade. Isso se justifica porque, por força de lei, o interessado deve aderir
aos propósitos sociais da cooperativa e preencher as condições estatutárias
estabelecidas. Logo, o princípio da porta aberta deve ser compatibilizado com a
possibilidade técnica de prestação de serviços e a viabilidade estrutural
econômico-financeira da sociedade cooperativa.

 

Em suma:

É lícita a previsão, em estatuto social de
cooperativa de trabalho médico, de processo seletivo público como requisito de
admissão de profissionais médicos para compor os quadros da entidade, devendo o
princípio da porta aberta ser compatibilizado com a possibilidade técnica de
prestação de serviços e a viabilidade estrutural econômico-financeira da
sociedade cooperativa.

STJ. 3ª
Turma. REsp 1.901.911-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em
24/08/2021 (Info 673).

 

O interessado que não lograr
êxito no processo seletivo da cooperativa continuará a exercer sua
especialidade médica em consultórios, hospitais e demais estabelecimentos de
saúde, podendo, inclusive, ser prestador de serviço credenciado de outras operadoras
de plano de assistência à saúde.

Esse é o entendimento atualmente
pacífico do STJ:

As Turmas que integram a Segunda Seção do STJ entendem que o
princípio da porta-aberta, consectário do princípio da livre adesão, deve ser
interpretado no sentido de ser possível a exigência de processo seletivo para
admissão de novo cooperado, desde que haja previsão estatutária e a condição
não tenha a finalidade de restringir o acesso de forma abusiva.

STJ. 2ª Seção. AgInt nos EREsp 1561337/SP, Rel. Min. Marco Aurélio
Bellizze, julgado em 18/08/2021.

 

Artigo Original em Dizer o Direito

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